This is the text I presented in the Anarchai Colloquium on the future of ontology.
Estas são algumas observações sobre o que me parece ser o futuro da ontologia. Começo com uma análise de conjuntura filosófica bastante geral e termino com uns projetos de trabalho.
1.Renascimento da metafísica: os agentes provocadores
Nos últimos anos temos assistido a uma retomada do interesse pela metafísica da parte de quem faz filosofia. A cena filosófica parece hoje ter mais espaço para questões acerca do que há e um rumor que está bastante espalhado diagnostica que alguns projetos associados à crítica à metafísica – entre eles as concepções de filosofia oriundas a partir (do correlacionismo) de Kant, a concepção de filosofia como estudo do método da ciência, a virada linguística e a concentração da fenomenologia na consciência – estão exauridos e precisam ser substituídos por uma nova injeção de reflexão metafísica. A idéia é a de uma retomada da concentração sobre como as coisas são, de uma retomada da consideração acerca dos elementos constitutivos do mundo – e essa concentração ou consideração, como vou dizer mais tarde, pode ser entendida como uma atividade de análise ou uma atividade de especulação.
Diferentes tradições preferem entender a retomada em diferentes termos e também preferem entender o que está sendo retomado também em diferentes termos. O termo 'metafísica' às vezes é deixado no limbo e o termo 'ontologia' é usado para marcar a retomada. Ambos os termos carregam o ônus de terem sido usados de maneira pejorativa ou derrogatória por projetos filosóficos recentes. Heidegger incitava à superação da metafísica em sua exclusiva preocupação com os entes e a uma retomada da questão ontológica; Lévinas incitava o abandono do pensamento ontológico que reduz o outro ao mesmo em favor de uma metafísica em que o outro e o mesmo possam se concatenar de outras maneiras. Os momentos heróicos do giro linguístico analítico repudiavam a metafísica em favor de uma análise lógica ou em linguagem do senso comum dos seus problemas – enquanto consideravam a ontologia como considerando aquilo que supomos que há (o compromisso ontológico, a ontologia subjacente etc.). A retomada da metafisica (ou da ontologia) se move neste terreno minado em que os termos nos obrigam a dizer coisas como “ontologia (ou metafísica) não no sentido de … mas antes no sentido de ...”. Há que se fazer algum malabarismo para poder voltar a usar esses termos minados sem ter que repudiar tudo o que uma enorme temporada de afastamento de um deles ou de ambos produziu ou provocou. Alguns personagens da retomada fincam pé em algum destes termos – como Graham Harman, Mumford, os australianos ou os whiteheadianos com o termo 'metafísica' ou Heil e Martin ou os heideggerianos ou alguns fenomenólogos com o termo 'ontologia'. Alguns outros preferem falar de uma retomada da especulação – como Meillassoux, por exemplo – para admitir claramente o legado da crítica à metafísica. De todo modo, há uma certa tendência geral comum na retomada – aquilo que podemos identificar como um renascimento. De algum modo a filosofia deixou de ser vista em geral e majoritariamente como uma empreitada de evitar ou passar ao largo de questões metafísicas (vou usar um termo minado carregando as minas comigo).
Penso que há muitos fatores que levaram a este renascimento se considerarmos a filosofia da segunda metade do século XX. Estes fatores não são necessariamente convergentes, e eles não tiveram nem de longe o mesmo impacto sobre todas as tradições que passaram por retomadas da metafísica. Alguns destes fatores são claramente específicos à algumas tradições enquanto outros são mais gerais ainda que adquirem sabor específico em diferentes círculos. No espírito de uma análise de conjuntura, tento aqui listar alguns destes fatores.
a. A inescapabilidade da metafísica
Evitar a metafísica é difícil. As vezes isso torna o pensamento filosófico desnecessariamente tortuoso. Muitas vezes tentar passar ao largo de suposições metafísicas problemáticas nos leva a outras, como numa dança pendular e com recuos. Deixar de falar de propriedades em favor de predicados não dissolve a questão dos fazedores de verdade – aquilo que torna uma frase com esses predicados verdadeira. Se não há fatos no mundo, o que há? Evitar postular universais leva aos problemas do nominalismo, entre outros o problema da co-presença de particulares. Mesmo tomando uma instância canapiana em favor de convenções nos leva a questões acerca de quem convenciona. Heil e Martin, em The Ontological Turn, procuram mostrar que o giro linguístico não sai do chão sem pressupostos ontológicos:
imagine that someone denies the existence of natural divisions in the world: all depends on language. Language “carves up” reality; and to the extent that language is arbitrary or conventional, so are the elements of reality. Before you rush to embrace a view of this sort, however, you should ask yourself what it implies about the ontology of language. [...] Are we supposed to regard tables, mountains, and electrons with suspicion, while accepting syllables and morphemes as immune to doubt? If the world is a linguistic construct, then it is hard to see how language could itself be a part of the world. But then what is it?1
O giro ontológico pretende então tornar explícitas as questões que estavam apenas supostas ou insinuadas para que as atitudes possam ser vistas mais claramente.
Pode-se tentar resistir à inescapabilidade de pelo menos duas maneiras. Pode-se tentar fazer o mínimo de metafísica – optar por alguma ontologia desértica, austera, parcimoniosa. Se a metafísica é necessária, aplique modéstia ao fazê-la. Mas pode-se suspeitar desta injunção. A modéstia pode não ser o melhor guia pela metafísica, mesmo se considerarmos tendências Ockhamianas em filosofia, uma ontologia desértica pode inflacionar a política, a epistemologia ou a estética. Por que a navalha seria aplicada primariamente à metafísica? De qualquer maneira, a atitude com respeito à metafísica é central nos projetos filosóficos, ela implica muitas coisas. Paul Ennis diagnostica que a metafísica sempre teve pelo menos uma centralidade negativa na filosofia; o que acontece neste campo tem impactos por toda parte.
b. Atitudes com respeito à ciência
Na era da rejeição da metafísica a filosofia teve muitas diferentes atitudes com respeito à ciência. De afastamento, de tentar salvá-la de qualquer acusação de metafísica, de auto-imolação em favor dela etc. A ciência ocupou espaços antes próprios da filosofia e em particular tendeu a substituir aos olhos do público em geral a filosofia como endereço para questões metafisicas. Ao longo do século XX às tendências de desconsideração da ciência como empreitada de pensamento e de reconstrução da ciência para que ela não tenha compromissos metafísicos (ou compromissos metafísicos demasiados) foi agregada a tendência a alguma forma de realismo acerca dela. Os realismos científicos proporcionaram o uso de elementos de teoria científica em empreitadas metafísicas (penso em alguns elementos dos trabalhos de Stengers, Deleuze e Churchland por exemplo) e uma imagem da ciência em que ela parece estar em contínuo com a metafísica chegando a parecer por vezes nada mais que metafísica, em um bom sentido (como insinua Quine, o primeiro Putnam, Boyd). Argumentos como o argumento do milagre2 pela verdade aproximada de teorias científicas apontam na direção de uma reabilitação da metafísica, na forma científica, contra aquilo que se disse contra ela: apenas que o mundo seja em si mesmo do modo descrito por esta teoria (ou uma coincidência em proporções cósmicas) pode explicar certos resultados preditivos.3
Duas atitudes acerca da ciência me parecem importantes para o renascimento da metafísica. Primeira, a atitude naturalista que toma a ciência como base do trabalho filosófico e, por conseguinte, metafísico. O naturalismo em metafísica4 – que encontra correlatos na atitude em relação à matemática de filósofos como Alain Badiou e Penelope Maddy – entende que a metafísica começa onde a ciência termina. É interessante comparar as semelhanças do naturalismo com a filosofia especulativa de Whitehead e seus seguidores contemporâneos (Stengers, Debaise etc.). O naturalismo abriu caminho para investigações também acerca da metafísica da ciência, como chamam o que fazem gente como Mumford, Beebee, Bird etc. Trata-se de encontrar a metafísica que está subjacente à ciência, aquela que melhor a explica ou melhor a estimula. Como uma vez disse Deleuze, esclarecendo o que pretendia fazer, trata-se da metafísica que a ciência necessita5 É interessante notar que a metafísica que a ciência necessita pode ser muito diferente daquela que ela comumente pressupõe.6
Segunda, a atitude de politicação da ciência que enxerga que o império cientifico é um estado de exceção em que muitas crenças são impostas dogmaticamente apenas por terem o crivo de um dispositivo cientifico. A modernidade teria tentado ser este estado de exceção em que a natureza foi arrancada do âmbito do político. Esta atitude é interessante quando ela é associada, como em Latour, com uma imagem de política que se confunde com uma metafísica e uma imagem geral da natureza como prova de forças, alianças e empreitadas de redução e irredução enquadra tanto o esforço científico quanto o discurso moderno acerca dele. Segundo esta segunda atitude, a ciência é vista em um quadro em que nós não estamos de fora contemplando uma ordem natural estabelecida, mas antes armando o mobiliário (provisório) do universo. Uma vez rejeitada a pretensão moderna de estatuto especial da natureza (e da ciência que a guarda), as teorias científicas se tornam como quaisquer outras teorias, prontas para serem comparadas, confrontadas e para participarem da bricolage da política das coisas.
c.Ancestralidade, realismo e descontentamento com o correlacionismo
Em parte inspirado pelo realismo científico, considerar o conhecimento do mundo intangível passou a ser menos atraente. Brassier, por exemplo, considera que a contra-revolução ptolomaica – disfarçada de revolução copernicana, conforme a terminologia introduzida por Meillassoux – de Kant e seus seguidores foi movida por uma manha contra a descentralização progressiva que a ciência promove em que os sujeitos deixam de ter tanta importância. O diagnóstico de Meillassoux é que a ancestralidade – a existência de realidades para além da correlação entre nós e o mundo – sempre foi colocada de baixo do tapete pelos filósofos correlacionistas do século XX, para ele a maioria dos filósofos analíticos e dos filósofos continentais representados nas figuras emblemáticas de Wittgenstein e Heidegger. Uma insatisfação com o correlacionismo inspira de alguma maneira uma atitude positiva com respeito a projetos metafísicos. Meillassoux aponta para uma motivação que não vêm da ciência mas antes da substituição da metafísica pela religião para muitas pessoas – o fideísmo: aquilo que a filosofia não me formece, eu procuro na religião. Seu diagnóstico é que este estado de coisas se despreende do imperativo correlacionista sobre a filosofia: não ir além do âmbito da nossa correlação com o mundo.
Diversas formas de realismo se tornaram sistematicamente mais populares nos últimos anos, não apenas associados à ciência, mas à especulação, ao conhecimento tradicional, às cosmologias míticas, aos relatos de tradições orais etc. A desconstrução chamou atenção para compromissos ontológicos que podem ser identificados em textos de todo tipo. Esses compromissos podem ser eles mesmos colocados em baixo do tapete, mas eles suscitam questões, inclusive aquelas com respeito à ontologia dos tapetes sob os quais as colocamos. Em todo caso, atitudes realistas impuseram uma maior simpatia com respeito às empreitadas metafisicas. Vale notar aqui também a retomada do interesse pela noção de natureza, e por um realismo com respeito aos discursos acerca dela. Iain Hamilton Grant aproveita este ensejo para se apoiar em Deleuze e Guattari na direção de uma espécie de reabilitação de uma Naturphilosophie à la Schelling. É preciso ser realista acerca da natureza e é preciso fazer perguntas como àquelas acerca da gênese dos corpos a partir da matéria. Essas atitudes realistas abrem as portas para o renascimento.
d. Os limites do giro linguístico
O giro se tornou estéril. Certas questões ontológicas se acumularam em baixo dos tapetes. Os giros ontológicos e especulativos são uma resposta a esta exaustão. Não se trata de abandonar o giro, mas de recalibrá-lo. Levi Bryant diz:
I think that there is much of value in the linguistic and semiotic turn and that it would be a mistake to throw out the linguistic and semiotic philosophy developed in the last one hundred or so years. The problem with the linguistic turn is that it tended to erase objects underneath language or the signifier. […] With respect to the linguistic turn, my strategy is to propose a delicate shift in perspective. Rather than thinking in terms of objects passively receiving form by language, I instead propose that we think in terms of entanglements of objects. If the shift from a logic of in-forming to entanglement is advisable, then this is because entanglements allow us to think in terms of all entangled objects contributing differences of their own as they weave themselves together, rather than thinking in terms of only one agency contributing all the important differences. […] Rather than thinking of one object overdetermining all the other objects by actively giving form to those objects, we should instead think of objects on a flat ontological plain among one another creating distinctive diffraction patterns as their differences interact with one another.7
Ao invés de substituir um giro por outro, reinterpretar o giro linguístico à luz de interesses metafísicos mais amplos. Talvez, por exemplo, podemos entender tudo o que a filosofia analisou acerca da linguagem como sendo acerca de partes do mundo que se tornam visíveis através da linguagem ou que tem a linguagem como exemplo.8 Podemos entender a linguagem como um caso entre outros.
Em conexão à reinclinação do giro linguístico, é interessante lembrar as críticas à analiticidade e a um escopo especial do que pertence ao convencionado ou ao linguístico. Suspeitas como as de Quine a um âmbito separado do analítico seguramente teve um papel na retomada da metafísica já que se não há um âmbito de análise em que se trata apenas da linguagem e não do mundo, não faz sentido uma filosofia que se exima sistematicamente de tratar do mundo.
e. Pós-humanismo
As críticas à metafísica foram frequentemente baseadas nos limites, nas capacidades e nas práticas humanas. Ao lado do correlacionismo clássico, reside um humanismo: podemos saber de nós e nós somos centrais para a filosofia. Uma vez que o homem é considerado morto, como proclamou Foucault, que o nós é entendido como plural não tendo que ser unificado pelo que é humano – há devires rato, pedra, bactéria que atuam sobre o pensamento – não há mais uma terra privilegiada de fora da metafísica e que dá as bases para uma crítica. Se a suspeita filosófica se torna mais próxima de uma metralhadora giratória, não há mais uma posição a partir do qual se possa atacar a metafísica. A filosofia transcendental de Kant pretendia concentrar os olhos sobre o sujeito, mas nada de susbtancial pode ser dito acerca do sujeito-em-si. Não há um terreno de fora da metafísica já que o sujeito está emaranhado nas tramas do universo ou dissolvido pelas forças que o estão compondo.
Aqui é interessante notar a influência de estruturalismo e do pós-estruturalismo em seu pós-humanismo em que diferenças e espelhos, dos externalismos e anti-individualismos que provocaram um estranhamento com respeito à imagem de primeira pessoa de nós, de uma tendência ecológica menos antropocêntrica entre outras. Essa distância em relação aos humanos proporcionaram espaço para políticas da natureza, para diversas filosofias do processo inauguradas pela manobra de Whitehead de montar um método especulativo que não tome nossa cognição senão como um ponto de partida – ou um exemplo – das preensões universais, para variedades de panpsiquismo9, para filosofias orientadas a objetos, e para uma atenção ao completamente outro em relação ao humano – tal como aponta a fenomenologia alienígena das coisas de Ian Bogost, a metafísica da predação de Viveiros de Castro ou o entusiasmo pelo estranhamento da matematização de Meilllasoux. De maneira geral, a descentralização nos humanos abre as portas para um foco para fora de nós.
f. Potências, virtualidades, modalidades
Um outro fator foi o da reabilitação das modalidades pelo trabalho de Kripke. Trata-se de um fator que afetou mais as comunidades analíticas que até então tinham compromissos com uma linguagem atualista motivados por suspeitas acerca das possibilidades e necessidades. Kripke motivou um conjunto de trabalhos em metafísica que fizeram uso da noção de mundos possíveis (como os de David Lewis, Kit Fine, Plantinga etc) e a toda uma metafísica da modalidade. Indiretamente, ele estimulou a ruptura com metafísicas humeanas em favor de essencialismos (como em Brian Ellis) ou de disposicionalismos em geral (Molnar, Mumford, C. B. Martin etc). Além disso, um compromisso vago com a redutibilidade das singularidades à suas propriedades universais foi em grande medida substituído por uma atenção ao singular (por exemplo, ao objeto) independente do que é comum entre ele e qualquer outra coisa.
As noções de potência e virtualidade sempre foram incômodas para os críticos da metafísica, já que esta frequentemente argumentou em termos modais, apelando quase sempre para a fragilidade das necessidades e conexões necessárias postuladas pelas metafísicas. Noções como a de virtualidade foram gradativamente sendo reabilitadas desde Bergson e passando sobretudo pelo trabalho de Deleuze. Elas apontam para alguma coisa subjacente ao escopo dos objetos e propriedades – que parecem mais facilmente fora das garras da metafísica ou pelo menos dão a impressão de serem compromissos ontológicos austeros – e que de alguma forma tem alguma prevalência genealógica sobre estes. Potências e virtualidades, contudo, não apontam para conexões necessárias; de fato, elas podem ser alternativas à conexão necessária se elas forem entendidas como diferentes da modalidade alética da possibilidade (definível em termos de necessidade alética). Parece por vezes que o atualismo humeano foi por muito tempo o motor de muito da crítica a metafísica – uma vez que este é tornado explícito, ou criticado ou dissolvido, a crítica perde muito de sua força.
2. O patrocínio contra a correlação: por uma metafísica do suporte
O renascimento da metafísica, tal como eu o entendo, não é uma mera retomada da metafísica tal como ela era feita e concebida antes das suspeitas a tirarem do primeiro plano. O renascimento é o nascimento de uma outra coisa, de outras maneiras de pensar no que há. Em particular, não penso que podemos simplesmente resuscitar uma metafisica de objetos e propriedades com alguns adendos. Penso também que a metafísica que virá não será aquela que descreve a partir de uma perspectiva de parte alguma – uma perspectiva sem perspectiva – uma paisagem dos componentes do mundo. Formulei (com Tomás Ribeiro10) uma contraposição entre uma metafísica da paisagem – prisioneira de uma imagem de que o mundo pode ser contemplado ou em primeira ou em terceira pessoas – e uma metafísica de tramas onde não há nada de desde sempre assentado que permita que o mundo possa ser contemplado desde parte alguma. Na metafísica das tramas a fricção entre os agentes compõem a cena. Esta imagem se assemelha àquela que emerge das filosofias do processo e ela tem um grande impacto na metafísica que se segue. A existência deixa de ser pensada como uma presença plena, como um dado alheio a qualquer processo de produção – não se pensa mais de uma maneira criacionista em que aquilo que existe mais plenamente é aquilo que menos depende do que quer que seja. Penso que o futuro da ontologia envolverá algumas maneiras de repensar a natureza do que existe. A filosofia do preocesso permite repensar o contraste entre realismos e idealismos repensando o contraste entre o que depende de nós e o que não depende de nós – mas que pode depender de outras coisas.
Meillassoux compara duas estratégias para escapar das garras do correlacionismo. Gostaria agora de elaborar meu caminho em relação à este mapa de estratégias. Ele entende que uma vez que o correlacionismo entende que há uma correlação factual entre nossas capacidades – ou nossa estrutura transcendental, ou nosso modo de existir ou nosso jeito de agir – e o mundo do qual não conseguimos sair em direção ao acesso a algum absoluto, ele então diz que podemos escapar desta correlação se considerarmos ou a) a correlação ela mesma absoluta ou b) a facticidade absoluta. Ele recomenda a segunda via uma vez que a primeira não nos levaria longe de uma metafísica da correlação – ou de metafísica da subjetividade – que não levaria a sério a facticidade da correlação. Tornar a correlação absoluta, ele diz, estaria em choque com o princípio correlacionista de que é contingente que estejamos em uma correlação – poderíamos, por exemplo, possuir um intelecto inteligível do qual fala Kant na terceira crítica, que dispensa conceitos para ter intuições acerca do mundo. De resto, tanto a facticidade absoluta quanto a correlação absoluta estariam para além do que nos é permitido conhecer (ou pensar) já que tratam de como são as coisas em si mesmas.
Retomemos por um instante a perspectiva das filosofias do processo. Entendo que um elemento central de uma filosofia do processo é algo como a concepção de existência como instauration de Etienne Souriau. Souriau advoga que nada existe sem ter sido posto a existir de alguma maneira, e que, dentre as muitas maneiras de existir, todas requerem alguma manutenção – nada é instauré de uma vez por todas, tal instauração requer uma constante atenção já que nenhum criador de existências atua como um relojoeiro perfeito. Aquilo que existe foi instaurado e contribui para instaurar alguma coisa. É uma cadeia de produção, um processo de efetividade que entende de uma certa maneira a idéia eleata de que aquilo que existe atua sobre alguma coisa. A idéia de instaurer tem um parentesco com a palavra de Heidegger gestiftet que meu colega e amigo Gerson Brea gosta de traduzir como patrocina. Nada existe sem patrocínio. Nenhuma coisa existe por ela mesma ou produz nenhum efeito. O rio é patrocinado pelas suas bordas, as flores pelas abelhas, os governos pelos seus comparsas. O patrocínio é da natureza mesma da existência segundo Souriau. E quase sempre estamos diante de uma pluralidade de patrocínios para que alguma coisa exista. Tomo esta noção de existência como um bom princípio. (Trata-se de um princípio ocasionalista holista em que uma coisa está conectada às demais por um esquema de patrocínios, por uma rede em que sempre há uma ocasião conectando o patrocinador e o patrocinado; noto que o patrocínio não é uma relação interna.)
Se o tomamos como um bom princípio, fica interessante retomar a linha de argumentação de Meillassoux contra as metafísicas da correlação – e ali ele inclui as filosofias do processo. Se aceitarmos o princípio da existência com patrocínio, dizemos que se existimos fomos patrocinados e patrocinamos. Estamos pelo menos em uma correlação – é razoável que estejamos em várias. É contingente a qual correlação nós estamos atrelados, mas temos que estar em alguma correlação se existimos. Trata-se de uma concepção do que é absoluto – associado apenas à natureza do que existe – e, assim, uma tese sobre o em-si: o em-si não é algo independente de todo resto e nem transcendente a qualquer patrocínio. Seguramente, isso não implica que o em-si é um para-nós, mas ele é sempre para-algo. Vale notar que podem haver formas de patrocínio, muito diferentes daquelas em que estamos envolvidos, já que há uma pluralidade indeterminada de modos de existência. O correlestracionismo, de certo modo, ensina acerca da dependência do que existe, mas a lição não precisa ser concêntrica a não ser que insistamos que existência plena requer independência de qualquer outra coisa. O salto especulativo de nossa correlação (ou nossas correlações) para o absoluto se baliza na natureza da existência, que podemos aceitar se rejeitamos a idéia de que o que existe é sustentado ex-nihilo.
Aquilo que existe – em algum dos vários modos de existir e em algum dos muitos esquemas de patrocínio – não tem nada em comum senão o patrocínio ele mesmo, e a dependência mútua que dele decorre. Souriau fala então de uma surexistence, como uma encruzilhada de existências, algo mais próximo de um lugar para a existência do que de um elemento comum entre tudo o que é patrocinado. A surexistence não é um modo de existência mas antes um entulho do que existe: a trama do que foi jogado na existência. Ela pode ser comparada com a über-reality que Kit Fine11 postula em seu realismo neutro fragmentalismo acerca da relação entre realidade e perspectivas (ou entre eventos e a série A do tempo). A über-reality, também ela não é uma perspectiva, é um amontoado de perspectivas incoerente. Não é mais do que aquilo que é real em alguma das perspectivas (temporais). E as perspectivas são também esquemas de patrocínio – é o instante presente que patrocina o evento que eu esteja sentado. Se consideramos todos os patrocinadores – ou todos os modos de existência – chegamos a estes superentulhos cubistas.
Termino esta sessão com uma possível lição a ser tirada da era do correlacionismo. Se a metafísica clássica postulava uma única perspectiva sobre as coisas – uma paisagem – o correlacionismo introduziu o peso de uma perspectiva. No esquema de Kit Fine12 acerca da relação entre realidade e perspectiva, o correlacionismo nos urge a abandonar a neutralidade da realidade e a fazer uma metafísica orientada a uma perspectiva, a nossa – alguma variante de uma metafísica descritiva. Mas a descoberta da perspectiva pode nos levar a uma metafísica de pluralidades de perspectivas, uma metafísica fragmentalista em que cada coisa seja tributária de pelo menos uma perspectiva. Ou seja, o correlacionismo teria introduzido um elemento novo à metafisica, e não a sua derrocada.
3. A anarqueologia e três ontografias comparadas
Para finalizar, gostaria de falar algo muito rapidamente sobre um projeto. Seguindo na anarqueologia de fragmentos de Heráclito – que tentam carregar a força pressocrática das inaugurações – quero considerar comparativamente três ontologias que são também maneiras de entender o polemos de Heráclito. Em alguns sentidos, as três dialogam com o que anda em jogo neste renascimento da metafísica.
a. Ontologia do fragmento
A ontologia do fragmento é uma espécie de filosofia do processo. Nela interagem três modos de existência básicos que se tecem mutuamente: os fragmentos, as composições a partir dos fragmentos e os compositores de composições. Nada é apenas uma delas; fragmentos podem ser refragmentados e recompostos já que não são arqui-elementos, itens originários ou ingredientes básicos do mundo. Composições são produtos de alianças entre compositores – que são como patrocinadores. Em vez de pensar em concretos, abstratos, particulares e universais, a ontologia do fragmento pensa em termos de diversas composições patrocinadas por compositores que são também fragmentos. Assim, o vermelho é um patrocínio de ondas, de mecanismos visuais de percepção, de superfícies que se aderem a pigmentos etc. O vermelho – como um universal concreto – também é um fragmento que promove outras composições. Essa é uma lição a ser tirada da noção de intencionalidade física de Molnar: se alguma coisa intenciona fisicamente, ela sempre intenciona como alguma coisa, como um exemplar, não um singular. A instauração depende sempre de tratar algo como algo. A singularidade de alguma coisa é uma singularidade de patrocínios e há algumas maneiras possíveis de lidar com a dificuldade de lidar com a identidade dos indiscerníveis.
Nenhum fragmento é uma unidade irredutível e nem uma composição pronta. Os fragmentos são hunky, nos termos da discussão de Bohn e Schaffer; ou seja, são gunky (tem partes) e junky (são partes). Se todos os fragmentos – e portanto todos os compositores e composições – são nacos, não há uma parte pura e nem um todo último. Ser um naco de algo ou um naco a ser cortado depende de como o naco é tratado – é apenas no trato com o resto do mundo (com os patrocinadores) que alguma coisa chega a existir de um modo. Ademais, nada é composição, fragmento ou compositor sem patrocínio. Meillassoux diria que se trata ainda de uma ontologia demasiado humana por causa do apelo à composição. Penso que neste caso, muito se depreende da noção de existência atrelada à instauração. Se há agentes que promovem a existência, eles tecem a trama da ontologia.
b. Ontologia da dúvida
A ontologia da dúvida entende o mundo como alheio a qualquer determinação. A dúvida é o mobiliário do universo, ela não é uma atitude diante do mundo mas é um componente do mundo mesmo. Nossas dúvidas podem ser sintomas de como é o mundo. Assim como Meillassoux faz da factualidade um elemento do mundo, esta ontologia lê a literatura cética a contrapelo para entender que a suspensão do juízo não é um estado de um sujeito, mas a natureza das coisas. As coisas são hesitantes entre muitas alternativas. Diante de uma ontologia da dúvida, a incerteza é a atitude epistemológica adequada, ela promove um acesso direto e imediato às coisas já que são elas que estão em disputa. Ter acesso às múltiplas possibilidades é ter acesso às vacilações das coisas, à sua polêmica. Trata-se de uma realidade crucialmente inacabada e, assim, a hesitação pode ficar parecendo o sentimento que tem o contato mais imediato com a mobilidade multidirecional das coisas.As dúvidas são, segunda a ontologia da dúvida, as mais genuínas portadoras de verdade, elas tratam do risco, da polêmica, da incerteza que é constitutiva do mundo. A dúvida é a expressão dos efeitos que o polemos promove sobre todas as coisas. As certezas, em contraste, não são mais que atores de específicos cenários que tomamos como certas para que possamos entrar no jogo de abrir e fechar as portas da dúvida.
Uma ontologia da dúvida está associada a uma metafísica do algum: há dobradiças (no sentido de Wittgenstein em Da Certeza) no mundo que são passageiras e relativas, servindo para colocar em funcionamento a dúvida constitutiva. Não podemos especificar o que é o caso em meio às dúvidas, mas podemos dizer que algo é o caso – há uma massa de certezas no meio das dúvidas, mas elas não são fixas e nem determinadas. Essas certezas são condições de possibilidade para a dúvida, elas a sustentam. Eis o elemento de especulação aqui: nossas dúvidas não são senão um caso de como são as coisas – elas só parecem imperfeitas se contrastadas com um mundo de determinações. Mas a ontologia da dúvida – como a ontologia do fragmento – não é meramente uma ontologia da facticidade absoluta porque algumas dúvidas empurram outras – como algumas composições promovem outras. Há uma interconexão entre as dúvidas – e entre elas e as dobradiças – que é diferente da contingência de cada elemento do mundo isoladamente.
c. Ontologia das urgências
Por fim, a ontologia das urgências. Ela começa com um contraste com o atualismo; há uma tectônica subcutânea aos acontecimentos: uma região onde se movem as primeiras e as segundas potencialidades de Aristóteles, as virtualidades, aquilo que está prestes a eclodir, aquilo que está por um triz. Há uma conspiração subterrânea de desejos, sanhas, tendências, disposições e... urgências. Há urgências no mundo, e elas se distinguem por natureza (ou pelo menos por graus) das inclinações, dos ímpetos e dos desejos. O que é urgente reconfigura tudo, requer que alguma coisa aconteça; a urgência impõe seu próprio tempo. As urgências são comichões, elas não são propriedades (digamos, propriedades disposicionais) de algum objeto já que elas são também um estado de estar prestes, de estar a beira de eclodir. É por isso que elas podem ser pensadas como atoras, como aquilo que termina por moldar o que há em volta.
Uma ontologia das urgências olha para as alianças – digamos entre compositores – e enxerga o que constitui um teste de forças para a composição resistir. Diagmos assim, as montanhas e os lagos não podem subsistir ao terremoto tal como estão. Uma ontologia do fragmento diz que há um compositor que vai parar de compor as montanhas e os lagos, digamos o fragmento de terra que os sustentava. Uma ontologia das urgências vai antes pensar na urgência que surge da tectônica e à qual o terremoto responde. As urgências subjazem a toda composição. Talvez elas tenham que ser pensadas em um par com algo como as inércias – que fazem as coisas permaneceram até as próximas urgências atuarem. Mas inércias também podem ser pensadas como urgências. De toda maneira, as urgências são o elemento constituinte das coisas e também aparecem em diferentes modos e em diferentes velocidades. Essas velocidades diferentes aparecem porque urgências são acelerações, são processos acelerados que emergem. Urgências são as comichões que termina por fazerem as coisas serem como elas são.
Estas são algumas observações sobre o que me parece ser o futuro da ontologia. Começo com uma análise de conjuntura filosófica bastante geral e termino com uns projetos de trabalho.
1.Renascimento da metafísica: os agentes provocadores
Nos últimos anos temos assistido a uma retomada do interesse pela metafísica da parte de quem faz filosofia. A cena filosófica parece hoje ter mais espaço para questões acerca do que há e um rumor que está bastante espalhado diagnostica que alguns projetos associados à crítica à metafísica – entre eles as concepções de filosofia oriundas a partir (do correlacionismo) de Kant, a concepção de filosofia como estudo do método da ciência, a virada linguística e a concentração da fenomenologia na consciência – estão exauridos e precisam ser substituídos por uma nova injeção de reflexão metafísica. A idéia é a de uma retomada da concentração sobre como as coisas são, de uma retomada da consideração acerca dos elementos constitutivos do mundo – e essa concentração ou consideração, como vou dizer mais tarde, pode ser entendida como uma atividade de análise ou uma atividade de especulação.
Diferentes tradições preferem entender a retomada em diferentes termos e também preferem entender o que está sendo retomado também em diferentes termos. O termo 'metafísica' às vezes é deixado no limbo e o termo 'ontologia' é usado para marcar a retomada. Ambos os termos carregam o ônus de terem sido usados de maneira pejorativa ou derrogatória por projetos filosóficos recentes. Heidegger incitava à superação da metafísica em sua exclusiva preocupação com os entes e a uma retomada da questão ontológica; Lévinas incitava o abandono do pensamento ontológico que reduz o outro ao mesmo em favor de uma metafísica em que o outro e o mesmo possam se concatenar de outras maneiras. Os momentos heróicos do giro linguístico analítico repudiavam a metafísica em favor de uma análise lógica ou em linguagem do senso comum dos seus problemas – enquanto consideravam a ontologia como considerando aquilo que supomos que há (o compromisso ontológico, a ontologia subjacente etc.). A retomada da metafisica (ou da ontologia) se move neste terreno minado em que os termos nos obrigam a dizer coisas como “ontologia (ou metafísica) não no sentido de … mas antes no sentido de ...”. Há que se fazer algum malabarismo para poder voltar a usar esses termos minados sem ter que repudiar tudo o que uma enorme temporada de afastamento de um deles ou de ambos produziu ou provocou. Alguns personagens da retomada fincam pé em algum destes termos – como Graham Harman, Mumford, os australianos ou os whiteheadianos com o termo 'metafísica' ou Heil e Martin ou os heideggerianos ou alguns fenomenólogos com o termo 'ontologia'. Alguns outros preferem falar de uma retomada da especulação – como Meillassoux, por exemplo – para admitir claramente o legado da crítica à metafísica. De todo modo, há uma certa tendência geral comum na retomada – aquilo que podemos identificar como um renascimento. De algum modo a filosofia deixou de ser vista em geral e majoritariamente como uma empreitada de evitar ou passar ao largo de questões metafísicas (vou usar um termo minado carregando as minas comigo).
Penso que há muitos fatores que levaram a este renascimento se considerarmos a filosofia da segunda metade do século XX. Estes fatores não são necessariamente convergentes, e eles não tiveram nem de longe o mesmo impacto sobre todas as tradições que passaram por retomadas da metafísica. Alguns destes fatores são claramente específicos à algumas tradições enquanto outros são mais gerais ainda que adquirem sabor específico em diferentes círculos. No espírito de uma análise de conjuntura, tento aqui listar alguns destes fatores.
a. A inescapabilidade da metafísica
Evitar a metafísica é difícil. As vezes isso torna o pensamento filosófico desnecessariamente tortuoso. Muitas vezes tentar passar ao largo de suposições metafísicas problemáticas nos leva a outras, como numa dança pendular e com recuos. Deixar de falar de propriedades em favor de predicados não dissolve a questão dos fazedores de verdade – aquilo que torna uma frase com esses predicados verdadeira. Se não há fatos no mundo, o que há? Evitar postular universais leva aos problemas do nominalismo, entre outros o problema da co-presença de particulares. Mesmo tomando uma instância canapiana em favor de convenções nos leva a questões acerca de quem convenciona. Heil e Martin, em The Ontological Turn, procuram mostrar que o giro linguístico não sai do chão sem pressupostos ontológicos:
imagine that someone denies the existence of natural divisions in the world: all depends on language. Language “carves up” reality; and to the extent that language is arbitrary or conventional, so are the elements of reality. Before you rush to embrace a view of this sort, however, you should ask yourself what it implies about the ontology of language. [...] Are we supposed to regard tables, mountains, and electrons with suspicion, while accepting syllables and morphemes as immune to doubt? If the world is a linguistic construct, then it is hard to see how language could itself be a part of the world. But then what is it?1
O giro ontológico pretende então tornar explícitas as questões que estavam apenas supostas ou insinuadas para que as atitudes possam ser vistas mais claramente.
Pode-se tentar resistir à inescapabilidade de pelo menos duas maneiras. Pode-se tentar fazer o mínimo de metafísica – optar por alguma ontologia desértica, austera, parcimoniosa. Se a metafísica é necessária, aplique modéstia ao fazê-la. Mas pode-se suspeitar desta injunção. A modéstia pode não ser o melhor guia pela metafísica, mesmo se considerarmos tendências Ockhamianas em filosofia, uma ontologia desértica pode inflacionar a política, a epistemologia ou a estética. Por que a navalha seria aplicada primariamente à metafísica? De qualquer maneira, a atitude com respeito à metafísica é central nos projetos filosóficos, ela implica muitas coisas. Paul Ennis diagnostica que a metafísica sempre teve pelo menos uma centralidade negativa na filosofia; o que acontece neste campo tem impactos por toda parte.
b. Atitudes com respeito à ciência
Na era da rejeição da metafísica a filosofia teve muitas diferentes atitudes com respeito à ciência. De afastamento, de tentar salvá-la de qualquer acusação de metafísica, de auto-imolação em favor dela etc. A ciência ocupou espaços antes próprios da filosofia e em particular tendeu a substituir aos olhos do público em geral a filosofia como endereço para questões metafisicas. Ao longo do século XX às tendências de desconsideração da ciência como empreitada de pensamento e de reconstrução da ciência para que ela não tenha compromissos metafísicos (ou compromissos metafísicos demasiados) foi agregada a tendência a alguma forma de realismo acerca dela. Os realismos científicos proporcionaram o uso de elementos de teoria científica em empreitadas metafísicas (penso em alguns elementos dos trabalhos de Stengers, Deleuze e Churchland por exemplo) e uma imagem da ciência em que ela parece estar em contínuo com a metafísica chegando a parecer por vezes nada mais que metafísica, em um bom sentido (como insinua Quine, o primeiro Putnam, Boyd). Argumentos como o argumento do milagre2 pela verdade aproximada de teorias científicas apontam na direção de uma reabilitação da metafísica, na forma científica, contra aquilo que se disse contra ela: apenas que o mundo seja em si mesmo do modo descrito por esta teoria (ou uma coincidência em proporções cósmicas) pode explicar certos resultados preditivos.3
Duas atitudes acerca da ciência me parecem importantes para o renascimento da metafísica. Primeira, a atitude naturalista que toma a ciência como base do trabalho filosófico e, por conseguinte, metafísico. O naturalismo em metafísica4 – que encontra correlatos na atitude em relação à matemática de filósofos como Alain Badiou e Penelope Maddy – entende que a metafísica começa onde a ciência termina. É interessante comparar as semelhanças do naturalismo com a filosofia especulativa de Whitehead e seus seguidores contemporâneos (Stengers, Debaise etc.). O naturalismo abriu caminho para investigações também acerca da metafísica da ciência, como chamam o que fazem gente como Mumford, Beebee, Bird etc. Trata-se de encontrar a metafísica que está subjacente à ciência, aquela que melhor a explica ou melhor a estimula. Como uma vez disse Deleuze, esclarecendo o que pretendia fazer, trata-se da metafísica que a ciência necessita5 É interessante notar que a metafísica que a ciência necessita pode ser muito diferente daquela que ela comumente pressupõe.6
Segunda, a atitude de politicação da ciência que enxerga que o império cientifico é um estado de exceção em que muitas crenças são impostas dogmaticamente apenas por terem o crivo de um dispositivo cientifico. A modernidade teria tentado ser este estado de exceção em que a natureza foi arrancada do âmbito do político. Esta atitude é interessante quando ela é associada, como em Latour, com uma imagem de política que se confunde com uma metafísica e uma imagem geral da natureza como prova de forças, alianças e empreitadas de redução e irredução enquadra tanto o esforço científico quanto o discurso moderno acerca dele. Segundo esta segunda atitude, a ciência é vista em um quadro em que nós não estamos de fora contemplando uma ordem natural estabelecida, mas antes armando o mobiliário (provisório) do universo. Uma vez rejeitada a pretensão moderna de estatuto especial da natureza (e da ciência que a guarda), as teorias científicas se tornam como quaisquer outras teorias, prontas para serem comparadas, confrontadas e para participarem da bricolage da política das coisas.
c.Ancestralidade, realismo e descontentamento com o correlacionismo
Em parte inspirado pelo realismo científico, considerar o conhecimento do mundo intangível passou a ser menos atraente. Brassier, por exemplo, considera que a contra-revolução ptolomaica – disfarçada de revolução copernicana, conforme a terminologia introduzida por Meillassoux – de Kant e seus seguidores foi movida por uma manha contra a descentralização progressiva que a ciência promove em que os sujeitos deixam de ter tanta importância. O diagnóstico de Meillassoux é que a ancestralidade – a existência de realidades para além da correlação entre nós e o mundo – sempre foi colocada de baixo do tapete pelos filósofos correlacionistas do século XX, para ele a maioria dos filósofos analíticos e dos filósofos continentais representados nas figuras emblemáticas de Wittgenstein e Heidegger. Uma insatisfação com o correlacionismo inspira de alguma maneira uma atitude positiva com respeito a projetos metafísicos. Meillassoux aponta para uma motivação que não vêm da ciência mas antes da substituição da metafísica pela religião para muitas pessoas – o fideísmo: aquilo que a filosofia não me formece, eu procuro na religião. Seu diagnóstico é que este estado de coisas se despreende do imperativo correlacionista sobre a filosofia: não ir além do âmbito da nossa correlação com o mundo.
Diversas formas de realismo se tornaram sistematicamente mais populares nos últimos anos, não apenas associados à ciência, mas à especulação, ao conhecimento tradicional, às cosmologias míticas, aos relatos de tradições orais etc. A desconstrução chamou atenção para compromissos ontológicos que podem ser identificados em textos de todo tipo. Esses compromissos podem ser eles mesmos colocados em baixo do tapete, mas eles suscitam questões, inclusive aquelas com respeito à ontologia dos tapetes sob os quais as colocamos. Em todo caso, atitudes realistas impuseram uma maior simpatia com respeito às empreitadas metafisicas. Vale notar aqui também a retomada do interesse pela noção de natureza, e por um realismo com respeito aos discursos acerca dela. Iain Hamilton Grant aproveita este ensejo para se apoiar em Deleuze e Guattari na direção de uma espécie de reabilitação de uma Naturphilosophie à la Schelling. É preciso ser realista acerca da natureza e é preciso fazer perguntas como àquelas acerca da gênese dos corpos a partir da matéria. Essas atitudes realistas abrem as portas para o renascimento.
d. Os limites do giro linguístico
O giro se tornou estéril. Certas questões ontológicas se acumularam em baixo dos tapetes. Os giros ontológicos e especulativos são uma resposta a esta exaustão. Não se trata de abandonar o giro, mas de recalibrá-lo. Levi Bryant diz:
I think that there is much of value in the linguistic and semiotic turn and that it would be a mistake to throw out the linguistic and semiotic philosophy developed in the last one hundred or so years. The problem with the linguistic turn is that it tended to erase objects underneath language or the signifier. […] With respect to the linguistic turn, my strategy is to propose a delicate shift in perspective. Rather than thinking in terms of objects passively receiving form by language, I instead propose that we think in terms of entanglements of objects. If the shift from a logic of in-forming to entanglement is advisable, then this is because entanglements allow us to think in terms of all entangled objects contributing differences of their own as they weave themselves together, rather than thinking in terms of only one agency contributing all the important differences. […] Rather than thinking of one object overdetermining all the other objects by actively giving form to those objects, we should instead think of objects on a flat ontological plain among one another creating distinctive diffraction patterns as their differences interact with one another.7
Ao invés de substituir um giro por outro, reinterpretar o giro linguístico à luz de interesses metafísicos mais amplos. Talvez, por exemplo, podemos entender tudo o que a filosofia analisou acerca da linguagem como sendo acerca de partes do mundo que se tornam visíveis através da linguagem ou que tem a linguagem como exemplo.8 Podemos entender a linguagem como um caso entre outros.
Em conexão à reinclinação do giro linguístico, é interessante lembrar as críticas à analiticidade e a um escopo especial do que pertence ao convencionado ou ao linguístico. Suspeitas como as de Quine a um âmbito separado do analítico seguramente teve um papel na retomada da metafísica já que se não há um âmbito de análise em que se trata apenas da linguagem e não do mundo, não faz sentido uma filosofia que se exima sistematicamente de tratar do mundo.
e. Pós-humanismo
As críticas à metafísica foram frequentemente baseadas nos limites, nas capacidades e nas práticas humanas. Ao lado do correlacionismo clássico, reside um humanismo: podemos saber de nós e nós somos centrais para a filosofia. Uma vez que o homem é considerado morto, como proclamou Foucault, que o nós é entendido como plural não tendo que ser unificado pelo que é humano – há devires rato, pedra, bactéria que atuam sobre o pensamento – não há mais uma terra privilegiada de fora da metafísica e que dá as bases para uma crítica. Se a suspeita filosófica se torna mais próxima de uma metralhadora giratória, não há mais uma posição a partir do qual se possa atacar a metafísica. A filosofia transcendental de Kant pretendia concentrar os olhos sobre o sujeito, mas nada de susbtancial pode ser dito acerca do sujeito-em-si. Não há um terreno de fora da metafísica já que o sujeito está emaranhado nas tramas do universo ou dissolvido pelas forças que o estão compondo.
Aqui é interessante notar a influência de estruturalismo e do pós-estruturalismo em seu pós-humanismo em que diferenças e espelhos, dos externalismos e anti-individualismos que provocaram um estranhamento com respeito à imagem de primeira pessoa de nós, de uma tendência ecológica menos antropocêntrica entre outras. Essa distância em relação aos humanos proporcionaram espaço para políticas da natureza, para diversas filosofias do processo inauguradas pela manobra de Whitehead de montar um método especulativo que não tome nossa cognição senão como um ponto de partida – ou um exemplo – das preensões universais, para variedades de panpsiquismo9, para filosofias orientadas a objetos, e para uma atenção ao completamente outro em relação ao humano – tal como aponta a fenomenologia alienígena das coisas de Ian Bogost, a metafísica da predação de Viveiros de Castro ou o entusiasmo pelo estranhamento da matematização de Meilllasoux. De maneira geral, a descentralização nos humanos abre as portas para um foco para fora de nós.
f. Potências, virtualidades, modalidades
Um outro fator foi o da reabilitação das modalidades pelo trabalho de Kripke. Trata-se de um fator que afetou mais as comunidades analíticas que até então tinham compromissos com uma linguagem atualista motivados por suspeitas acerca das possibilidades e necessidades. Kripke motivou um conjunto de trabalhos em metafísica que fizeram uso da noção de mundos possíveis (como os de David Lewis, Kit Fine, Plantinga etc) e a toda uma metafísica da modalidade. Indiretamente, ele estimulou a ruptura com metafísicas humeanas em favor de essencialismos (como em Brian Ellis) ou de disposicionalismos em geral (Molnar, Mumford, C. B. Martin etc). Além disso, um compromisso vago com a redutibilidade das singularidades à suas propriedades universais foi em grande medida substituído por uma atenção ao singular (por exemplo, ao objeto) independente do que é comum entre ele e qualquer outra coisa.
As noções de potência e virtualidade sempre foram incômodas para os críticos da metafísica, já que esta frequentemente argumentou em termos modais, apelando quase sempre para a fragilidade das necessidades e conexões necessárias postuladas pelas metafísicas. Noções como a de virtualidade foram gradativamente sendo reabilitadas desde Bergson e passando sobretudo pelo trabalho de Deleuze. Elas apontam para alguma coisa subjacente ao escopo dos objetos e propriedades – que parecem mais facilmente fora das garras da metafísica ou pelo menos dão a impressão de serem compromissos ontológicos austeros – e que de alguma forma tem alguma prevalência genealógica sobre estes. Potências e virtualidades, contudo, não apontam para conexões necessárias; de fato, elas podem ser alternativas à conexão necessária se elas forem entendidas como diferentes da modalidade alética da possibilidade (definível em termos de necessidade alética). Parece por vezes que o atualismo humeano foi por muito tempo o motor de muito da crítica a metafísica – uma vez que este é tornado explícito, ou criticado ou dissolvido, a crítica perde muito de sua força.
2. O patrocínio contra a correlação: por uma metafísica do suporte
O renascimento da metafísica, tal como eu o entendo, não é uma mera retomada da metafísica tal como ela era feita e concebida antes das suspeitas a tirarem do primeiro plano. O renascimento é o nascimento de uma outra coisa, de outras maneiras de pensar no que há. Em particular, não penso que podemos simplesmente resuscitar uma metafisica de objetos e propriedades com alguns adendos. Penso também que a metafísica que virá não será aquela que descreve a partir de uma perspectiva de parte alguma – uma perspectiva sem perspectiva – uma paisagem dos componentes do mundo. Formulei (com Tomás Ribeiro10) uma contraposição entre uma metafísica da paisagem – prisioneira de uma imagem de que o mundo pode ser contemplado ou em primeira ou em terceira pessoas – e uma metafísica de tramas onde não há nada de desde sempre assentado que permita que o mundo possa ser contemplado desde parte alguma. Na metafísica das tramas a fricção entre os agentes compõem a cena. Esta imagem se assemelha àquela que emerge das filosofias do processo e ela tem um grande impacto na metafísica que se segue. A existência deixa de ser pensada como uma presença plena, como um dado alheio a qualquer processo de produção – não se pensa mais de uma maneira criacionista em que aquilo que existe mais plenamente é aquilo que menos depende do que quer que seja. Penso que o futuro da ontologia envolverá algumas maneiras de repensar a natureza do que existe. A filosofia do preocesso permite repensar o contraste entre realismos e idealismos repensando o contraste entre o que depende de nós e o que não depende de nós – mas que pode depender de outras coisas.
Meillassoux compara duas estratégias para escapar das garras do correlacionismo. Gostaria agora de elaborar meu caminho em relação à este mapa de estratégias. Ele entende que uma vez que o correlacionismo entende que há uma correlação factual entre nossas capacidades – ou nossa estrutura transcendental, ou nosso modo de existir ou nosso jeito de agir – e o mundo do qual não conseguimos sair em direção ao acesso a algum absoluto, ele então diz que podemos escapar desta correlação se considerarmos ou a) a correlação ela mesma absoluta ou b) a facticidade absoluta. Ele recomenda a segunda via uma vez que a primeira não nos levaria longe de uma metafísica da correlação – ou de metafísica da subjetividade – que não levaria a sério a facticidade da correlação. Tornar a correlação absoluta, ele diz, estaria em choque com o princípio correlacionista de que é contingente que estejamos em uma correlação – poderíamos, por exemplo, possuir um intelecto inteligível do qual fala Kant na terceira crítica, que dispensa conceitos para ter intuições acerca do mundo. De resto, tanto a facticidade absoluta quanto a correlação absoluta estariam para além do que nos é permitido conhecer (ou pensar) já que tratam de como são as coisas em si mesmas.
Retomemos por um instante a perspectiva das filosofias do processo. Entendo que um elemento central de uma filosofia do processo é algo como a concepção de existência como instauration de Etienne Souriau. Souriau advoga que nada existe sem ter sido posto a existir de alguma maneira, e que, dentre as muitas maneiras de existir, todas requerem alguma manutenção – nada é instauré de uma vez por todas, tal instauração requer uma constante atenção já que nenhum criador de existências atua como um relojoeiro perfeito. Aquilo que existe foi instaurado e contribui para instaurar alguma coisa. É uma cadeia de produção, um processo de efetividade que entende de uma certa maneira a idéia eleata de que aquilo que existe atua sobre alguma coisa. A idéia de instaurer tem um parentesco com a palavra de Heidegger gestiftet que meu colega e amigo Gerson Brea gosta de traduzir como patrocina. Nada existe sem patrocínio. Nenhuma coisa existe por ela mesma ou produz nenhum efeito. O rio é patrocinado pelas suas bordas, as flores pelas abelhas, os governos pelos seus comparsas. O patrocínio é da natureza mesma da existência segundo Souriau. E quase sempre estamos diante de uma pluralidade de patrocínios para que alguma coisa exista. Tomo esta noção de existência como um bom princípio. (Trata-se de um princípio ocasionalista holista em que uma coisa está conectada às demais por um esquema de patrocínios, por uma rede em que sempre há uma ocasião conectando o patrocinador e o patrocinado; noto que o patrocínio não é uma relação interna.)
Se o tomamos como um bom princípio, fica interessante retomar a linha de argumentação de Meillassoux contra as metafísicas da correlação – e ali ele inclui as filosofias do processo. Se aceitarmos o princípio da existência com patrocínio, dizemos que se existimos fomos patrocinados e patrocinamos. Estamos pelo menos em uma correlação – é razoável que estejamos em várias. É contingente a qual correlação nós estamos atrelados, mas temos que estar em alguma correlação se existimos. Trata-se de uma concepção do que é absoluto – associado apenas à natureza do que existe – e, assim, uma tese sobre o em-si: o em-si não é algo independente de todo resto e nem transcendente a qualquer patrocínio. Seguramente, isso não implica que o em-si é um para-nós, mas ele é sempre para-algo. Vale notar que podem haver formas de patrocínio, muito diferentes daquelas em que estamos envolvidos, já que há uma pluralidade indeterminada de modos de existência. O correlestracionismo, de certo modo, ensina acerca da dependência do que existe, mas a lição não precisa ser concêntrica a não ser que insistamos que existência plena requer independência de qualquer outra coisa. O salto especulativo de nossa correlação (ou nossas correlações) para o absoluto se baliza na natureza da existência, que podemos aceitar se rejeitamos a idéia de que o que existe é sustentado ex-nihilo.
Aquilo que existe – em algum dos vários modos de existir e em algum dos muitos esquemas de patrocínio – não tem nada em comum senão o patrocínio ele mesmo, e a dependência mútua que dele decorre. Souriau fala então de uma surexistence, como uma encruzilhada de existências, algo mais próximo de um lugar para a existência do que de um elemento comum entre tudo o que é patrocinado. A surexistence não é um modo de existência mas antes um entulho do que existe: a trama do que foi jogado na existência. Ela pode ser comparada com a über-reality que Kit Fine11 postula em seu realismo neutro fragmentalismo acerca da relação entre realidade e perspectivas (ou entre eventos e a série A do tempo). A über-reality, também ela não é uma perspectiva, é um amontoado de perspectivas incoerente. Não é mais do que aquilo que é real em alguma das perspectivas (temporais). E as perspectivas são também esquemas de patrocínio – é o instante presente que patrocina o evento que eu esteja sentado. Se consideramos todos os patrocinadores – ou todos os modos de existência – chegamos a estes superentulhos cubistas.
Termino esta sessão com uma possível lição a ser tirada da era do correlacionismo. Se a metafísica clássica postulava uma única perspectiva sobre as coisas – uma paisagem – o correlacionismo introduziu o peso de uma perspectiva. No esquema de Kit Fine12 acerca da relação entre realidade e perspectiva, o correlacionismo nos urge a abandonar a neutralidade da realidade e a fazer uma metafísica orientada a uma perspectiva, a nossa – alguma variante de uma metafísica descritiva. Mas a descoberta da perspectiva pode nos levar a uma metafísica de pluralidades de perspectivas, uma metafísica fragmentalista em que cada coisa seja tributária de pelo menos uma perspectiva. Ou seja, o correlacionismo teria introduzido um elemento novo à metafisica, e não a sua derrocada.
3. A anarqueologia e três ontografias comparadas
Para finalizar, gostaria de falar algo muito rapidamente sobre um projeto. Seguindo na anarqueologia de fragmentos de Heráclito – que tentam carregar a força pressocrática das inaugurações – quero considerar comparativamente três ontologias que são também maneiras de entender o polemos de Heráclito. Em alguns sentidos, as três dialogam com o que anda em jogo neste renascimento da metafísica.
a. Ontologia do fragmento
A ontologia do fragmento é uma espécie de filosofia do processo. Nela interagem três modos de existência básicos que se tecem mutuamente: os fragmentos, as composições a partir dos fragmentos e os compositores de composições. Nada é apenas uma delas; fragmentos podem ser refragmentados e recompostos já que não são arqui-elementos, itens originários ou ingredientes básicos do mundo. Composições são produtos de alianças entre compositores – que são como patrocinadores. Em vez de pensar em concretos, abstratos, particulares e universais, a ontologia do fragmento pensa em termos de diversas composições patrocinadas por compositores que são também fragmentos. Assim, o vermelho é um patrocínio de ondas, de mecanismos visuais de percepção, de superfícies que se aderem a pigmentos etc. O vermelho – como um universal concreto – também é um fragmento que promove outras composições. Essa é uma lição a ser tirada da noção de intencionalidade física de Molnar: se alguma coisa intenciona fisicamente, ela sempre intenciona como alguma coisa, como um exemplar, não um singular. A instauração depende sempre de tratar algo como algo. A singularidade de alguma coisa é uma singularidade de patrocínios e há algumas maneiras possíveis de lidar com a dificuldade de lidar com a identidade dos indiscerníveis.
Nenhum fragmento é uma unidade irredutível e nem uma composição pronta. Os fragmentos são hunky, nos termos da discussão de Bohn e Schaffer; ou seja, são gunky (tem partes) e junky (são partes). Se todos os fragmentos – e portanto todos os compositores e composições – são nacos, não há uma parte pura e nem um todo último. Ser um naco de algo ou um naco a ser cortado depende de como o naco é tratado – é apenas no trato com o resto do mundo (com os patrocinadores) que alguma coisa chega a existir de um modo. Ademais, nada é composição, fragmento ou compositor sem patrocínio. Meillassoux diria que se trata ainda de uma ontologia demasiado humana por causa do apelo à composição. Penso que neste caso, muito se depreende da noção de existência atrelada à instauração. Se há agentes que promovem a existência, eles tecem a trama da ontologia.
b. Ontologia da dúvida
A ontologia da dúvida entende o mundo como alheio a qualquer determinação. A dúvida é o mobiliário do universo, ela não é uma atitude diante do mundo mas é um componente do mundo mesmo. Nossas dúvidas podem ser sintomas de como é o mundo. Assim como Meillassoux faz da factualidade um elemento do mundo, esta ontologia lê a literatura cética a contrapelo para entender que a suspensão do juízo não é um estado de um sujeito, mas a natureza das coisas. As coisas são hesitantes entre muitas alternativas. Diante de uma ontologia da dúvida, a incerteza é a atitude epistemológica adequada, ela promove um acesso direto e imediato às coisas já que são elas que estão em disputa. Ter acesso às múltiplas possibilidades é ter acesso às vacilações das coisas, à sua polêmica. Trata-se de uma realidade crucialmente inacabada e, assim, a hesitação pode ficar parecendo o sentimento que tem o contato mais imediato com a mobilidade multidirecional das coisas.As dúvidas são, segunda a ontologia da dúvida, as mais genuínas portadoras de verdade, elas tratam do risco, da polêmica, da incerteza que é constitutiva do mundo. A dúvida é a expressão dos efeitos que o polemos promove sobre todas as coisas. As certezas, em contraste, não são mais que atores de específicos cenários que tomamos como certas para que possamos entrar no jogo de abrir e fechar as portas da dúvida.
Uma ontologia da dúvida está associada a uma metafísica do algum: há dobradiças (no sentido de Wittgenstein em Da Certeza) no mundo que são passageiras e relativas, servindo para colocar em funcionamento a dúvida constitutiva. Não podemos especificar o que é o caso em meio às dúvidas, mas podemos dizer que algo é o caso – há uma massa de certezas no meio das dúvidas, mas elas não são fixas e nem determinadas. Essas certezas são condições de possibilidade para a dúvida, elas a sustentam. Eis o elemento de especulação aqui: nossas dúvidas não são senão um caso de como são as coisas – elas só parecem imperfeitas se contrastadas com um mundo de determinações. Mas a ontologia da dúvida – como a ontologia do fragmento – não é meramente uma ontologia da facticidade absoluta porque algumas dúvidas empurram outras – como algumas composições promovem outras. Há uma interconexão entre as dúvidas – e entre elas e as dobradiças – que é diferente da contingência de cada elemento do mundo isoladamente.
c. Ontologia das urgências
Por fim, a ontologia das urgências. Ela começa com um contraste com o atualismo; há uma tectônica subcutânea aos acontecimentos: uma região onde se movem as primeiras e as segundas potencialidades de Aristóteles, as virtualidades, aquilo que está prestes a eclodir, aquilo que está por um triz. Há uma conspiração subterrânea de desejos, sanhas, tendências, disposições e... urgências. Há urgências no mundo, e elas se distinguem por natureza (ou pelo menos por graus) das inclinações, dos ímpetos e dos desejos. O que é urgente reconfigura tudo, requer que alguma coisa aconteça; a urgência impõe seu próprio tempo. As urgências são comichões, elas não são propriedades (digamos, propriedades disposicionais) de algum objeto já que elas são também um estado de estar prestes, de estar a beira de eclodir. É por isso que elas podem ser pensadas como atoras, como aquilo que termina por moldar o que há em volta.
Uma ontologia das urgências olha para as alianças – digamos entre compositores – e enxerga o que constitui um teste de forças para a composição resistir. Diagmos assim, as montanhas e os lagos não podem subsistir ao terremoto tal como estão. Uma ontologia do fragmento diz que há um compositor que vai parar de compor as montanhas e os lagos, digamos o fragmento de terra que os sustentava. Uma ontologia das urgências vai antes pensar na urgência que surge da tectônica e à qual o terremoto responde. As urgências subjazem a toda composição. Talvez elas tenham que ser pensadas em um par com algo como as inércias – que fazem as coisas permaneceram até as próximas urgências atuarem. Mas inércias também podem ser pensadas como urgências. De toda maneira, as urgências são o elemento constituinte das coisas e também aparecem em diferentes modos e em diferentes velocidades. Essas velocidades diferentes aparecem porque urgências são acelerações, são processos acelerados que emergem. Urgências são as comichões que termina por fazerem as coisas serem como elas são.
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