Our script for The Birth of Phtonosophy (mine and Carol Barreiro's) is out in VIS. Here it is:
Cena 1:
Alpendre. Lá está o primeiro anjo, gordo, com uma roupa de terreiro e com um sorriso de quem deitou-se na rede o dia todo. Ele abre os braços, se alonga com demora e, sorrindo, murmura:
ANJO: Ai que preguiça. Preguiça do amor bom. Preguiça do amor tributável. Preguiça do amor que admira sem arrancar pedaço. Preguiça do amor que é caridade e não dilaceração.
O anjo deita na rede vermelha, trançada, cheia de óleos esparramados e, com a voz de uma heresia gnóstica cáustica:
ANJO: Eu sempre amei essa coisa disforme, fugidia, levada, precária, indisciplinada, transformista, safada e violenta que é a sabedoria.
O anjo se balança na rede enquanto levanta as pernas roçando uma na outra. Aparecem agora apenas suas pernas, seus braços do lado de fora da rede vermelha. Aparecem cinco pernas, cinco braços rodando por cima da rede como um carrossel – o anjo agora é um Nataraja cheio de blasfêmia e de lascívia.
E sua voz é mais distante, como uma sombra:
ANJO: Eu procurei a audácia e com ela tive filhos.
A primeira foi Kakia, a maldade, a que abre descendência para a errância, para a imperfeição, para o mal-comportado – sem elas não vale a pena gerar nada. Ela veste uma saia branca, transparente e um casaco azul ou verde, um casaco de jogging com listras brancas. Ela salta por cima da rede do anjo que segue rodando suas pernas e braços como um carrossel. Kakia não tem fronteiras, seu corpo é uma porta aberta e ela vaga como se seus dedos tocassem facilmente o céu e o piso.
Depois vem Zelos, o zelo. Zelos veste as cores da terra – como um bufão elegante, com detalhes dourados em seus ombros. Ele bate com a ponta dos dedos na cabeça de Kakia, na cabeça do Anjo Nataraja, na sua própria cabeça.
Depois entra Ftono:
FTONO: Não me basta ser eu. Tenho uma ânsia de fome de carne por tudo o que é alheio. Eu não tenho âmago. Tenho ciúmes de vocês todos, desde antes de vocês nascerem. Eu sou a vítima e o carrasco, eu sou o vampiro do meu próprio coração. Héautontimeroumenos!
Ftono pula corda com as outras duas, Erinnys, a fúria, e Epithymia, a luxúria. Os três filhos mais jovens da audácia. De longe aparece Pina Bausch correndo desde fora do enquadramento, corre com determinação e abraça Ftono, Erinnys e Epithymia de uma só vez. A corda que eles pulavam se entrelaça entre eles, passando pelas pernas de Epithymia, pela dorso de Ftono, pelas ancas de Erinnys e pelo quadril de Pina. Pina repete:
PINA BAUSCH: Tudo pode ser considerado pelo avesso, tudo pode ser considerado do avesso, tudo pode ser considerado do avesso, tudo pode ser considerado do avesso.
Ftono tem ciúmes do modo como Epithymia roça seus dedos em Pina. O anjo voa. Erinnys se retira correndo, Epythymia e Pina se deitam na rede vazia. Ftono fica balançando a rede. O pensador de Rodin surge da casa e se senta na mesa do alpendre. Ele não se move, apenas pensa:
RODIN: O ridículo nos engole como crianças.
Cena 2:
O mesmo alpendre. Um pequeno animal se contorce para sair de um casulo. Tenta se soltar de todas os modos, não consegue. Ao lado, duas sapatilhas quase o pisam. Estão prestes a pisar o casulo. A câmera sobe até o bailarino que se desajeita sobre o pequeno animal. Um enorme Novarina. Novarina grita:
NOVARINA: Sair do corpo. Sair do corpo. É isso que nos anima todo o tempo, nos anima pelo sexo, pela sabedoria, pelo pensamento, pelo esporte. Nada mais que sair do corpo.
Por trás de Novarina chega Hubert, que o empurra. Novarina cai no chão. Hubert o chuta, e depois o acaricia.
HUBERT: Eu te invejo, eu te invejo, eu te invejo. Onde está meu primo?
Hubert olha para frente e vê Lacan, seu primo, que da pulos com seus dois pés.
LACAN: Todo desejo é o desejo do outro. Do outro, do outro.
Lacan deita-se ao lado de Novarina. Hubert senta-se e logo aparece na cena a Bailarina Descalça, ela não dança, apenas pisa levemente nas bexigas dos dois homens deitados:
BAILARINA DESCALÇA: Todo desejo acometido da violência que necessariamente o gera transcreve uma realidade de vida uterina. O que se inscreve e o que escrevemos participam de uma mútua articulação avessada que é o cambio externo-interno. Mas, ao menos nessa vida, esta relação se compromete na fisiologia extremada das vias públicas da intimidade em forma de publicitárias aparições do eu; o corpo confinado ao seu valor midiático de moeda valorativa da imagem que representa uma estratégia de vida; o simulacro elementar do teatro cotidiano; as asperezas e os detalhes por onde se passam as rachaduras de bloqueios somatizados em sua fingida aparição de felicidade. Mas também a estranheza sugerida em seus momentos de extremado lugar em que ‘‘não se aguenta mais’’, a tensão necessária da vida em si, a tensão do fora cultivada em natureza única e singular?
Cena 3:
No quarto de uma maternidade. Os cinco bebês acabaram de ser paridos. A audácia dorme. Cada bebê está em seu berço. Ao lado de cada berço um criado-mudo. Em cada criado-mudo uma imagem, pequena, como em um oratório. Sempre é a imagem de Ftono, cercado de ftonisas de todas as cores que o sobrevoam – todas invejosas, todas videntes, todas alvoroçadas. A Enfermeira Luminosa Razão chega com panos quentes sobre os cinco bebês. Ela levanta os joelhos a cada passo lento que dá entre as camas da maternidade. Ela se veste apenas com muitos pequenos retratos de homens, tamanho ¾ colados na pele. No pescoço veste retratos de Leibniz e Spinoza quando jovens, o primeiro audacioso, o segundo furioso. Os dois zelosos. Pelo dorso imagens lutadores de Sumô, mas no bico dos seios duas imagens de Jean-Luc Nancy. Pelas ancas, lombo e torso, retratos de Artaud e de Protágoras ambos sorrindo. Há abismos na matéria:
ENFERMEIRA LUMINOSA RAZÃO: A consciência do corpo, a consciência de si é muitas vezes estipulada somente pela realidade cognoscível do eu. O sujeito elaborado a partir de sua estrutura reflexiva sabe de si a partir da casualidade moral de seus meios, e se depara com a verdade a fim de repensá-la, tracioná-la, invadia-la , radicaliza-la ou muitas vezes apenas aceitá-la. Nessa expedição de si, o contorno da consciência bruta baseia-se na razão. Mas uma razão dançante traça uma nova consciência, nasce de um corpo inconsciente do gesto móvel, da violência mesma que o faz sair do lugar, jogando-se na realidade do aberto. Essa inconsciência, nebulosa por tradição, vinda diretamente da turbilhosa Nix, reclamada na psicologia supostamente estruturada – nada tem de entrave/treva quando esclarecida na superfície de um corpo que baila. A superfície da inconsciência suspende seu teor intangível e inaugura uma nova consciência do corpo. Por isso inveja-se, inverte-se, dobra-se.
Ela cai aos pés de uma das pequenas imagens de Ftono, sobre o criado-mudo ao lado do berço de Zelos:
ENFERMEIRA LUMINOSA RAZÃO: Ftonos, abençoa minhas palavras. Eis o charme de invejar, eis a consciência de si, querer engolir do outro que te salta em afetos nada discretos na sua ininterrupção de malemolência, um novo poder de inconsciência. O desengonço do filósofo é pois, seu corpo de baile, ele também quer ser invejado numa razão que possa dançar.
Cena 4:
Um descampado cheio de pedaços de máscaras no chão – olhos de vidro, bigodes postiços, perucas. Ftono está coberto de barro e se arrasta pelo chão.
FTONO: A inveja é centrífuga. Ela nasce do estranhamento. Ela nasce de um vetor centrífugo que me arrasta em direção a outro. A amizade e o amor produzem um conforto, um acalento em que a outra permite, endossa, reforça e legitima o que eu sou. A inveja arranca raízes. Ela não é um assunto de mesmos, ela é uma destituição dos mesmos já que é um asco de si. A inveja é uma fúria de mim contra mim, uma mobilização das minhas vísceras contra suas hospedeiras. Um mal-estar de si. A inveja é o avesso da auto-defesa.
Ftono agora encontra Dioniso, entregue a um bacanal cósmico de dedos e línguas e pelos e gotas de vinho, encontra Hera, soberba, altiva, suficiente, encontra Zeus, rodeado de poderes, de cetros, de varinhas de condão, encontra o Anjo Nataraja, com sua preguiça herética. Diante de todos eles, Ftono se arrasta de compulsão, quer arrancar de cada um uma seiva, ergue os braços para tentar trazer para si os espasmos das entidades. Depois de se arrastar em círculos em torno destes quatro polos, Ftono sente a presença no centro do retângulo de Sophia e se arrasta até ela. Ftono estende suas mãos em direção ao dorso de Sophia, ela plácida na cara, lânguida no corpo. Sophia logo chama seu amigo, o Filósofo que vem com um sorriso como o da máscara de Guy Fawkes, contente mas insaciado. O filósofo comede – mas dança com suas mãos e dá o braço a Sophia e a convida para caminhar. O filósofo fala, mas é como se fosse em uma gravação:
FILÓSOFO: Inveja. Ciúmes. Porque o sentido invejável é sempre fora, o objeto da inveja já não é pois um objeto, é objetificar-se. A dança celebra uma morte do sujeito, envaginado em plena consumação do que explora/explode em vida. O Fora, o campo aberto que tensiona e envagina-se. Já a sabedoria é um contorcer-se de dobras internas, é uma dança consolidada – são as marcas que ficam depois que os corpos passaram, um emaranhado de vestígios, um chão.
Sophia vai sendo conduzida pelo filósofo enquanto Ftono se arrasta diante dela. Até que ela para e olha para cima – num gesto largo, larga-se ao chão onde encontra Exu, todo de vermelho, da cor da rede do anjo, e com o corpo plácido, a cara lânguida:
EXU: Tua casa não é boa, vem comigo que eu vou te mostrar algo melhor.
De súbito, desaparece Exu e depois Sophia, e depois também Ftonos. Do chão emerge uma coisa diferente, um ftonósofo vestido com uma camisa branca apertada e uma calça preta larga. Veste também uns sapatos vermelhos e traz anéis em todos os dedos, cada um com uma pedra preta. O ftonósofo se levanta do chão e faz lentamente a pose de quem vai tirar uma foto de passaporte. Uma voz em off, com a entonação de quem apresenta um candidato aos seus eleitores:
VOZ EM OFF: A ftonosofia contrasta com a sabedoria auto-complacente e contente de si que tem um diagnóstico pronto - ou uma descrição cabível - de tudo o mais que lhe é apresentado. Contrasta com a sabedoria que tem nomes para os bois - a ftonosofia estranha os bois, eles são monstros, são súbitos touros de Pamplona no dia de festival de San Fermín. A ftonosofia, como a filosofia, não é identidade com uma Sophia, ela também introduz um outro, mas um outro que não procura colocar a Sophia a seu serviço mas antes habita na pulsão de dissipação.
Interlúdio Geofilosófico:
Imagens subterrâneas. Escavadores retiram das profundezas abaixo do chão fragmentos de sapatilhas de ponta. Roedores acorrem até os fragmentos. Mais e mais sapatilhas vão emergindo do chão. Todas elas de ponta e em cada ponta uma imagem de Sophia, as vezes vestida de branco, as vezes de vermelho, mas sempre com o rosto plácido e o corpo lânguido.
Uma bailarina se agacha e pega uma sapatilha. Veste. Se levanta em um descampado onde escuta a preleção de Maguy Marin. Maguy veste uma roupa branca suja de terra como se tivesse emergido de um esgoto. Ela continua fazendo os gestos de quem saiu de um casulo, como o pequeno animal da cena 2. Maguy saiu das entranhas da terra e veio descalça:
MAGUY MARIN: Dizem que dançar é atiçar as dobras. Meu corpo em um devir-tripas. Retorço. Contorço. Dançar é desamarrar. Meu corpo é uma erosão. Erodo porque eu sou chão antes de ser terra. Minha pele de Exu é o limiar entre o que me afeta e o que eu afeto. Dançar, como arrotar. É provocar as rachaduras. Balançar as articulações. É que por toda parte existem tectônicas. Vulcões. Terremotos prestes a eclodir. Todo corpo tem uma pele que contorna. Dançar é inventar dobras.
Dançar é provocar desengonçamento. A elegância de um novo vulcanismo, não do vulcão disciplinado de todos os dias – o que abre a carteira, sacode os ombros, caminha sem cair, deita sem pular, trepa sem soluçar – o vulcão que já virou chão, mas o vulcão que perdeu o fio de meada entre a lei da natureza e a superfície da terra. Dançar é andar pelo chão como se ele fosse um repositório caquético de desmandos pouco esclarecidos. Por isso é tectônico. Maguy solta pipocos por todos os lados, irrompe em barulhos incompreensíveis:
MAGUY MARIN: C’est la pensée qui zone dedans. En foutant toute envie de baise. De vraie foutrée. Il sait le troupeau mort la vraie foutrée c’est en finir. Finir pour une bonne fois la baise. Et pas de bonne action. De bon coup pensé dans biquette. Ou dans le bouc. Le bouc prendra biquette. Il prend sa corne. Le bouc pense à biquette. Mais le bouc est corné. Cornard de lui. Cornard de sa petite cornée. Pas encore né. Petite trouée de lui-même. Petite foutrée. Foulée. Petite foule faite. Petit troupeau à foutre mais sans se fouler. Que la biquette lui a collé. Que la biquette collera. Et le troupeau avec. Troupeau de biques et de boucs moutonnant à l’envie. Troupeau de morts encollés à l’idée de baise. Mais on baise pas l’envie. On fait que niquer. On nique l’envie qui s’offre à nous. La nique offerte. Ristourne. L’envie tristoune de nique sur un plateau. Les plateaux tournent. Et les troupeaux avec. Tous les troupeaux finiront par tourner. Et les petits plateaux petites enjambées au-dessus des phrases.
É que a Terra dança. Engole a semente, rasga, soluça, eclode, engole, balança o glote, fica peristáltica, vomita, faz pliê. Este desengonçamento todo não é outra coisa senão o ardil das intrusões. Ressurgido do Etna, aparece Empédocles, também ele imundo de lama, de lava, do calor da terra-vagalume. Ele se levanta e rapidamente segura a cabeça de Maguy, com as duas mãos próximas as suas orelhas:
EMPÉDOCLES: Nossos corpos não cabem na armadura humana. Nenhum corpo, porque carrega a impostura humana, deixa de ser corpo. E corpo encorpa. Corpo é um endereço, uma encruzilhada. Do todo, nada é vazio. Do corpo, nada é imune. Nada é acabado, nada é uma coisa só. Todo corpo se multiplica, perpassam-lhe as lacraias, os barulhos da terra, as larvas, as sedimentações das rochas. O desengonçamento é cósmico, está nas pequenas rachaduras que dão forma aos movimentos, e nas convulsões da Terra, nas camadas sobrepostas em garranchos que formam as superfícies acumuladas do planeta.
A dança é larval. É intrusão – é caixa de ressonância. Empédocles começa a tirar do chão um pouco de terra e vai aparecendo uma placa vermelha onde se inscreve um trecho de Docemente, de Laura Virgínia:
Acelera seu coração,
abre fendas em larga extensão
buscando alguma compensação
e vive de flexível segurança,
a Terra se equilibra
fazendo frases de dança.
A Terra não dança apenas as intrusões do momento, mas as ressonâncias do seu passado, seu afundamento, aquilo que sedimentou seu chão. Inveja. O chão suporta o que inveja, o que deglute lentamente, o que se escorre para ele. É o chão que tira o chão do que está sobre ele.
Deitado no chão, Empédocles desaparece em uma cova escavada por Maguy. De dentro da cova aparece Ben Woodard que logo também desaba no chão. Enquanto os dois desaparecem, Ben se levanta, tira a roupa do vulcão e, sob ela, aparece com uma camisa social mas sem calças. Começa a vestir camisetas coloridas sobre sua camisa social:
BEN WOODARD: O vulcânico é o pivô entre inferno/terra e transcendência/imanência. O Hades se faz sentir nos vermes, nos roedores, na fauna geológica. O inferno está repleto de espaços celestiais. Hölderlin comparou Empédocles pulando no vulcão à Ícaro. A vida mesma está sujeita ao fluxo da natureza já que a terra é que dança, a terra é que pensa.
Cena 5:
Ftono em um banheiro de bar. Há um pequeno espelho arranhado acima de uma pia. Ftono veste um short azul e um medalhão com a imagem de Sophia no peito. Com um pente azul, ele penteia o cabelo:
FTONO: Meu desejo é incorporação, não consegue ser mimese, é pacto. Desse pacto invejável Sophia não quer mais sentar-se imóvel no linguajar gramatical dos vastos conceitos, a fúria do movimento é a dobra que deseja adentrar, a estruturação desse corpo em ação é própria da desobstrução do verbo. Eu só aceito os pactos. Escavar os emaranhados da sabedoria não com a gentileza da amizade, mas antes com uma sede nunca sedentária. Roer a sabedoria. Com ânsia. A fúria é minha irmã. Ela encrava no chão sábio comigo. Meu amor por Sophia não a deixa em paz. Os ftonósofos são intranquilos, se agitam como quem ebole, fazem unguento, desconfiam. Com os corpos tomados dos meus sucos, eles não ficam imóveis, bailam como quem treme, como quem não consegue parar de vibrar.
Ftono sai do banheiro e encontra ao seu redor, no bar, com sete ftonisas. Todas vestidas de túnicas verdes e com três tetas a mostra. São leitosas, abastecidas, são Artemis e são Cassandras. São os sete alçapões dos ciúmes. A primeira é encurvada e se move apenas para trás, a cabeça baixa, os olhos semifechados, o pescoço intimidado. É a Vergonha de Si. A segunda é ainda mais encurvada, mas olha para o alto – é a Orgulho de Si. Por que não mereço mais? Também quero aquilo, também eu. O pensamento inveja a dança. Ciúmes do que pode um corpo que dança. Este é o componente da relação entre as duas onde o pensamento não se defende da dança, ao contrário, ela se dissolve. A inveja é uma vergonha-de-si. O pensamento quer ser outro, também quer se desvencilhar de si. E é um orgulho-de-si: também quer ser aquele outro. O zelo pelo que é dos outros, pelo que os outros são. As ftonisas se sentam no bar na mesa dos ftonósofos, todos vestidos com uma camisa branca apertada e uma larga calça preta. Um deles diz:
FTONÓSOFO: Pensar é imundo, é vergonhoso, é do submundo, do subterrâneo, dos estratos lamacentos. É como os animais que se contorcem para chegar a superfície, para chegar ao chão – que invejam a sabedoria que abre os caminhos. Mas a lava não tem destino certo, ela expira, inspira, se adentra ainda mais nos fossos do centro da terra. O pensamento trisca o inferno, é desconforto, é metábole constante – metabolismo.
Já os corpos são todos disformes. Cada um a sua maneira. Corpos não são incorporações. O corpo que dança é um corpo sem corpo. Chega Jerôme Bell no bar e se aproxima da mesa das ftonisas e ftonósofos. Ele aparece de fraque e com um chapéu de palha com os fiapos de palha soltos em sua fronte. Jerôme fica em pé, parado, apenas fala, como se dançar fosse já desnecessário:
JERÔME BELL: Por que as pessoas vão ver tantas vezes o Lago dos Cisnes? Ele dizia, é porque os bailarinos tem uma maneira própria de errar. O momento do desengonçamento é o momento da graça. Porque se não houver o momento da graça – que intervenham os deuses que criam outros precipícios – é melhor ficar contemplando os relógios de parede, ponteiros que balançam por anos no mesmo ritmo. Ou ouvir metrônomos. Mas os epicuristas nunca acharam os relojoeiros perfeitos.
As ftonisas tem corpo de ftonisas. Os filósofos tem corpo de filósofos. Os bailarinos não. Os masoquistas tem corpos da masoquistas, as catadoras de coco tem corpo de catadoras de corpo, as putas tem corpo de putas, os ministros tem corpo de ministros, os pedintes tem corpo de pedintes e os empregados de telecentros tem corpos de empregados de telecentros. Os quadrados tem o corpo de quadrado. O círculo tem o corpo de círculo. Os bailarinos estão em função das dobras invisíveis, não podem se dar ao luxo de ter um corpo... de bailarinos.
Cena 6:
Cemitério. As ftonisas avançam em cortejo fúnebre para que o enterro do filósofo siga em triunfante passada. Hipátia de Alexandria chora ao som de um bolero, lá está o seu amor, assim como a sua cova. Hipátia veste uma roupa de tule em que estão bordadas imagens de conceitos gestados pelas mulheres de Atenas. A Enfermeira Luminosa Razão ressurge, carrega sangue em todo se corpo, tenta desesperadamente uma transfusão de suas veias para o caixão, vai aos poucos dissecando. Sophia perde um amigo, Baco reencontra o apogeu da desordem e Ftono flerta com Eros. O carnaval vira luxo de morte, baila em esquecimento. Sophia declara:
SOPHIA: Aqui jaz o cenário do alvoroço verbo. A filo de tua sofia mostra em fala o quão importante foram os assuntos que falaram. Perderam-se meios, lacunas de silêncios feitos, e trataram de esquecer palavras equivocadas. Riu de si pouquíssimas vezes. Escondeu que gagueja. Tratou de não se desarticular em gestos, movimentos expressos necessitando o carregar de uma equação de praga. Pragmática. De uma circunstancia no afim de, efeito de tuas causas. Tu filósofo invejaste o que te mata, o que te dança. Queria outro, então aqui te vai, certo que renascerás da sombra nesse eterno encontro com a terra, e das sombras talvez não sairás, desengonçando.
A noite então se adentra. Nix surge gesticulando, cega, tateando os corpos ali presentes. Diz:
NIX: Não há mais caverna de ilusão, apenas mergulho de luminosidade nesse consciência em eternidade obscura, para a verdade não há mais claridade. Platão é um travesti sendo queimado na fogueira.
Todos aplaudem. Platão aparece então com seu corpo bombado e com uma pequena calcinha onde se lê: “O medo do ridículo é ridículo ao pensamento”. Logo aparece seu maquiador, que freneticamente passa pós, loções e poções pela cara do filósofo. Platão não consegue se mexer com os movimentos do maquiador. Por fim, ele prende o maquiador entre seus dedos e lhe sussurra algo ao ouvido. O maquiador então conta a todos:
MAQUIADOR DE PLATÃO: Platão me pede para informar a todos que também ele se morde de inveja da sabedoria. Tão galante, tão altiva, tão cheia de pretensões à imutabilidade. Mas desconfia que seu ciúme o deixou por demais humilhado, rastejante, serviçal. Ele agora quer parar de imitá-la (mimesis) e passar a participar (metexis) ainda mais dela. Ele quer se travestir, se precarizar, deixar de lado qualquer defesa. Não era a cortesia para com Sophia que o movia, ele me disse, era a inveja. Mas agora, ele quer também se tornar um ftonósofo.
Platão pede ao seu ajudante de As Ftonisas fazem sua última dança em agradecimento à noite ao som de tambores enfurecidos. A Enfermeira Luminosa Razão seca, e o caixão é levado para a terra com seu corpo exposto deitado e enrijecido por cima. Sophia conclui o ritual entregando para Ftono um pedaço de coruja que acabará de sacrificar, todos na mesa sentam e devoram o pássaro com taças cheias de vinho. Brinda:
SOPHIA: Assim como a entranhada terra devolve para a superfície o rasgo do abalo, que se erga um novo homem, um homem que inveje um deus, um “homem que só acredite em um deus que saiba dançar”. Eros e Ftono dançam. Ninguém dança se ficar com as mãos dadas o tempo todo.
Cena 7:
Floresta. Numa clareira Isadora Duncan dança samba. Acompanhado de um pandeiro, a voz de Novarina canta um samba sobre a sabedoria: “Sabedoria é hospitalidade, morrer por nada depois de viver de tudo”, depois emenda um Noel: “pra que rimar amor e dor?”. Aparecem umas Heráclitas caquéticas que caminham com vestidos brancos, aos poucos seus vestidos vão se encharcando de sangue, menstruam na menopausa. Em coro cantam uma ladainha:
CORO DE HERÁCLITAS: Eu nunca menstruo o mesmo sangue duas vezes, eu nunca menstruo o mesmo sangue, duas vezes eu nunca menstruo o mesmo sangue duas vezes.
Do rastro de sangue das Heráclitas surge Bataille vestido de carteiro arrastando uma grande encomenda, deposita-a no centro da clareira e proclama:
BATAILLE: Ei-lo, capturado, esse homem foi encontrado e entrego-o aqui perante esse aviso: isso não é mais um filósofo, mas talvez um santo, talvez um louco, mas que pensa da mesma maneira como uma menina tira a roupa. Na extremidade de seu movimento o pensamento é o impudor, a própria obscenidade.
As Heráclitas cheiram o pacote como cadelas farejando por mais sangue. Rasgam com os dentes, avarentas de fome, a tal encomenda. Uma delas olha para Bataille e ainda está escutando o que ele disse: o pensamento é impudor, a própria obscenidade. Impudor, obscenidade... Ela olha para o chão e murmura:
UMA HERÁCLITA: Será que o pensamento, mirando o saber e como quem escuta o ritmos de uma passacaglia que está tentando dançar, é movido por Epythymia? Será a luxúria que move o pensamento em direção a querer armazenar alguma coisa, embolsar alguma coisa, preservá-la da corrosão dos seus próprios sucos? Ou será a cobiça mesma que faz pensar? A cobiça por um saber que talvez seja impossível – se não houver nada além de acidentes no mundo, talvez nada possa ser entendido, nem compreendido, nem sabido. Mas o pensamento cobiça. Luxúria. Ou talvez seja mesmo Ftono – talvez seja a inveja que move as manivelas do pensamento. Eu sinto nas minhas vísceras que o pensamento é lama, é lodo, é de se deitar ao chão...
O ftonósofo surge invejoso e invejado, ridiculariza a si mesmo numa dança desengonçada. Saber. Saber de si. Invejar a parte de si que sabe de si. Querer imitá-la. Querer tornar-se ela. Arrastando-se no chão, ele aperta o peito, o dorso, o lombo como quem quer se segurar, se capturar a si mesmo:
FTONÓSOFO: Finjo, através do âmago de mim, que sou conhecido, que posso me conhecer, que aquilo que eu sei sobre mim ainda não me escapou. Invento umas mentiras sinceras para sustentar meu apego ao auto-conhecimento. Tenho que saber, tenho que saber de mim. Pelo menos a minha pequena sabedoria de mim, não a arranquem de mim!
Marcel Duchamp entra na cena vestido de médico legista e proclama com um com ar categórico:
MARCEL DUCHAMP: Isto não é um filósofo!
As Heráclitas se mijam de tanto rir, caquéticas e desorientadas besuntam de sangue o ftonósofo, este abruptamente gargalha e proclama:
FTONÓSOFO: Invejo-te Baco. Invejei a embriaguez como invejei a fama e até a miséria. A embriaguez me seduz: o pensamento que não responde, apenas declara! E assim comecei a invejar Sophia. J’ai envy de toi! Isso me faz pensar, me faz dançar. A sabedoria da dança é razão do desejo.
Festeja novamente com uma dança desengonçada. As Heraclitas caquéticas bailam como um corpo de baile da pior natureza, coreografadas. As ftonisas entram em cena como que cegas, esbarram em todos os que dançam e caem no chão.
Cena 8:
Uma enorme lâmpada elétrica em uma sala fechada. Ao lado um banco onde se sentam-se três sambistas com um pandeiro na mão. Não falam e nem tocam e nem cantam e nem citam ninguém. Silêncio. Você inveja o silêncio?
Há algo de mariposa nestas danças e nestes pensamentos das gentes. Serão elas movidas por um desejo de luz? Uma amizade – um ciúme? Entra um ballecketterino vestido com uma máscara de tule. É a razão que morre de amores, que se morde de ciúmes, que saliva de inveja, que se corrói luxúria. Mas ela também é parente da audácia, das filhas do anjo e de todos os comboios de corda, das cordas de plástico e das cordas de elástico. O ballecketterino é do tipo que não olha quando Sophia passa:
BALLECKETTERINO: Não quero culpar a razão por nada, nem por inveja, nem por luxúria. E, no entanto, ela vai ter que se comportar por que eu não vou me comportar por ela. Os filósofos invejam o corpo des-pensado, dançar é atiçar – atiça a luxúria, atiça a inveja, atiça a cobiça. Os pecados capitais – todos eles têm parte com a audácia – as vezes se misturam em um só gesto, em uma só torção. O ftonósofo não esconde seus ciúmes, se arrasta com eles. É que Sophia não pensa, ela já está toda pensada. É como um corpo pronto. Eu prefiro a coreografia dos que roem as unhas.
Ao lado do banco com os sambistas, aparece Entre Platão de tutu e sapatilha de ponta ao som Adolphe Adam, segundo ato de Giselle. Ele fala sem fôlego, como se não tivesse parado de dançar por muitos séculos:
PLATÃO: Meu amor foi ameaçado, quando descobri que a sabedoria se disfarçou de camponesa para conquistar uma bailarina, padeci. Ela que sempre foi duquesa, teve a audácia de ir no mais baixo submundo dilacerado da mentira, retraiu-se para esconder-se na caverna do amor. Por isso, hoje, sou Giselle, hoje a sabedoria me ama, mas também me mata. A razão é travestir-se.
Isadora Duncan abençoa Platão vestida de baiana. Ele faz o solo de Giselle ressuscitando de sua cova. Eros trabalha na bilheteria pegando os ingressos do público. Ao invés de amor, o ingresso é inveja:
EROS: Inveje esse homem, inveje seu amor mortal que teve pela sabedoria e do qual nunca pode esconder. Sua verdade agora é fato: entre o amor e a amizade surgiste fervoroso no meio termo a que tudo sucumbe, a inveja de outro. Já ouvi mesmo dizer que o amor se mede pelas unhas de Ftóno. Falam que eu flecho. Nós flechamos, os erósofos, os ftonósofos, e eu nunca vi Sophia.
A lâmpada se apaga. Barulhos de mariposas. O pensamento não é ridículo senão pelo corpo. No lugar onde havia a lâmpada, acende Athikte. Ela pula alto e cai sobre um dos seus pés:
ATHIKTE: Asilo, asilo, asilo, o meu asilo. Eu vivo em ti, movimento, e fora de todas as coisas.
Ftono aparece rastejando aos pés de Athikte. Lambe os beiços. Inveja o asilo. O mais profundo é a pele. Agora já não há mais leveza inesgotável no palco. Apenas o ranço da inveja, do ciúme, e Ftono, que, outra vez, fala:
FTONO: Querer ter, querer ser, querer acompanhar, querer devorar. Discursos de amor, discursos de gula, discursos de antropofagia, discursos de desejo. Minha mãe Audácia não fazia as diferenças entre tudo isso. Ela nos paria, um atrás do outro. Paria as serpentes e paria os venenos. Meus venenos querem sair pelas minhas culatras. Eu vivo em função das minhas culatras. É simples assim ser filho da audácia...
Os três sambistas agora se revelam como sendo Sócrates, Erixímaco e Guillermo Gomez Peña. Sócrates é o primeiro a falar, mas os outros dois lhe retrucam prontamente e quase sem interrupção:
SÓCRATES (apontando para Athikte): Esse serzinho dá o que pensar... Reúne em si, assume uma majestade que estava confusa em todos nós, e que habitava imperceptivelmente os atores deste festim... Um simples andar, e aqui está a divindade; e nós, quase deuses! Parece enumerar e contar moedas de ouro puro, aquilo que gastamos distraidamente...
ERIXÍMACO (apontando para Ftono): Esse serzinho dá o que pensar... Reúne em si, assume uma majestade que estava confusa em todos nós, e que habitava imperceptivelmente os atores deste festim... Um simples andar, e aqui está a divindade; e nós, quase deuses! Parece enumerar e contar moedas de ouro puro, aquilo que gastamos distraidamente...
GUILLERMO GOMEZ PEÑA: Me sinto como uma puta que dirige uma astronave cheia de monjas, ou vice-versa. Uma vez vi uma bailarina mijando em um mictório de banheiro masculino. Era tanto tule... Ela dançava, eu invejava. Nunca acreditei nas fronteiras ríspidas, nem mesmo quando vivi em Tihuana. Eu sempre posso errar de endereço.
As pitonisas entram juntamente com as ftonisas como um coro de bacantes, bebadas se dirigem para o centro do palco onde Steve Paxton colide com uma pedra sem parar:
STEVE PAXTON: aqui agora só há costelas e fluxos. Onde move a espinha move piton, o destino, e nada há além desse choque invasivo que me permite perpetuar o eterno em agora. Que seja a dança o encontro do acontecimento!
Aparece Pedro Costa, vestido de Solange e estando aberta. Ouve-se os acordes iniciais de “Eu vou fuder o cu do Freud”. Ele se enrosca com Steve Paxton e declara subitamente:
PEDRO COSTA: A errancia é a fonte dessa criação passando pelos membros de uma aparição, o bailarino é o ftónosofo, ele abre as temporadas de desapropriação da sabedoria, enrola-se com escama de pele desmembrada e pode falar enquanto morde, doer enquanto sopra e respirar enquanto pensa. O silêncio agora é o seu verbo e a dança sua audácia. É que Sophia é turbulenta e bagaceira – invejá-la é contorce-la. E ela dá as boas vindas aos invejosos: venham, mordam minhas sapatilhas.
Pedro sai correndo com Steve. Aparece o anjo que puxa as ftonisas e as pitonisas. Eles correm em círculos, colhem flores e levantam o banco onde estão os três sambistas. Começam a retirar o banco de cena. Os sambistas começam a bater no pandeiro como se estivessem sendo assolados por alguma fúria que não mais compreendessem. O barulho das mariposas aumenta.
Tela Preta Rápida.
Cena 1:
Alpendre. Lá está o primeiro anjo, gordo, com uma roupa de terreiro e com um sorriso de quem deitou-se na rede o dia todo. Ele abre os braços, se alonga com demora e, sorrindo, murmura:
ANJO: Ai que preguiça. Preguiça do amor bom. Preguiça do amor tributável. Preguiça do amor que admira sem arrancar pedaço. Preguiça do amor que é caridade e não dilaceração.
O anjo deita na rede vermelha, trançada, cheia de óleos esparramados e, com a voz de uma heresia gnóstica cáustica:
ANJO: Eu sempre amei essa coisa disforme, fugidia, levada, precária, indisciplinada, transformista, safada e violenta que é a sabedoria.
O anjo se balança na rede enquanto levanta as pernas roçando uma na outra. Aparecem agora apenas suas pernas, seus braços do lado de fora da rede vermelha. Aparecem cinco pernas, cinco braços rodando por cima da rede como um carrossel – o anjo agora é um Nataraja cheio de blasfêmia e de lascívia.
E sua voz é mais distante, como uma sombra:
ANJO: Eu procurei a audácia e com ela tive filhos.
A primeira foi Kakia, a maldade, a que abre descendência para a errância, para a imperfeição, para o mal-comportado – sem elas não vale a pena gerar nada. Ela veste uma saia branca, transparente e um casaco azul ou verde, um casaco de jogging com listras brancas. Ela salta por cima da rede do anjo que segue rodando suas pernas e braços como um carrossel. Kakia não tem fronteiras, seu corpo é uma porta aberta e ela vaga como se seus dedos tocassem facilmente o céu e o piso.
Depois vem Zelos, o zelo. Zelos veste as cores da terra – como um bufão elegante, com detalhes dourados em seus ombros. Ele bate com a ponta dos dedos na cabeça de Kakia, na cabeça do Anjo Nataraja, na sua própria cabeça.
Depois entra Ftono:
FTONO: Não me basta ser eu. Tenho uma ânsia de fome de carne por tudo o que é alheio. Eu não tenho âmago. Tenho ciúmes de vocês todos, desde antes de vocês nascerem. Eu sou a vítima e o carrasco, eu sou o vampiro do meu próprio coração. Héautontimeroumenos!
Ftono pula corda com as outras duas, Erinnys, a fúria, e Epithymia, a luxúria. Os três filhos mais jovens da audácia. De longe aparece Pina Bausch correndo desde fora do enquadramento, corre com determinação e abraça Ftono, Erinnys e Epithymia de uma só vez. A corda que eles pulavam se entrelaça entre eles, passando pelas pernas de Epithymia, pela dorso de Ftono, pelas ancas de Erinnys e pelo quadril de Pina. Pina repete:
PINA BAUSCH: Tudo pode ser considerado pelo avesso, tudo pode ser considerado do avesso, tudo pode ser considerado do avesso, tudo pode ser considerado do avesso.
Ftono tem ciúmes do modo como Epithymia roça seus dedos em Pina. O anjo voa. Erinnys se retira correndo, Epythymia e Pina se deitam na rede vazia. Ftono fica balançando a rede. O pensador de Rodin surge da casa e se senta na mesa do alpendre. Ele não se move, apenas pensa:
RODIN: O ridículo nos engole como crianças.
Cena 2:
O mesmo alpendre. Um pequeno animal se contorce para sair de um casulo. Tenta se soltar de todas os modos, não consegue. Ao lado, duas sapatilhas quase o pisam. Estão prestes a pisar o casulo. A câmera sobe até o bailarino que se desajeita sobre o pequeno animal. Um enorme Novarina. Novarina grita:
NOVARINA: Sair do corpo. Sair do corpo. É isso que nos anima todo o tempo, nos anima pelo sexo, pela sabedoria, pelo pensamento, pelo esporte. Nada mais que sair do corpo.
Por trás de Novarina chega Hubert, que o empurra. Novarina cai no chão. Hubert o chuta, e depois o acaricia.
HUBERT: Eu te invejo, eu te invejo, eu te invejo. Onde está meu primo?
Hubert olha para frente e vê Lacan, seu primo, que da pulos com seus dois pés.
LACAN: Todo desejo é o desejo do outro. Do outro, do outro.
Lacan deita-se ao lado de Novarina. Hubert senta-se e logo aparece na cena a Bailarina Descalça, ela não dança, apenas pisa levemente nas bexigas dos dois homens deitados:
BAILARINA DESCALÇA: Todo desejo acometido da violência que necessariamente o gera transcreve uma realidade de vida uterina. O que se inscreve e o que escrevemos participam de uma mútua articulação avessada que é o cambio externo-interno. Mas, ao menos nessa vida, esta relação se compromete na fisiologia extremada das vias públicas da intimidade em forma de publicitárias aparições do eu; o corpo confinado ao seu valor midiático de moeda valorativa da imagem que representa uma estratégia de vida; o simulacro elementar do teatro cotidiano; as asperezas e os detalhes por onde se passam as rachaduras de bloqueios somatizados em sua fingida aparição de felicidade. Mas também a estranheza sugerida em seus momentos de extremado lugar em que ‘‘não se aguenta mais’’, a tensão necessária da vida em si, a tensão do fora cultivada em natureza única e singular?
Cena 3:
No quarto de uma maternidade. Os cinco bebês acabaram de ser paridos. A audácia dorme. Cada bebê está em seu berço. Ao lado de cada berço um criado-mudo. Em cada criado-mudo uma imagem, pequena, como em um oratório. Sempre é a imagem de Ftono, cercado de ftonisas de todas as cores que o sobrevoam – todas invejosas, todas videntes, todas alvoroçadas. A Enfermeira Luminosa Razão chega com panos quentes sobre os cinco bebês. Ela levanta os joelhos a cada passo lento que dá entre as camas da maternidade. Ela se veste apenas com muitos pequenos retratos de homens, tamanho ¾ colados na pele. No pescoço veste retratos de Leibniz e Spinoza quando jovens, o primeiro audacioso, o segundo furioso. Os dois zelosos. Pelo dorso imagens lutadores de Sumô, mas no bico dos seios duas imagens de Jean-Luc Nancy. Pelas ancas, lombo e torso, retratos de Artaud e de Protágoras ambos sorrindo. Há abismos na matéria:
ENFERMEIRA LUMINOSA RAZÃO: A consciência do corpo, a consciência de si é muitas vezes estipulada somente pela realidade cognoscível do eu. O sujeito elaborado a partir de sua estrutura reflexiva sabe de si a partir da casualidade moral de seus meios, e se depara com a verdade a fim de repensá-la, tracioná-la, invadia-la , radicaliza-la ou muitas vezes apenas aceitá-la. Nessa expedição de si, o contorno da consciência bruta baseia-se na razão. Mas uma razão dançante traça uma nova consciência, nasce de um corpo inconsciente do gesto móvel, da violência mesma que o faz sair do lugar, jogando-se na realidade do aberto. Essa inconsciência, nebulosa por tradição, vinda diretamente da turbilhosa Nix, reclamada na psicologia supostamente estruturada – nada tem de entrave/treva quando esclarecida na superfície de um corpo que baila. A superfície da inconsciência suspende seu teor intangível e inaugura uma nova consciência do corpo. Por isso inveja-se, inverte-se, dobra-se.
Ela cai aos pés de uma das pequenas imagens de Ftono, sobre o criado-mudo ao lado do berço de Zelos:
ENFERMEIRA LUMINOSA RAZÃO: Ftonos, abençoa minhas palavras. Eis o charme de invejar, eis a consciência de si, querer engolir do outro que te salta em afetos nada discretos na sua ininterrupção de malemolência, um novo poder de inconsciência. O desengonço do filósofo é pois, seu corpo de baile, ele também quer ser invejado numa razão que possa dançar.
Cena 4:
Um descampado cheio de pedaços de máscaras no chão – olhos de vidro, bigodes postiços, perucas. Ftono está coberto de barro e se arrasta pelo chão.
FTONO: A inveja é centrífuga. Ela nasce do estranhamento. Ela nasce de um vetor centrífugo que me arrasta em direção a outro. A amizade e o amor produzem um conforto, um acalento em que a outra permite, endossa, reforça e legitima o que eu sou. A inveja arranca raízes. Ela não é um assunto de mesmos, ela é uma destituição dos mesmos já que é um asco de si. A inveja é uma fúria de mim contra mim, uma mobilização das minhas vísceras contra suas hospedeiras. Um mal-estar de si. A inveja é o avesso da auto-defesa.
Ftono agora encontra Dioniso, entregue a um bacanal cósmico de dedos e línguas e pelos e gotas de vinho, encontra Hera, soberba, altiva, suficiente, encontra Zeus, rodeado de poderes, de cetros, de varinhas de condão, encontra o Anjo Nataraja, com sua preguiça herética. Diante de todos eles, Ftono se arrasta de compulsão, quer arrancar de cada um uma seiva, ergue os braços para tentar trazer para si os espasmos das entidades. Depois de se arrastar em círculos em torno destes quatro polos, Ftono sente a presença no centro do retângulo de Sophia e se arrasta até ela. Ftono estende suas mãos em direção ao dorso de Sophia, ela plácida na cara, lânguida no corpo. Sophia logo chama seu amigo, o Filósofo que vem com um sorriso como o da máscara de Guy Fawkes, contente mas insaciado. O filósofo comede – mas dança com suas mãos e dá o braço a Sophia e a convida para caminhar. O filósofo fala, mas é como se fosse em uma gravação:
FILÓSOFO: Inveja. Ciúmes. Porque o sentido invejável é sempre fora, o objeto da inveja já não é pois um objeto, é objetificar-se. A dança celebra uma morte do sujeito, envaginado em plena consumação do que explora/explode em vida. O Fora, o campo aberto que tensiona e envagina-se. Já a sabedoria é um contorcer-se de dobras internas, é uma dança consolidada – são as marcas que ficam depois que os corpos passaram, um emaranhado de vestígios, um chão.
Sophia vai sendo conduzida pelo filósofo enquanto Ftono se arrasta diante dela. Até que ela para e olha para cima – num gesto largo, larga-se ao chão onde encontra Exu, todo de vermelho, da cor da rede do anjo, e com o corpo plácido, a cara lânguida:
EXU: Tua casa não é boa, vem comigo que eu vou te mostrar algo melhor.
De súbito, desaparece Exu e depois Sophia, e depois também Ftonos. Do chão emerge uma coisa diferente, um ftonósofo vestido com uma camisa branca apertada e uma calça preta larga. Veste também uns sapatos vermelhos e traz anéis em todos os dedos, cada um com uma pedra preta. O ftonósofo se levanta do chão e faz lentamente a pose de quem vai tirar uma foto de passaporte. Uma voz em off, com a entonação de quem apresenta um candidato aos seus eleitores:
VOZ EM OFF: A ftonosofia contrasta com a sabedoria auto-complacente e contente de si que tem um diagnóstico pronto - ou uma descrição cabível - de tudo o mais que lhe é apresentado. Contrasta com a sabedoria que tem nomes para os bois - a ftonosofia estranha os bois, eles são monstros, são súbitos touros de Pamplona no dia de festival de San Fermín. A ftonosofia, como a filosofia, não é identidade com uma Sophia, ela também introduz um outro, mas um outro que não procura colocar a Sophia a seu serviço mas antes habita na pulsão de dissipação.
Interlúdio Geofilosófico:
Imagens subterrâneas. Escavadores retiram das profundezas abaixo do chão fragmentos de sapatilhas de ponta. Roedores acorrem até os fragmentos. Mais e mais sapatilhas vão emergindo do chão. Todas elas de ponta e em cada ponta uma imagem de Sophia, as vezes vestida de branco, as vezes de vermelho, mas sempre com o rosto plácido e o corpo lânguido.
Uma bailarina se agacha e pega uma sapatilha. Veste. Se levanta em um descampado onde escuta a preleção de Maguy Marin. Maguy veste uma roupa branca suja de terra como se tivesse emergido de um esgoto. Ela continua fazendo os gestos de quem saiu de um casulo, como o pequeno animal da cena 2. Maguy saiu das entranhas da terra e veio descalça:
MAGUY MARIN: Dizem que dançar é atiçar as dobras. Meu corpo em um devir-tripas. Retorço. Contorço. Dançar é desamarrar. Meu corpo é uma erosão. Erodo porque eu sou chão antes de ser terra. Minha pele de Exu é o limiar entre o que me afeta e o que eu afeto. Dançar, como arrotar. É provocar as rachaduras. Balançar as articulações. É que por toda parte existem tectônicas. Vulcões. Terremotos prestes a eclodir. Todo corpo tem uma pele que contorna. Dançar é inventar dobras.
Dançar é provocar desengonçamento. A elegância de um novo vulcanismo, não do vulcão disciplinado de todos os dias – o que abre a carteira, sacode os ombros, caminha sem cair, deita sem pular, trepa sem soluçar – o vulcão que já virou chão, mas o vulcão que perdeu o fio de meada entre a lei da natureza e a superfície da terra. Dançar é andar pelo chão como se ele fosse um repositório caquético de desmandos pouco esclarecidos. Por isso é tectônico. Maguy solta pipocos por todos os lados, irrompe em barulhos incompreensíveis:
MAGUY MARIN: C’est la pensée qui zone dedans. En foutant toute envie de baise. De vraie foutrée. Il sait le troupeau mort la vraie foutrée c’est en finir. Finir pour une bonne fois la baise. Et pas de bonne action. De bon coup pensé dans biquette. Ou dans le bouc. Le bouc prendra biquette. Il prend sa corne. Le bouc pense à biquette. Mais le bouc est corné. Cornard de lui. Cornard de sa petite cornée. Pas encore né. Petite trouée de lui-même. Petite foutrée. Foulée. Petite foule faite. Petit troupeau à foutre mais sans se fouler. Que la biquette lui a collé. Que la biquette collera. Et le troupeau avec. Troupeau de biques et de boucs moutonnant à l’envie. Troupeau de morts encollés à l’idée de baise. Mais on baise pas l’envie. On fait que niquer. On nique l’envie qui s’offre à nous. La nique offerte. Ristourne. L’envie tristoune de nique sur un plateau. Les plateaux tournent. Et les troupeaux avec. Tous les troupeaux finiront par tourner. Et les petits plateaux petites enjambées au-dessus des phrases.
É que a Terra dança. Engole a semente, rasga, soluça, eclode, engole, balança o glote, fica peristáltica, vomita, faz pliê. Este desengonçamento todo não é outra coisa senão o ardil das intrusões. Ressurgido do Etna, aparece Empédocles, também ele imundo de lama, de lava, do calor da terra-vagalume. Ele se levanta e rapidamente segura a cabeça de Maguy, com as duas mãos próximas as suas orelhas:
EMPÉDOCLES: Nossos corpos não cabem na armadura humana. Nenhum corpo, porque carrega a impostura humana, deixa de ser corpo. E corpo encorpa. Corpo é um endereço, uma encruzilhada. Do todo, nada é vazio. Do corpo, nada é imune. Nada é acabado, nada é uma coisa só. Todo corpo se multiplica, perpassam-lhe as lacraias, os barulhos da terra, as larvas, as sedimentações das rochas. O desengonçamento é cósmico, está nas pequenas rachaduras que dão forma aos movimentos, e nas convulsões da Terra, nas camadas sobrepostas em garranchos que formam as superfícies acumuladas do planeta.
A dança é larval. É intrusão – é caixa de ressonância. Empédocles começa a tirar do chão um pouco de terra e vai aparecendo uma placa vermelha onde se inscreve um trecho de Docemente, de Laura Virgínia:
Acelera seu coração,
abre fendas em larga extensão
buscando alguma compensação
e vive de flexível segurança,
a Terra se equilibra
fazendo frases de dança.
A Terra não dança apenas as intrusões do momento, mas as ressonâncias do seu passado, seu afundamento, aquilo que sedimentou seu chão. Inveja. O chão suporta o que inveja, o que deglute lentamente, o que se escorre para ele. É o chão que tira o chão do que está sobre ele.
Deitado no chão, Empédocles desaparece em uma cova escavada por Maguy. De dentro da cova aparece Ben Woodard que logo também desaba no chão. Enquanto os dois desaparecem, Ben se levanta, tira a roupa do vulcão e, sob ela, aparece com uma camisa social mas sem calças. Começa a vestir camisetas coloridas sobre sua camisa social:
BEN WOODARD: O vulcânico é o pivô entre inferno/terra e transcendência/imanência. O Hades se faz sentir nos vermes, nos roedores, na fauna geológica. O inferno está repleto de espaços celestiais. Hölderlin comparou Empédocles pulando no vulcão à Ícaro. A vida mesma está sujeita ao fluxo da natureza já que a terra é que dança, a terra é que pensa.
Cena 5:
Ftono em um banheiro de bar. Há um pequeno espelho arranhado acima de uma pia. Ftono veste um short azul e um medalhão com a imagem de Sophia no peito. Com um pente azul, ele penteia o cabelo:
FTONO: Meu desejo é incorporação, não consegue ser mimese, é pacto. Desse pacto invejável Sophia não quer mais sentar-se imóvel no linguajar gramatical dos vastos conceitos, a fúria do movimento é a dobra que deseja adentrar, a estruturação desse corpo em ação é própria da desobstrução do verbo. Eu só aceito os pactos. Escavar os emaranhados da sabedoria não com a gentileza da amizade, mas antes com uma sede nunca sedentária. Roer a sabedoria. Com ânsia. A fúria é minha irmã. Ela encrava no chão sábio comigo. Meu amor por Sophia não a deixa em paz. Os ftonósofos são intranquilos, se agitam como quem ebole, fazem unguento, desconfiam. Com os corpos tomados dos meus sucos, eles não ficam imóveis, bailam como quem treme, como quem não consegue parar de vibrar.
Ftono sai do banheiro e encontra ao seu redor, no bar, com sete ftonisas. Todas vestidas de túnicas verdes e com três tetas a mostra. São leitosas, abastecidas, são Artemis e são Cassandras. São os sete alçapões dos ciúmes. A primeira é encurvada e se move apenas para trás, a cabeça baixa, os olhos semifechados, o pescoço intimidado. É a Vergonha de Si. A segunda é ainda mais encurvada, mas olha para o alto – é a Orgulho de Si. Por que não mereço mais? Também quero aquilo, também eu. O pensamento inveja a dança. Ciúmes do que pode um corpo que dança. Este é o componente da relação entre as duas onde o pensamento não se defende da dança, ao contrário, ela se dissolve. A inveja é uma vergonha-de-si. O pensamento quer ser outro, também quer se desvencilhar de si. E é um orgulho-de-si: também quer ser aquele outro. O zelo pelo que é dos outros, pelo que os outros são. As ftonisas se sentam no bar na mesa dos ftonósofos, todos vestidos com uma camisa branca apertada e uma larga calça preta. Um deles diz:
FTONÓSOFO: Pensar é imundo, é vergonhoso, é do submundo, do subterrâneo, dos estratos lamacentos. É como os animais que se contorcem para chegar a superfície, para chegar ao chão – que invejam a sabedoria que abre os caminhos. Mas a lava não tem destino certo, ela expira, inspira, se adentra ainda mais nos fossos do centro da terra. O pensamento trisca o inferno, é desconforto, é metábole constante – metabolismo.
Já os corpos são todos disformes. Cada um a sua maneira. Corpos não são incorporações. O corpo que dança é um corpo sem corpo. Chega Jerôme Bell no bar e se aproxima da mesa das ftonisas e ftonósofos. Ele aparece de fraque e com um chapéu de palha com os fiapos de palha soltos em sua fronte. Jerôme fica em pé, parado, apenas fala, como se dançar fosse já desnecessário:
JERÔME BELL: Por que as pessoas vão ver tantas vezes o Lago dos Cisnes? Ele dizia, é porque os bailarinos tem uma maneira própria de errar. O momento do desengonçamento é o momento da graça. Porque se não houver o momento da graça – que intervenham os deuses que criam outros precipícios – é melhor ficar contemplando os relógios de parede, ponteiros que balançam por anos no mesmo ritmo. Ou ouvir metrônomos. Mas os epicuristas nunca acharam os relojoeiros perfeitos.
As ftonisas tem corpo de ftonisas. Os filósofos tem corpo de filósofos. Os bailarinos não. Os masoquistas tem corpos da masoquistas, as catadoras de coco tem corpo de catadoras de corpo, as putas tem corpo de putas, os ministros tem corpo de ministros, os pedintes tem corpo de pedintes e os empregados de telecentros tem corpos de empregados de telecentros. Os quadrados tem o corpo de quadrado. O círculo tem o corpo de círculo. Os bailarinos estão em função das dobras invisíveis, não podem se dar ao luxo de ter um corpo... de bailarinos.
Cena 6:
Cemitério. As ftonisas avançam em cortejo fúnebre para que o enterro do filósofo siga em triunfante passada. Hipátia de Alexandria chora ao som de um bolero, lá está o seu amor, assim como a sua cova. Hipátia veste uma roupa de tule em que estão bordadas imagens de conceitos gestados pelas mulheres de Atenas. A Enfermeira Luminosa Razão ressurge, carrega sangue em todo se corpo, tenta desesperadamente uma transfusão de suas veias para o caixão, vai aos poucos dissecando. Sophia perde um amigo, Baco reencontra o apogeu da desordem e Ftono flerta com Eros. O carnaval vira luxo de morte, baila em esquecimento. Sophia declara:
SOPHIA: Aqui jaz o cenário do alvoroço verbo. A filo de tua sofia mostra em fala o quão importante foram os assuntos que falaram. Perderam-se meios, lacunas de silêncios feitos, e trataram de esquecer palavras equivocadas. Riu de si pouquíssimas vezes. Escondeu que gagueja. Tratou de não se desarticular em gestos, movimentos expressos necessitando o carregar de uma equação de praga. Pragmática. De uma circunstancia no afim de, efeito de tuas causas. Tu filósofo invejaste o que te mata, o que te dança. Queria outro, então aqui te vai, certo que renascerás da sombra nesse eterno encontro com a terra, e das sombras talvez não sairás, desengonçando.
A noite então se adentra. Nix surge gesticulando, cega, tateando os corpos ali presentes. Diz:
NIX: Não há mais caverna de ilusão, apenas mergulho de luminosidade nesse consciência em eternidade obscura, para a verdade não há mais claridade. Platão é um travesti sendo queimado na fogueira.
Todos aplaudem. Platão aparece então com seu corpo bombado e com uma pequena calcinha onde se lê: “O medo do ridículo é ridículo ao pensamento”. Logo aparece seu maquiador, que freneticamente passa pós, loções e poções pela cara do filósofo. Platão não consegue se mexer com os movimentos do maquiador. Por fim, ele prende o maquiador entre seus dedos e lhe sussurra algo ao ouvido. O maquiador então conta a todos:
MAQUIADOR DE PLATÃO: Platão me pede para informar a todos que também ele se morde de inveja da sabedoria. Tão galante, tão altiva, tão cheia de pretensões à imutabilidade. Mas desconfia que seu ciúme o deixou por demais humilhado, rastejante, serviçal. Ele agora quer parar de imitá-la (mimesis) e passar a participar (metexis) ainda mais dela. Ele quer se travestir, se precarizar, deixar de lado qualquer defesa. Não era a cortesia para com Sophia que o movia, ele me disse, era a inveja. Mas agora, ele quer também se tornar um ftonósofo.
Platão pede ao seu ajudante de As Ftonisas fazem sua última dança em agradecimento à noite ao som de tambores enfurecidos. A Enfermeira Luminosa Razão seca, e o caixão é levado para a terra com seu corpo exposto deitado e enrijecido por cima. Sophia conclui o ritual entregando para Ftono um pedaço de coruja que acabará de sacrificar, todos na mesa sentam e devoram o pássaro com taças cheias de vinho. Brinda:
SOPHIA: Assim como a entranhada terra devolve para a superfície o rasgo do abalo, que se erga um novo homem, um homem que inveje um deus, um “homem que só acredite em um deus que saiba dançar”. Eros e Ftono dançam. Ninguém dança se ficar com as mãos dadas o tempo todo.
Cena 7:
Floresta. Numa clareira Isadora Duncan dança samba. Acompanhado de um pandeiro, a voz de Novarina canta um samba sobre a sabedoria: “Sabedoria é hospitalidade, morrer por nada depois de viver de tudo”, depois emenda um Noel: “pra que rimar amor e dor?”. Aparecem umas Heráclitas caquéticas que caminham com vestidos brancos, aos poucos seus vestidos vão se encharcando de sangue, menstruam na menopausa. Em coro cantam uma ladainha:
CORO DE HERÁCLITAS: Eu nunca menstruo o mesmo sangue duas vezes, eu nunca menstruo o mesmo sangue, duas vezes eu nunca menstruo o mesmo sangue duas vezes.
Do rastro de sangue das Heráclitas surge Bataille vestido de carteiro arrastando uma grande encomenda, deposita-a no centro da clareira e proclama:
BATAILLE: Ei-lo, capturado, esse homem foi encontrado e entrego-o aqui perante esse aviso: isso não é mais um filósofo, mas talvez um santo, talvez um louco, mas que pensa da mesma maneira como uma menina tira a roupa. Na extremidade de seu movimento o pensamento é o impudor, a própria obscenidade.
As Heráclitas cheiram o pacote como cadelas farejando por mais sangue. Rasgam com os dentes, avarentas de fome, a tal encomenda. Uma delas olha para Bataille e ainda está escutando o que ele disse: o pensamento é impudor, a própria obscenidade. Impudor, obscenidade... Ela olha para o chão e murmura:
UMA HERÁCLITA: Será que o pensamento, mirando o saber e como quem escuta o ritmos de uma passacaglia que está tentando dançar, é movido por Epythymia? Será a luxúria que move o pensamento em direção a querer armazenar alguma coisa, embolsar alguma coisa, preservá-la da corrosão dos seus próprios sucos? Ou será a cobiça mesma que faz pensar? A cobiça por um saber que talvez seja impossível – se não houver nada além de acidentes no mundo, talvez nada possa ser entendido, nem compreendido, nem sabido. Mas o pensamento cobiça. Luxúria. Ou talvez seja mesmo Ftono – talvez seja a inveja que move as manivelas do pensamento. Eu sinto nas minhas vísceras que o pensamento é lama, é lodo, é de se deitar ao chão...
O ftonósofo surge invejoso e invejado, ridiculariza a si mesmo numa dança desengonçada. Saber. Saber de si. Invejar a parte de si que sabe de si. Querer imitá-la. Querer tornar-se ela. Arrastando-se no chão, ele aperta o peito, o dorso, o lombo como quem quer se segurar, se capturar a si mesmo:
FTONÓSOFO: Finjo, através do âmago de mim, que sou conhecido, que posso me conhecer, que aquilo que eu sei sobre mim ainda não me escapou. Invento umas mentiras sinceras para sustentar meu apego ao auto-conhecimento. Tenho que saber, tenho que saber de mim. Pelo menos a minha pequena sabedoria de mim, não a arranquem de mim!
Marcel Duchamp entra na cena vestido de médico legista e proclama com um com ar categórico:
MARCEL DUCHAMP: Isto não é um filósofo!
As Heráclitas se mijam de tanto rir, caquéticas e desorientadas besuntam de sangue o ftonósofo, este abruptamente gargalha e proclama:
FTONÓSOFO: Invejo-te Baco. Invejei a embriaguez como invejei a fama e até a miséria. A embriaguez me seduz: o pensamento que não responde, apenas declara! E assim comecei a invejar Sophia. J’ai envy de toi! Isso me faz pensar, me faz dançar. A sabedoria da dança é razão do desejo.
Festeja novamente com uma dança desengonçada. As Heraclitas caquéticas bailam como um corpo de baile da pior natureza, coreografadas. As ftonisas entram em cena como que cegas, esbarram em todos os que dançam e caem no chão.
Cena 8:
Uma enorme lâmpada elétrica em uma sala fechada. Ao lado um banco onde se sentam-se três sambistas com um pandeiro na mão. Não falam e nem tocam e nem cantam e nem citam ninguém. Silêncio. Você inveja o silêncio?
Há algo de mariposa nestas danças e nestes pensamentos das gentes. Serão elas movidas por um desejo de luz? Uma amizade – um ciúme? Entra um ballecketterino vestido com uma máscara de tule. É a razão que morre de amores, que se morde de ciúmes, que saliva de inveja, que se corrói luxúria. Mas ela também é parente da audácia, das filhas do anjo e de todos os comboios de corda, das cordas de plástico e das cordas de elástico. O ballecketterino é do tipo que não olha quando Sophia passa:
BALLECKETTERINO: Não quero culpar a razão por nada, nem por inveja, nem por luxúria. E, no entanto, ela vai ter que se comportar por que eu não vou me comportar por ela. Os filósofos invejam o corpo des-pensado, dançar é atiçar – atiça a luxúria, atiça a inveja, atiça a cobiça. Os pecados capitais – todos eles têm parte com a audácia – as vezes se misturam em um só gesto, em uma só torção. O ftonósofo não esconde seus ciúmes, se arrasta com eles. É que Sophia não pensa, ela já está toda pensada. É como um corpo pronto. Eu prefiro a coreografia dos que roem as unhas.
Ao lado do banco com os sambistas, aparece Entre Platão de tutu e sapatilha de ponta ao som Adolphe Adam, segundo ato de Giselle. Ele fala sem fôlego, como se não tivesse parado de dançar por muitos séculos:
PLATÃO: Meu amor foi ameaçado, quando descobri que a sabedoria se disfarçou de camponesa para conquistar uma bailarina, padeci. Ela que sempre foi duquesa, teve a audácia de ir no mais baixo submundo dilacerado da mentira, retraiu-se para esconder-se na caverna do amor. Por isso, hoje, sou Giselle, hoje a sabedoria me ama, mas também me mata. A razão é travestir-se.
Isadora Duncan abençoa Platão vestida de baiana. Ele faz o solo de Giselle ressuscitando de sua cova. Eros trabalha na bilheteria pegando os ingressos do público. Ao invés de amor, o ingresso é inveja:
EROS: Inveje esse homem, inveje seu amor mortal que teve pela sabedoria e do qual nunca pode esconder. Sua verdade agora é fato: entre o amor e a amizade surgiste fervoroso no meio termo a que tudo sucumbe, a inveja de outro. Já ouvi mesmo dizer que o amor se mede pelas unhas de Ftóno. Falam que eu flecho. Nós flechamos, os erósofos, os ftonósofos, e eu nunca vi Sophia.
A lâmpada se apaga. Barulhos de mariposas. O pensamento não é ridículo senão pelo corpo. No lugar onde havia a lâmpada, acende Athikte. Ela pula alto e cai sobre um dos seus pés:
ATHIKTE: Asilo, asilo, asilo, o meu asilo. Eu vivo em ti, movimento, e fora de todas as coisas.
Ftono aparece rastejando aos pés de Athikte. Lambe os beiços. Inveja o asilo. O mais profundo é a pele. Agora já não há mais leveza inesgotável no palco. Apenas o ranço da inveja, do ciúme, e Ftono, que, outra vez, fala:
FTONO: Querer ter, querer ser, querer acompanhar, querer devorar. Discursos de amor, discursos de gula, discursos de antropofagia, discursos de desejo. Minha mãe Audácia não fazia as diferenças entre tudo isso. Ela nos paria, um atrás do outro. Paria as serpentes e paria os venenos. Meus venenos querem sair pelas minhas culatras. Eu vivo em função das minhas culatras. É simples assim ser filho da audácia...
Os três sambistas agora se revelam como sendo Sócrates, Erixímaco e Guillermo Gomez Peña. Sócrates é o primeiro a falar, mas os outros dois lhe retrucam prontamente e quase sem interrupção:
SÓCRATES (apontando para Athikte): Esse serzinho dá o que pensar... Reúne em si, assume uma majestade que estava confusa em todos nós, e que habitava imperceptivelmente os atores deste festim... Um simples andar, e aqui está a divindade; e nós, quase deuses! Parece enumerar e contar moedas de ouro puro, aquilo que gastamos distraidamente...
ERIXÍMACO (apontando para Ftono): Esse serzinho dá o que pensar... Reúne em si, assume uma majestade que estava confusa em todos nós, e que habitava imperceptivelmente os atores deste festim... Um simples andar, e aqui está a divindade; e nós, quase deuses! Parece enumerar e contar moedas de ouro puro, aquilo que gastamos distraidamente...
GUILLERMO GOMEZ PEÑA: Me sinto como uma puta que dirige uma astronave cheia de monjas, ou vice-versa. Uma vez vi uma bailarina mijando em um mictório de banheiro masculino. Era tanto tule... Ela dançava, eu invejava. Nunca acreditei nas fronteiras ríspidas, nem mesmo quando vivi em Tihuana. Eu sempre posso errar de endereço.
As pitonisas entram juntamente com as ftonisas como um coro de bacantes, bebadas se dirigem para o centro do palco onde Steve Paxton colide com uma pedra sem parar:
STEVE PAXTON: aqui agora só há costelas e fluxos. Onde move a espinha move piton, o destino, e nada há além desse choque invasivo que me permite perpetuar o eterno em agora. Que seja a dança o encontro do acontecimento!
Aparece Pedro Costa, vestido de Solange e estando aberta. Ouve-se os acordes iniciais de “Eu vou fuder o cu do Freud”. Ele se enrosca com Steve Paxton e declara subitamente:
PEDRO COSTA: A errancia é a fonte dessa criação passando pelos membros de uma aparição, o bailarino é o ftónosofo, ele abre as temporadas de desapropriação da sabedoria, enrola-se com escama de pele desmembrada e pode falar enquanto morde, doer enquanto sopra e respirar enquanto pensa. O silêncio agora é o seu verbo e a dança sua audácia. É que Sophia é turbulenta e bagaceira – invejá-la é contorce-la. E ela dá as boas vindas aos invejosos: venham, mordam minhas sapatilhas.
Pedro sai correndo com Steve. Aparece o anjo que puxa as ftonisas e as pitonisas. Eles correm em círculos, colhem flores e levantam o banco onde estão os três sambistas. Começam a retirar o banco de cena. Os sambistas começam a bater no pandeiro como se estivessem sendo assolados por alguma fúria que não mais compreendessem. O barulho das mariposas aumenta.
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