[This is the introduction to The Diaspora of Agency, a book I'm writing with Jadson Alves. In the introduction I distinguish 5 ways to understand the spread of human agency and extend them to agency in general: 1. Transcendence of agency: there is no agency among concreta, agency is in God, in the laws of nature or rather nowhere (here I find Meillassoux, Brassier and also eliminativists like Dennett or the Churchlands); 2. Immanence of agency: there are no agents among concreta, but there are agential forces that produce individuals (here I find Foucault, Simondon and Karen Barad); 3. Immanence of interdependent agents: there are agents but they can only be identified with reference to the rest of the world or of their environment (here I find the monadologies, Lebniz's but also Tarde's, Whitehead's and Latour's); 4. Immanence of independent agents: there are agents and each of them can be defined independently of all the others, they have substrata and they precede the social interactions with all the others (here I find OOO) and 5. Transcendence of the agent: there are agents, but no ontology; agency can only be treated ethically - or politically (here I find the Levinasians). ]
Introdução: Um universo inter-animado
Monadologias
Ao longo do século XX era comum se entender que a metafísica tinha pouco a aprender com as ciências sociais. Não apenas pela baixa reputação da primeira e pelo menor valor dado à segunda em comparação com as disciplinas dedicadas à natureza, mas também pelas convicções prevalecentes de que há em última instância leis dando conta de tudo. Se o mundo é fundamentalmente regido por leis da natureza, os fenômenos sociais, ou estão confinados ao que é humano ou são não mais que aparências. Neste caso, se houver espaço para alguma empreitada metafísica, ela deve tomar as leis, e não a interação social, como ponto de partida.
Sempre houve, no entanto, vozes discordantes. Dentre estas vozes, algumas insistiam em um escopo genuíno de interações sociais. Algumas delas insistiam em variações da ideia de que a melhor maneira de entender tudo o que há é postular uma sociedade de tudo: existir é co-existir. A co-existência do que existe em um âmbito comum, para estas vozes, é uma pista importante na busca de uma imagem do mundo. A ideia era tratar a arena onde tudo tem lugar como uma sociedade – heterogênea, mutante, conflituosa e também cooperativa. Não como uma coleção de itens semelhantes, mas como um espaço de convívio entre diferentes. Essa ideia – tratar o mundo como um espaço social de interação – apareceu já na força motriz da monadologia tal como foi concebida por Leibniz. Ela introduziu a imagem do mundo exterior como repleto de fenômenos sociais que envolvem não apenas agentes humanos, mas também todo o resto. Cada uma das unidades de existência, distinta de todas as outras e a seu modo animada, são mônadas, que Leibniz concebeu como intrinsecamente vinculadas a um mundo. Para cada mônada, o mundo, onde há sempre outras mônadas, é onde ela se expressa, porém jamais soberanamente já que ela nunca está sozinha (no mundo). A monadologia, portanto, não é apenas a tentativa de espelhar a metafísica nos vínculos sociais, mas também uma concepção destes últimos segundo a qual nenhum indivíduo existe sem elos com uma sociedade. A ideia monadológica é a de que o mundo é formado por unidades distintas que mantém elos sociais; o mundo externo pode, portanto, ser modelado em termos de uma sociedade onde os agentes são interdependentes. É esta ideia que este livro explora.
Gabriel Tarde deixou explícito o elo entre monadologia e os fenômenos das associações – o não-humano, ele apontou, pode estar tão envolvido por elos sociais quanto nós. Sua intenção era aproximar uma sociologia universal da monadologia; de um ponto de vista monadológico, a metafísica seria como que uma extensão da sociologia. Ele falhou em persuadir os cientistas sociais de seu tempo de que seu domínio se estendia para além do que é artefato humano, porém ele abriu espaço para explicações sociais em metafísica. Este espaço foi explorado por muitos filósofos diferentes entre si.1 Alfred Whitehead elaborou uma filosofia do organismo em que nenhuma explicação pode estar completa se não recorre a unidades de agência concebidas como os ingredientes últimos do universo e que são interdependentes entre si. Mais recentemente, Bruno Latour fez um uso metafísico da noção de associação para entender como não apenas animais e plantas, mas também utensílios, máquinas, instituições e objetos em geral forjam alianças e compõem redes. Entendemos, neste livro, estas metafísicas como monadologias e, assim, herdeiras de Leibniz – ainda que em muitos sentidos relevantemente distintas da monadologia proposta por Leibniz.
Este é um livro sobre monadologia. Como um dos seus intuitos centrais é o de multiplicá-la, usaremos muitas vezes o plural. A ideia de uma monadologia, como a entendemos, é profícua porque é múltipla – e marca uma posição precisamente em decorrência de sua fertilidade. O outro intuito central do livro é o de explorá-la nesta fertilidade, não para recomendá-la terminal ou terminantemente, mas porque, quase como se fóssemos botânicos, nos interessamos ao mesmo tempo por seus benefícios, suas vulnerabilidades e suas variedades. E procuramos posicioná-la nos contextos dos debates atuais sobre a agência não-humana e sobre o mundo para além da capacidade humana de acessá-lo.2 Para tanto, consideramos a monadologia como muitas, e ainda assim como tendo um núcleo comum com qualidades próprias e dificuldades típicas que marcam um ponto de vista particular que aparece com diferentes matizes. Nossa tese é a de que Leibniz, ao elaborar uma dentre muitas monadologias, inaugurou certo tipo de metafísica, que envolve uma ontologia de agentes e uma concepção da interdependência entre eles. Procedendo assim, ele começou a explorar o espaço que as monadologias compõem. É este espaço, que tem dimensões próprias e pode abrigar muitas maneiras de conceber a agência e a inter-animação do universo, que nos interessa investigar.
A monadologia é uma das maneiras de conceber o que não é humano como algo distinto do que é meramente a jurisdição das leis da natureza. Ela procura entender estas leis não apenas como formando uma constituição, mas em termos dos seus poderes constituintes. Isso porque, dentre as muitas maneiras de explicar o que há fora de nós, a monadologia é uma escolha por um tipo de explicação que aponta para quem fez. Ou seja, aponta para unidades de ação – que respondem pelo que há de concreto. Estas unidades – mônadas – são indefinidamente múltiplas e inexoravelmente distintas; são elas que provêem razão suficiente para que as coisas concretas sejam como são. Ao invés de conceber o mundo como aquilo que obedece a leis, a monadologia o concebe como um aglomerado de instâncias capazes de agir e que expressam em meio a todas as outras. Tais instâncias têm, assim, a capacidade de constituir leis; ou seja, de instituí-las, mantê-las ou revogá-las. As leis não estão inteiramente fora do seu alcance, ainda que dificilmente possam ser ignoradas por um grupo pequeno de agentes. Procedendo assim, a monadologia faz com que as perguntas por que ou como sejam compreendidas como próximas das perguntas quem, e que menções a tudo ou ao mundo exterior se entendam de modo similar àquelas a todos ou aos outros. Nas monadologias, portanto, a agência que faz com que o mundo seja como é está concebida como estando em toda parte. E a agência em diáspora não está pairando no ar, ela tem endereço e nome certos – ainda que seu nome certo não possa ser mais do que uma descrição definida que envolve o resto do mundo que ela participa.
É que uma monadologia não é somente uma proliferação de unidades de ação. Ela entende que estas unidades são interdependentes. Uma monadologia não é nem um simples atomismo ou pluralismo e nem exatamente um monismo em que todas as partes respondem a um todo. As unidades de ação estão associadas ao mundo onde elas agem – e, portanto, a outras unidades que compoem este mundo. Mônadas são singulares precisamente porque tem uma relação única com todo o resto do que existe. Nas monadologias, vale notar, não há um espaço interior destas unidades – a não ser no sentido de que o interior das mônadas, que são como pontos de perspectiva, recapitulam seu exterior. Grãos de areia que refletem de alguma maneira o universo onde eles se encontram. As monadologias surgiram em um flerte com o infinitamente pequeno – está, portanto, aberto a elas conceber o básico como sendo o infinitesimal, e já que o infinitesimal é elusivamente menor que qualquer outra coisa, e também como o indefinidamente pequeno. Em todo caso, há unidades de agência, distintas umas das outras, convivendo umas com as outras.
Este livro defende e explora a tese de que as monadologias, de fato, formam um tipo específico de metafísica e, por isso mesmo, carregam certas potências e certas deficiências em suas contribuições aos debates atuais. Elas constituem um modo de entender os componentes últimos do tecido do que há – o dramatis personae do universo -, mas também de articular como cada um destes personagens se vincula aos demais, tanto enquanto elementos singulares que se relacionam uns com os outros singulares quanto como partes de uma trama ampla. As monadologias, assim, são cosmopolíticas.3 Políticas porque são mais sobre como tudo está sendo constituído do que como tudo foi determinado. Ela trata o mundo como todo o mundo. Cósmicas porque os protagonistas nessa arena política estão por toda parte. Monadologias apresentam um campo onde tanto o que é humano quanto o que não é é mutuamente constituído, um âmbito onde subsistências e vulnerabilidades, perspectivas e resistências co-existem e se tecem mutuamente. É neste espaço de uma realpolitik de mônadas que se situa o tema deste livro: como elas convivem, e o que resulta deste convívio. Como se trata de agentes que por toda parte convivem, se trata de expandir o escopo do ético; as exigências e os impasses éticos do convívio se estendem até onde se estende a agência. E é precisamente porque uma ontologia que postula agentes não pode negligenciar o convívio entre eles que monadologias marcam também um tipo de ética, uma ética que se move na imanência de tudo o que é mundano.
Com o foco na ideia de monadologia queremos indiretamente investigar como e em que medida a herança leibniziana foi recebida nos últimos anos. A influência da metafísica leibniziana não foi percebida nem como marcante na filosofia no último século. Entretanto, sua presença pode estar se tornando considerável na imagem que o século XXI faz do que teve lugar no século XX. Como vimos, este livro tem como personagens protagonistas além de Leibniz, Tarde, Whitehead e Latour. Tarde e Latour falam explicitamente de mônadas e de monadologias e se referem à ontologia de agentes de Leibniz como um ponto de partida para suas metafisicas. Whitehead, por outro lado, tem uma relação menos clara com Leibniz, em parte por conceber sua filosofia do organismo como herdeira sobretudo de Locke (e de Descartes). É uma tese central deste livro que Whitehead propôs uma filosofia do processo que é um tipo de monadologia e, assim, a presença de Leibniz é central nos seus postulados básicos. Essas três monadologias não-leibnizianas contrastam entre si em sentidos específicos e são todas distintas da monadologia de Leibniz. Uma das empreitadas deste livro é a de encontrar exatamente onde se encontra o pomo da discórdia. Nós vamos sugerir que este pomo, no entanto, só pode ser entendido à luz daquilo que é compartilhado pelos dois lados; a discórdia, portanto, é intestina à ideia mesma de monadologia.
Agência
A ideia de uma monadologia foi introduzida por Leibniz em um contexto em que se tratava de explicar como os elementos anímicos e extensos do mundo se articulam - e como cada animação imprime efeitos sobre todo o resto. Leibniz postulou a monadologia como um concerto de agentes que se distribuem por todo o mundo – mônadas são introduzidas em um dos seus últimos textos como “capazes de ação”.4 A monadologia é assim uma ontologia da agência: ela trata de onde a agência está e como ela se distribui. Leibniz chegou a ideia de monadologia, tal como expressa em seus últimos escritos que tomaremos como ponto de partida neste livro, a partir da noção de substância como unidade anímica. A agência, e sua distribuição, é uma preocupação fundante da monadologia – e sua plausibilidade depende de quanto e como a agência é distribuída no universo.
Sendo sobre monadologias, este é portanto um livro sobre agência. Em termos muito gerais, agência está vinculada à ação, à animação, à atividade. Ela vai ser entendida, na maioria dos casos neste livro, como a capacidade de dar início a algo; ou seja, como a capacidade de começar alguma coisa que não é um seguimento ou um prosseguimento de alguma outra. Pensamos nela como aparentada daquilo que Kant chamava de causalidade pela liberdade,5 que ele entendia como o começo de uma cadeia causal autodeterminada independente da cadeia dos eventos naturais. Assim, ela está próxima à espontaneidade – atribuir agência requer tanto detectar ausência de uma força externa coerciva de qualquer ordem quanto encontrar um fio condutor de uma ação que a distinga da aleatoriedade. A agência contrasta, assim, tanto com a heterodeterminação – aquilo que segue alguma outra coisa – quanto com a indeterminação. Ela requer que algo surja de si, que seja um ponto de partida, em contraste com uma continuação ou um com um acidente. Aristóteles distingue a geração de qualquer coisa a partir de alguma transformação (gignomenon).6 Esta transformação pode ocorrer por causas naturais (phusis) ou seja, por causa da natureza de alguma coisa, do artifício de alguma outra fonte (technè) ou do que ele chama de automaton. A phusis invoca alguma necessidade inerente à coisa que provoca a transformação. A techné aponta para o impacto de um elemento externo. Automaton é as vezes traduzido como acaso e as vezes como espontaneidade – e de acordo com Aristóteles se trata de algo que não está na alçada de nenhuma outra coisa. Não é determinado nem pela natureza e nem por qualquer artífice. Assim é a agência: ela é um começo porque não está subsumida por nada, nem por uma necessidade e nem por uma imposição alheia – e nem é produto de alguma indeterminação.
Interessa-nos como a agência se distribui – e nos perguntamos sobre sua natureza considerando sua extensão. Ela pode estar concentrada em algumas partes especiais do universo – Deus, os humanos, alguns mais poderosos dentre os humanos, os animais, as micropartículas – ou pode estar por toda parte ou em parte alguma – e neste caso não haveria nada que seria capaz de começar alguma coisa. A dificuldade de determinar como a agência se distribui deriva em grande parte das dificuldades relativas a como as coisas são governadas. O governo é o começo de um ato e, ao mesmo tempo, um dispositivo que instaura um seguimento – como se segue uma regra ou um mandamento. É assim que o tema da agência esbarra no tema da arché já que a distinção entre começadores e prosseguidores é, sem dúvida, tributária de uma ontologia do comando que distribui aquilo que há em instituidores e instituídos, e assim entre agentes e elementos inanimados ou passivos – entre sujeitos de um comando e objetos, assujeitados a um comando. Agamben mostra como a partir do termo arché, comando como em mon-arquia e começo como arque-ologia, há um viés em direção a entender seguimento de um comando e prosseguimento de um começo como intimamente aparentados.7 Consideradas neste viés, ontologias que postulam agentes – e monadologias em particular – são ontologias de arché, de onde comando e começo têm, ambos, lugar. Se os agentes são distribuídos, há inúmeras instâncias de arché que são, como veremos, como partículas de governo precisamente porque são pontos onde algo se origina. É no contexto de pensar a arché que aparece o tema da distribuição da agência – e algumas das consequências problemáticas das monadologias em geral resultam de que elas mantêm ainda um vínculo entre ontos e arché.
Interessa-nos também como a agência é exercida – por quem, mas também de que maneira: se em isolamento ou em associação, se por todo o tempo ou apenas de uma vez por todas. Tudo isso forma uma tentativa de explorar o espaço das ontologias da agência. E neste contexto é que entendemos as monadologias a partir de certa maneira de teorizar a agência. Elas a teorizam como distribuídas principalmente por uma diáspora de agentes. Em um sentido importante, elas contrastam com a visão de que a agência se limita ao que é humano e que agentes são apenas agentes humanos. Elas se contrastam também com a ideia de que a agência paira independente de agentes. A ideia de que a agência se dá entre agentes – já constituídos e estabelecidos – faz com que tudo seja uma ação a ser compreendida em termos de quem a provocou. Agentes são unidades de ação constituídos – como indivíduos em uma sociedade, como sujeitos. Monadologias são um tipo de ontologia de agentes – ou, talvez, de articulação social de agentes.
Antropologias da agência
Para considerar com mais vagar o espaço das ontologias da agência, podemos nos concentrar por um instante no espaço das antropologias da agência; ou seja, como podemos conceber e analisar a agência humana. Acerca da agência humana, é interessante distinguir cinco posturas que se distinguem pela relação entre agente e a agência e pela maneira como agentes são concebidos. Não poderemos faremos aqui mais do que uma caracterização esboçada destas posturas que tem muitas ramificações e corolários interessantes a serem explorados.
1. A primeira postura é aquela segundo a qual não há agência entre os humanos – nem em agentes individuados nem em sua associação já que os humanos não estão jamais às voltas com o começo de coisa alguma e não fazem mais do que seguir comandos. Pode-se conceber que os humanos seguem alguma necessidade que provêm, por exemplo, de leis da natureza – ou de algum comando divino – e assim não são senão determinados por agências alheias, ou por nenhuma agência real. Esta posição inanimista acerca do humano pode ser encontrada entre aqueles que recomendam um determinismo neurológico associado ou não a imposições genéticas. Esses são os herdeiros do homem-máquina de La Mettrie8 que postulam que não há nenhuma instância de agência entre humanos, todos os seus gestos podem ser entendidos apenas em termos de uma mecânica, ou de algum conjunto de leis de alguma ordem. A mente humana, incapaz de agência, seria uma coleção de origem bioquímica de dispositivos físicos e toda aparente capacidade de começar atos seria nada mais do que um seguimento de determinações, por exemplo, neuronais, ou seria uma ilusão. Os estados mentais seriam ou eles mesmos estados físicos, ou seriam instanciados em casa caso por estados físicos ou seriam inexistentes, não mais do que produtos de uma ignorância momentânea acerca do que se passa entre humanos.9 Neste caso, não há nem agentes humanos e nem agência entre as coisas humanas – as sociedades humanas seriam não mais que complexas instâncias que executam leis que as transcendem. A agência estaria em algo que transcende a humanidade – a natureza, por exemplo, que fornece todo comando e assim dita todo o funcionamento dos assuntos humanos. Não haveria, entre humanos, nenhuma agência já que ela de alguma maneira transcende o que humanos fazem – seguem determinações estabelecidas por outra instância. Podemos chamar esta posição, quanto à antropologia da agência, de transcendência da agência – no caso específico do apelo as leis da natureza, a agência transcendente aos humanos se encontra nessas leis.
2. A segunda é aquela que rejeita que haja agentes humanos genuínos, mas postula agência nas sociedades humanas. Os indivíduos humanos não são genuínos agentes, mas são produtos do agenciamento social ou coletivo. As forças sociais são que agenciam indivíduos por meio de afetos, poderes, disciplinamentos. A agência, que se remete a classes sociais ou a gêneros ou a identidades étnicas ou raciais e outros dispositivos que dão forma às sociedades humanas, produzem também os indivíduos. Há, nas sociedades agência sem agentes, e vale algo como a fórmula de Foucault: “o indivíduo é o produto do poder”.10 Não é portanto em cada um dos indivíduos que se encontra a agência, ela está nas forças agenciadoras que ou fazem uso dos recursos disponíveis no emaranhado social para produzir indivíduos. Estes indivíduos são ou consequência de determinações gerais que apenas dão uma impressão ilusória de que há neles agência ou são produtos de múltiplos agenciamentos que os singulariza já que invocam elementos singulares sub-humanos.11 Aqui não há agentes individuais e é apenas em uma associação de humanos que surge a agência – são associações que tem classes, gêneros ou diferenças raciais. A agência não está em nenhum dos indivíduos em isolamento – apenas os dispositivos sociais humanos comandam – e genuinamente começam cursos de ação. A agência social produz indivíduos que agem menos por motu próprio e mais pela distribuição de poder associado a eles pelos agenciamentos vigentes. São esses que constituem o mobiliário último das sociedades humanas e que apenas se realizam nos indivíduos, eles mesmos passivos ou inanimados. Agentes, neste caso, são considerados em termos dos processos subjacentes a eles e os indivíduos não são senão resultado destes processos que tem a capacidade de individuar. Nesta segunda postura, assim como na primeira, é difícil encontrar qualquer instância ética se associamos a esta alguma responsabilidade ou habilidade de resposta. Se não há agentes, é difícil atribuir a quem quer que seja alguma responsabilidade. Essas duas antropologias da agência são avessas à ideia de indivíduos são pontos em um espaço ético já que não há genuínos agentes. Nesta segunda postura, há talvez espaço para gestos políticos que afetam as direções dos agenciamentos e que são começados por outros agenciamentos igualmente indiferentes à qualquer agente. Podemos chamar esta segunda postura de imanência da agência sem agentes.
3. A terceira posição é aquela que entende a agência social humana como sendo sempre um produto de agentes já constituídos. Ou seja, os agenciamentos não podem produzir indivíduos se não estiverem balizados, patrocinados ou mantidos por outros indivíduos. Assim, o indivíduo é um produto do poder de outros indivíduos. Não há na sociedade humana nada que, sendo resultado de alguma agência humana, não tenha sido introduzido por algum grupo de agentes e conservado pelo interesse de algum grupo de agentes. Nesta postura agenciamentos por eles mesmos não explicam nada, a menos que haja uma remissão a alguém que está por trás deles – ações coletivas não são produto de um espontaneidade emergente e nem de uma espontaneidade anterior a qualquer indivíduo, mas produtos da ação dos agentes. A eficiência de agenciamentos de classe, gênero ou raça depende dos grupos de agentes que implementam, por exemplo, a supremacia de certa classe, gênero ou raça – não há supremacia da burguesia, dos homens ou dos brancos sem a ação de patrões, homens e brancos no sentido de instituí-la e protegê-la. Analogamente, não há distúrbio na ordem destes agenciamentos senão pela ação de grupos de agentes.12 Agentes humanos, vistos assim, são constituídos na interdependência social; indivíduos são produtos dos poderes instituídos e da resistência a eles – mas esses poderes têm um lastro em outros agentes individuais que os implementam. Indivíduos humanos não são indiferentes aos demais e nem podem surgir ou serem o que são (individuados ou identificados) senão em relação com o meio social em que vivem – são criaturas intrinsecamente inseridas em sua sociedade. Os indivíduos que fazem valer os agenciamentos e aqueles que são constituídos em meio a estes estão portanto em um vínculo social importante; é aqui que há uma interdependência social que deve ser entendida como interdependência entre agentes humanos. A afirmação de que há agentes humanos individuais, nesta postura, não exorciza ou elimina os elos sociais e nem reduz sua relevância mas apenas invoca explicações destes elos em termos de quem os sustenta. Essa postura é a de uma antropologia de agentes interdependentes já que concebe os indivíduos humanos como genuinamente capazes de começar e comandar ainda que em meio aos vínculos sociais estabelecidos com todos os outros. Podemos chamar esta postura de imanência dos agentes interdependentes.
4. A quarta postura difere da terceira quanto à interdependência dos agentes. Nela, cada agente é constituído em completa indiferença com respeito aos demais – indivíduos são como átomos e a sociedade que eles formam não é nada mais do que sua sombra. Trata-se de afirmar que não há genuinamente sociedades, apenas indivíduos que são dotados de toda agência independentemente dos demais agentes. Cada um deles é autônomo e se constitui em processos alheios a cada um dos outros agentes e às associações que eles formam e cada um se individua com independência de todos os outros. Trata-se, aqui também, de uma antropologia de agentes, mas estes agentes não são interdependentes e sim autônomos e subsistentes por si mesmos. Os elos sociais são aqui não mais que ocasionais e as associações entre indivíduos não são constitutivos do que eles são mas simplesmente contingentes a sua localização em uma sociedade. Aqui agenciamentos não são capazes de forjar indivíduos – ainda que sejam produtos de outros agentes – como na terceira postura. Os agentes são fundamentalmente intocados pelos agenciamentos que podem apenas dar origem a instituições sociais das quais os indivíduos são independentes. Os indivíduos, constituídos independentemente de qualquer sociedade, podem se engajar em um contrato social que dá origem a instituições, práticas e convenções sociais.13 Os agentes são como começos absolutos – unidades de espontaneidade cada uma independente de todas as outras. Cada indivíduo atua em sociedade centralmente em função de si mesmo e o que lhe diz respeito é independente de qualquer interesse coletivo. Essa antropologia da agência se aproxima de uma visão liberal das sociedades em que elas são não mais do que construções dos indivíduos, independentes entre si e autônomos enquanto agentes. Nessa postura, indivíduos fazem escolhas guiadas pelos seus próprios interesses e são essas escolhas que moldam a sociedade. Como em uma visão liberal, não há elo social que não seja mantido por indivíduos e não há elo social que não seja opcional para cada indivíduo. Essa postura pode ser chamada de imanência dos agentes independentes.
5. Por fim, a quinta posição desloca os agentes, princípio de toda agência, para fora de qualquer antropologia – nem sequer pode-se saber se eles, por serem agentes, tenham qualquer tipo de motivação ou mesmo que agem movidos por qualquer interesse. Se a primeira postura recusava agência às sociedades humanas em uma antropologia sem agência, esta última recomenda uma agência, de agentes, sem antropologia. Aqui é o outro, o outro agente, que transcende a qualquer coletivo e a qualquer vínculo social. Os agentes humanos não podem ser entendidos por nenhuma antropologia sem que esta lhes faça a violência de retirar deles sua capacidade de agência – qualquer antropologia é já uma violência à transcendência da agência do outro. Não há uma ontologia do humano anterior a como cada agente se encontra com outro – não há antropologia que preceda os encontros. Aqui não é a agência que transcende o coletivo dos indivíduos, mas o outro é que transcende, em sua capacidade também absoluta de começar, qualquer entendimento da sociedade.14 Não é sequer que os agentes são unidades de espontaneidade, mas que eles não podem ser considerados, e não podem ser entendidos, fora de sua agência. Nesta postura, nenhuma antropologia pode preceder a agência dos agentes. Os indivíduos são considerados como pessoas encontradas e toda interação com elas está em um diálogo em que a polifonia de discursos é, em princípio, incorrigível. Além dos agentes individuais serem começos absolutos, eles são outros absolutos – outros para qualquer antropologia que pretenda construir uma narrativa sobre eles que seja anterior ao seu discurso. Aqui são os agentes que transcendem a rede de vínculos sociais – a agência não está na sociedade humana não porque não está nos agentes humanos, mas porque são estes agentes mesmos que transcendem a qualquer rede de vínculos sociais. Esta postura pode ser chamada de transcendência dos agentes.
Estas cinco posturas se articulam em torno de dois polos que são a primeira e a última delas. Na primeira qualquer agência transcende o humano e toda instituição social humana, na última é o agente que transcende toda instituição social humana. Em ambos os pólos a sociedade humana não é lugar de agência – ou a agência está alhures, em algum dispositivo natural por exemplo, ou os agentes são humanos e entretanto alheios ao escopo de qualquer antropologia. Em um polo, o que transcende às sociedades humanas é a agência, em outro são os agentes. Entre os dois polos, três posturas em que a agência não transcende mas reside de alguma forma no convívio social humano. Na imanência da agência sem agentes a agência transcende os agentes mas não os vínculos entre eles – é na sociedade humana e em seus dispositivos que estão os agenciamentos que dão início às coisas. Na imanência de agentes independentes, ao contrário, os agentes são indiferentes a qualquer agenciamento – eles transcendem à sociedade humana se bem que participam dela e são inteligíveis através dela. A posição intermediária (3) entende tanto que há agentes por trás de todo agenciamento quanto que há uma interdependência entre os agentes que fazem com que os agenciamentos sociais se articulem já desde a individuação. Nesta posição, há indivíduos ainda que eles sejam produtos de agenciamentos coletivos que, por sua vez, tem lastro em outros indivíduos que por eles são responsáveis. A postura 3 é, em certo sentido, um ponto médio entre os dois polos – o polo da agência transcendente e o polo dos agentes transcendentes já que nem a agência transcende os indivíduos e nem os indivíduos são alheios às construções sociais.
Ontologias da agência
Quando passamos da antropologia da agência para a ontologia da agência, encontramos grosso modo posturas equivalentes – as vantagens e dificuldades de cada uma delas, contudo, são um tanto distintas. Nesta passagem, entendemos o âmbito da agência como ampliando-se para além do humano, para além do espaço de convívio humano. Fazendo esta passagem é que entendemos como uma teoria da agência promove uma ampliação do que se pode saber acerca do humano para um escopo mais amplo: das sociedades humanas à metafísica. Os primeiro polo (1) postularia, neste caso, que não há agência em parte alguma do mundo sensível, ou entre as coisas concretas. A agência transcenderia o mundo sensível – nada de concreto teria agência. Resta ainda saber se ela estaria presente em algo que transcende o que está no convívio de tudo o que existe – que chamaremos de convívio do sensível – ou se ela está inteiramente ausente sendo assim transcendente porque inexistente. Ou ela seria transcendente – e estaria por exemplo em leis da natureza indiferentes a qualquer coisa concreta – ou ela não existiria. No último caso há talvez uma separação completa entre ontos e arché – todo o que existe é desprovido de agência, an-agente, incapaz de começar qualquer coisa. O elo entre ontos e arché é de fato central numa ontologia que é tributária da noção de comando – aquilo que é ou é um comando (um começo) ou segue (ou prossegue) o comando. Um universo sem agência é um universo de anomia – já que é o nomos que conecta aquilo que é a um comando. Uma espécie de an-arché, uma espécie de hipercaos de que fala Meillassoux, onde tudo é irremediavelmente contingente e, precisamente, mais do que isso, tudo é irremediavelmente incapaz de qualquer comando, de exercer qualquer governo.15 As duas versões de uma transcendência ontológica da agência – a de que não há agência imanente e de que não há agência tout court – podem parecer muito diferentes já que em uma todo o concreto obedece e na outra nenhum concreto comanda. As imagens podem parecer em um caso de subserviência do concreto e no outro de impotência do concreto. Elas, no entanto, se assemelham em um ponto importante: elas tomam o convívio sensível como desprovido de agência.16 Ou seja, o sensível não é apenas incapaz de comandar, mas também incapaz de começar – nem sequer há auto-governo entre as coisas sensíveis. Toda agência transcende o que é sensível; se a agência reside alhures, não há senão governados entre as coisas sensíveis, se a agência não existe, não há senão desgovernados entre as coisas sensíveis.17 Transposta para a ontologia da agência, a posição 1 é a postulação de um convívio do sensível que é, nele mesmo, desprovido de governo. Não há, no sensível, nenhum poder de governar nem sequer a si mesmo.
Pensar a possibilidade de um universo sem agência – ou de um convívio do sensível sem agência – demanda certa atenção. Se o começo está alhures, em um campo que transcende o sensível, cabe a este apenas persistir – ou prosseguir. Por outro lado, se não há começo em parte alguma, não há genuína persistência já que nada subsiste, permanece ou se segue – há apenas fluxo, temporariedade e casualidade. Heidegger escreve que a incapacidade de despedida é uma impotência de começo.18 Onde não há agência, também nada vai embora, há uma permanência do impermanente já que nada fica para proceder à despedida. É como se não apenas o rio passasse mas também seu leito, suas bordas e toda a paisagem ao seu redor – e passassem concomitantemente e na mesma velocidade; nesse caso, coisa alguma passa já que passar é sempre diferencial.19 Agenciamentos são aquilo que fazem alguma coisa passar, ter um fim. A incapacidade da despedida é o que produz a esterilidade de um ontos sem arché – onde nada tem ocaso. E no cenário de uma ontologia da arché é que um universo sem começos – ou um convívio do sensível sem começos – se contrasta com um universo repleto de agência, onde todo começo tem lugar sob a égide de outros começos. Em um cenário repleto de agência, todo começo ocorre no âmbito de algum prosseguimento. Como um governo que se instaura após uma descolonização, um governo que já não age sobre um ambiente acrático. Assim também é a causalidade pela liberdade de Kant, que introduz a autodeterminação em um ambiente heterodeterminado – uma determinação brota dentro do escopo de outra. Assim, o agenciamento em um universo repleto de agência é um começo dentro de um prosseguimento. Onde não há agência, por outro lado, só há prosseguimento e, se não há agência em outra parte, nem há o que seguir.
Em contraste com a transcendência da agência, o polo da transcendência do agente (posição 5) entende que a agência de um outro agente não cabe em nenhuma ontologia. É como se a ontologia ela mesma fosse uma espécie de prosseguimento, ou pelo menos uma ausência de agência – como na imagem de Heidegger de uma metafísica sem começos nem despedidas. O outro agente só pode ter lugar fora da ontologia. Nenhuma ontologia pode fazer justiça à alteridade de uma outra agência. Aqui, há agentes mas não há ontologia – como ma posição 1 a ontologia é completa ou parcialmente desprovida de agência. A agência do outro, nessa posição, se contrasta com toda e qualquer ontologia, não cabe nela. O agente está fora do escopo do que pode ser provido por uma ontologia já que ele é sempre uma outra agência, um outro começo. A agência aqui é pensada como alheia ao modo como estão constituídas as coisas – e isso não porque há agência em outra parte, mas precisamente porque há um outro agente absoluto que escapa de qualquer ontologia. Assim como na antropologia em que os agentes transcendem, aqui o encontro com outro agente está fora de qualquer espaço comum que possa ser conhecido – o encontro com um agente não pertence à ordem dos existentes. Aquilo que transcende, como fonte da agência, é algo de outro em relação a tudo o mais que existe, e no entanto é, precisamente, outro agente. A agência é pensada assim menos como um elemento de uma ontologia e mais como um encontro, como um impensado da ontologia que uma outra agência introduz. A agência é sentida no encontro, e assim ela pode ser pensada por uma ética em que a lida com um outro agente é pensada como um outro começo, como uma abertura para uma interlocução ainda impossível no âmbito de qualquer ontologia.20 Toda interação entre agentes escapa qualquer teoria, qualquer imagem do mundo já que, segundo essa posição, um outro agente é sempre um absoluto outro inaugurador.
A postura 2, da imanência da agência, contrasta com os dois polos formados pelas posições 1 e 5. Aqui a agência está no convívio dos sensíveis, é imanente a eles, mas não em agentes. O espaço de tudo o que há de concreto ele mesmo possui forças de agenciamento que presidem processos de individuação.21 Como numa antropologia da agência imanente, os agenciamentos precedem e comandam os indivíduos – eles são começos onde indivíduos apenas prosseguem. Uma ontologia da agência assim procura encontrar a estrutura e a forma da agência imanente, como ela articula forças capazes de produzir começos dentro do convívio dos sensíveis. A individuação é produto destes agenciamentos e, assim, as existências concretas estão imbricadas por sua pertinência a este convívio que as agencia; os indivíduos, assim como na posição 1 especialmente onde há uma agência alhures transcendente, ficam a mercê de uma agência que lhes é externa – a agência lhes transcende. Não há, aqui, genuínos agentes, há apenas forças de agenciamento que ocorrem no espaço onde os indivíduos convivem. Não se trata, portanto, de atribuir potências, disposições, capacidades ou poderes causais – ingredientes de agência – a nenhum indivíduo em particular. Potências pertencem a uma coordenação, a um emaranhado onde os indivíduos participam – é no espaço de onde surge a interação entre eles que há agência.22 Se pudermos comparar a agência com as disposições – e nesta postura as disposições são entendidas como agências – entendemos que não há propriedades disposicionais propriamente ditas. Se um açúcar se dissolve em água, isso se dá por um agregado que envolve um conjunto de elementos incluindo, por exemplo, a pressão e a temperatura do ambiente, e não uma propriedade do açúcar – e nem sequer por uma lei natural transcendente.23 Isso porque os indivíduos não possuem disposições, não possuem agência, ocorre ao açúcar dissolver-se na água – não há nada que diga respeito a sua essência aqui, ele não carrega capacidades em si. A agência está fora de qualquer indivíduo que é um produto dos agenciamentos imanentes que lhe dá início.
Em contraste com a imanência da agência, a imanência dos agentes independentes – a posição 4 – entende que os agentes trazem em si toda agência e, por ser mais próxima da posição 5 que da posição 1, entende que cada agente atua com independência em relação à agência dos demais. Aqui agentes são particulares com substratos que transcendem a toda sua expressão no convívio dos sensíveis – eles guardam uma capacidade própria de agenciar, independente dos demais. Os agenciamentos são portanto propriedades, e nem sempre propriedades manifestas. Há aqui um elemento retirado de cada um dos agentes, um elemento de uma vida secreta que elude ao que aparece de cada agenciamento no convívio dos sensíveis.24 Os indivíduos aqui presidem todo agenciamento e a agência em diáspora se espalha em ingredientes que estão em indivíduos. Se na posição 2 a agência incide sobre os indivíduos, aqui ela coincide com eles, surge apenas deles, com eles. Os agentes, humanos e não-humanos, se engajam em interações que fazem com que o modo como as coisas existem seja uma consequência das suas ações em paralelo – é no espaço em que os agentes convivem que eles se expressam e é apenas nele que os indivíduos se enredam. Há um lastro de agentes em tudo o que ocorre nesse espaço de convívio, não há, assim elementos comuns nesse convívio que não tenham origem na interação de agentes independentes entre si. Esta independência, contudo, faz com que cada agente seja movido por suas características próprias, que são em parte recônditas, retiradas.25 Esta postura atribui ao não-humano agência distribuída em agentes, e assim atribui aos indivíduos de uma imanência provida de agência a capacidade de começar alguma coisa que, por sua vez, é afetada apenas pela ação de outros agentes atuando no mesmo espaço e de forma independente.
A posição 3, que aqui aparece no exato meio entre os polos da transcendência da agência e da transcendência dos agentes (1 e 5), é a posição onde se encontram as monadologias: elas assumem a imanência dos agentes interdependentes. Nessa posição, elas sofrem a pressão dos dois lados – tanto de ontologias sem agência ou sem agência imanente quanto de agentes que prescindem e precedem qualquer ontologia. Mais diretamente, elas sofrem a pressão da posição que assume que há uma agência que preside e precede qualquer agente (2) e daquela que assume que os agentes são independentes. É neste espaço do meio que se movem as monadologias e a diferença entre elas, como veremos, pode em parte ser atribuída a maneira como elas negociam com estas pressões. A posição 3 ao mesmo tempo postula agentes e os entende como interconectados uma vez que não há nada que caracteriza os agentes enquanto tal senão sua posição no convívio dos sensíveis. Não há indivíduos concretos que se são o que são independentemente do emaranhado criado entre eles. As monadologias se articulam em um espaço em que há agência de agentes e estes estão emaranhados de tal forma que não podem ser separados dos vínculos que formam, do mundo em que estão, dos nexos entre atualidades que construíram. Este livro explora este espaço, formado pelo contraste tanto com as outras posições acerca da agência quanto pelas diferenças internas que são possíveis como variações da ideia geral de monadologia.
Trama de multidões
Como uma exploração deste espaço, o livro investiga os compromissos metafísicos, éticos e políticos associados à ideia de monadologia. Nas monadologias, a agência está em diáspora. As características desta dispersão são as dimensões do espaço onde estão as monadologias residem; elas levam em consideração as interconexões entre os agentes que se movem em meio a outros e ao mesmo tempo se negam a entender que há agência pairando independente de qualquer agente. Assim, é uma pluralidade de agentes de todo tipo – todos diferentes entre si – que se responsabilizam por tudo o que há de atual. É assim que as monadologias tomam de empréstimo dos estudos do que é social a tese de que aquilo que existe de concreto – humano ou não-humano – não pode ser entendido senão por meio de sua co-existência. Quando consideramos todos os agentes humanos e não-humanos que promovem a agência em diáspora no universo, fica claro que se trata conceber o que há como repleto de um número enorme de agentes. As monadologias estão sempre próximas dos infinitesimais e do infinito. Em todo caso, elas trabalham com multidões. Mais do que um livro sobre Leibniz – ou sobre Tarde, Whitehead ou Latour – este livro pretende fazer o contraste entre as monadologias destes autores com a finalidade de trazer a tona e por em questão as ideias que derivam de uma imagem do universo que o entende como uma trama de multidões.
Introdução: Um universo inter-animado
Monadologias
Ao longo do século XX era comum se entender que a metafísica tinha pouco a aprender com as ciências sociais. Não apenas pela baixa reputação da primeira e pelo menor valor dado à segunda em comparação com as disciplinas dedicadas à natureza, mas também pelas convicções prevalecentes de que há em última instância leis dando conta de tudo. Se o mundo é fundamentalmente regido por leis da natureza, os fenômenos sociais, ou estão confinados ao que é humano ou são não mais que aparências. Neste caso, se houver espaço para alguma empreitada metafísica, ela deve tomar as leis, e não a interação social, como ponto de partida.
Sempre houve, no entanto, vozes discordantes. Dentre estas vozes, algumas insistiam em um escopo genuíno de interações sociais. Algumas delas insistiam em variações da ideia de que a melhor maneira de entender tudo o que há é postular uma sociedade de tudo: existir é co-existir. A co-existência do que existe em um âmbito comum, para estas vozes, é uma pista importante na busca de uma imagem do mundo. A ideia era tratar a arena onde tudo tem lugar como uma sociedade – heterogênea, mutante, conflituosa e também cooperativa. Não como uma coleção de itens semelhantes, mas como um espaço de convívio entre diferentes. Essa ideia – tratar o mundo como um espaço social de interação – apareceu já na força motriz da monadologia tal como foi concebida por Leibniz. Ela introduziu a imagem do mundo exterior como repleto de fenômenos sociais que envolvem não apenas agentes humanos, mas também todo o resto. Cada uma das unidades de existência, distinta de todas as outras e a seu modo animada, são mônadas, que Leibniz concebeu como intrinsecamente vinculadas a um mundo. Para cada mônada, o mundo, onde há sempre outras mônadas, é onde ela se expressa, porém jamais soberanamente já que ela nunca está sozinha (no mundo). A monadologia, portanto, não é apenas a tentativa de espelhar a metafísica nos vínculos sociais, mas também uma concepção destes últimos segundo a qual nenhum indivíduo existe sem elos com uma sociedade. A ideia monadológica é a de que o mundo é formado por unidades distintas que mantém elos sociais; o mundo externo pode, portanto, ser modelado em termos de uma sociedade onde os agentes são interdependentes. É esta ideia que este livro explora.
Gabriel Tarde deixou explícito o elo entre monadologia e os fenômenos das associações – o não-humano, ele apontou, pode estar tão envolvido por elos sociais quanto nós. Sua intenção era aproximar uma sociologia universal da monadologia; de um ponto de vista monadológico, a metafísica seria como que uma extensão da sociologia. Ele falhou em persuadir os cientistas sociais de seu tempo de que seu domínio se estendia para além do que é artefato humano, porém ele abriu espaço para explicações sociais em metafísica. Este espaço foi explorado por muitos filósofos diferentes entre si.1 Alfred Whitehead elaborou uma filosofia do organismo em que nenhuma explicação pode estar completa se não recorre a unidades de agência concebidas como os ingredientes últimos do universo e que são interdependentes entre si. Mais recentemente, Bruno Latour fez um uso metafísico da noção de associação para entender como não apenas animais e plantas, mas também utensílios, máquinas, instituições e objetos em geral forjam alianças e compõem redes. Entendemos, neste livro, estas metafísicas como monadologias e, assim, herdeiras de Leibniz – ainda que em muitos sentidos relevantemente distintas da monadologia proposta por Leibniz.
Este é um livro sobre monadologia. Como um dos seus intuitos centrais é o de multiplicá-la, usaremos muitas vezes o plural. A ideia de uma monadologia, como a entendemos, é profícua porque é múltipla – e marca uma posição precisamente em decorrência de sua fertilidade. O outro intuito central do livro é o de explorá-la nesta fertilidade, não para recomendá-la terminal ou terminantemente, mas porque, quase como se fóssemos botânicos, nos interessamos ao mesmo tempo por seus benefícios, suas vulnerabilidades e suas variedades. E procuramos posicioná-la nos contextos dos debates atuais sobre a agência não-humana e sobre o mundo para além da capacidade humana de acessá-lo.2 Para tanto, consideramos a monadologia como muitas, e ainda assim como tendo um núcleo comum com qualidades próprias e dificuldades típicas que marcam um ponto de vista particular que aparece com diferentes matizes. Nossa tese é a de que Leibniz, ao elaborar uma dentre muitas monadologias, inaugurou certo tipo de metafísica, que envolve uma ontologia de agentes e uma concepção da interdependência entre eles. Procedendo assim, ele começou a explorar o espaço que as monadologias compõem. É este espaço, que tem dimensões próprias e pode abrigar muitas maneiras de conceber a agência e a inter-animação do universo, que nos interessa investigar.
A monadologia é uma das maneiras de conceber o que não é humano como algo distinto do que é meramente a jurisdição das leis da natureza. Ela procura entender estas leis não apenas como formando uma constituição, mas em termos dos seus poderes constituintes. Isso porque, dentre as muitas maneiras de explicar o que há fora de nós, a monadologia é uma escolha por um tipo de explicação que aponta para quem fez. Ou seja, aponta para unidades de ação – que respondem pelo que há de concreto. Estas unidades – mônadas – são indefinidamente múltiplas e inexoravelmente distintas; são elas que provêem razão suficiente para que as coisas concretas sejam como são. Ao invés de conceber o mundo como aquilo que obedece a leis, a monadologia o concebe como um aglomerado de instâncias capazes de agir e que expressam em meio a todas as outras. Tais instâncias têm, assim, a capacidade de constituir leis; ou seja, de instituí-las, mantê-las ou revogá-las. As leis não estão inteiramente fora do seu alcance, ainda que dificilmente possam ser ignoradas por um grupo pequeno de agentes. Procedendo assim, a monadologia faz com que as perguntas por que ou como sejam compreendidas como próximas das perguntas quem, e que menções a tudo ou ao mundo exterior se entendam de modo similar àquelas a todos ou aos outros. Nas monadologias, portanto, a agência que faz com que o mundo seja como é está concebida como estando em toda parte. E a agência em diáspora não está pairando no ar, ela tem endereço e nome certos – ainda que seu nome certo não possa ser mais do que uma descrição definida que envolve o resto do mundo que ela participa.
É que uma monadologia não é somente uma proliferação de unidades de ação. Ela entende que estas unidades são interdependentes. Uma monadologia não é nem um simples atomismo ou pluralismo e nem exatamente um monismo em que todas as partes respondem a um todo. As unidades de ação estão associadas ao mundo onde elas agem – e, portanto, a outras unidades que compoem este mundo. Mônadas são singulares precisamente porque tem uma relação única com todo o resto do que existe. Nas monadologias, vale notar, não há um espaço interior destas unidades – a não ser no sentido de que o interior das mônadas, que são como pontos de perspectiva, recapitulam seu exterior. Grãos de areia que refletem de alguma maneira o universo onde eles se encontram. As monadologias surgiram em um flerte com o infinitamente pequeno – está, portanto, aberto a elas conceber o básico como sendo o infinitesimal, e já que o infinitesimal é elusivamente menor que qualquer outra coisa, e também como o indefinidamente pequeno. Em todo caso, há unidades de agência, distintas umas das outras, convivendo umas com as outras.
Este livro defende e explora a tese de que as monadologias, de fato, formam um tipo específico de metafísica e, por isso mesmo, carregam certas potências e certas deficiências em suas contribuições aos debates atuais. Elas constituem um modo de entender os componentes últimos do tecido do que há – o dramatis personae do universo -, mas também de articular como cada um destes personagens se vincula aos demais, tanto enquanto elementos singulares que se relacionam uns com os outros singulares quanto como partes de uma trama ampla. As monadologias, assim, são cosmopolíticas.3 Políticas porque são mais sobre como tudo está sendo constituído do que como tudo foi determinado. Ela trata o mundo como todo o mundo. Cósmicas porque os protagonistas nessa arena política estão por toda parte. Monadologias apresentam um campo onde tanto o que é humano quanto o que não é é mutuamente constituído, um âmbito onde subsistências e vulnerabilidades, perspectivas e resistências co-existem e se tecem mutuamente. É neste espaço de uma realpolitik de mônadas que se situa o tema deste livro: como elas convivem, e o que resulta deste convívio. Como se trata de agentes que por toda parte convivem, se trata de expandir o escopo do ético; as exigências e os impasses éticos do convívio se estendem até onde se estende a agência. E é precisamente porque uma ontologia que postula agentes não pode negligenciar o convívio entre eles que monadologias marcam também um tipo de ética, uma ética que se move na imanência de tudo o que é mundano.
Com o foco na ideia de monadologia queremos indiretamente investigar como e em que medida a herança leibniziana foi recebida nos últimos anos. A influência da metafísica leibniziana não foi percebida nem como marcante na filosofia no último século. Entretanto, sua presença pode estar se tornando considerável na imagem que o século XXI faz do que teve lugar no século XX. Como vimos, este livro tem como personagens protagonistas além de Leibniz, Tarde, Whitehead e Latour. Tarde e Latour falam explicitamente de mônadas e de monadologias e se referem à ontologia de agentes de Leibniz como um ponto de partida para suas metafisicas. Whitehead, por outro lado, tem uma relação menos clara com Leibniz, em parte por conceber sua filosofia do organismo como herdeira sobretudo de Locke (e de Descartes). É uma tese central deste livro que Whitehead propôs uma filosofia do processo que é um tipo de monadologia e, assim, a presença de Leibniz é central nos seus postulados básicos. Essas três monadologias não-leibnizianas contrastam entre si em sentidos específicos e são todas distintas da monadologia de Leibniz. Uma das empreitadas deste livro é a de encontrar exatamente onde se encontra o pomo da discórdia. Nós vamos sugerir que este pomo, no entanto, só pode ser entendido à luz daquilo que é compartilhado pelos dois lados; a discórdia, portanto, é intestina à ideia mesma de monadologia.
Agência
A ideia de uma monadologia foi introduzida por Leibniz em um contexto em que se tratava de explicar como os elementos anímicos e extensos do mundo se articulam - e como cada animação imprime efeitos sobre todo o resto. Leibniz postulou a monadologia como um concerto de agentes que se distribuem por todo o mundo – mônadas são introduzidas em um dos seus últimos textos como “capazes de ação”.4 A monadologia é assim uma ontologia da agência: ela trata de onde a agência está e como ela se distribui. Leibniz chegou a ideia de monadologia, tal como expressa em seus últimos escritos que tomaremos como ponto de partida neste livro, a partir da noção de substância como unidade anímica. A agência, e sua distribuição, é uma preocupação fundante da monadologia – e sua plausibilidade depende de quanto e como a agência é distribuída no universo.
Sendo sobre monadologias, este é portanto um livro sobre agência. Em termos muito gerais, agência está vinculada à ação, à animação, à atividade. Ela vai ser entendida, na maioria dos casos neste livro, como a capacidade de dar início a algo; ou seja, como a capacidade de começar alguma coisa que não é um seguimento ou um prosseguimento de alguma outra. Pensamos nela como aparentada daquilo que Kant chamava de causalidade pela liberdade,5 que ele entendia como o começo de uma cadeia causal autodeterminada independente da cadeia dos eventos naturais. Assim, ela está próxima à espontaneidade – atribuir agência requer tanto detectar ausência de uma força externa coerciva de qualquer ordem quanto encontrar um fio condutor de uma ação que a distinga da aleatoriedade. A agência contrasta, assim, tanto com a heterodeterminação – aquilo que segue alguma outra coisa – quanto com a indeterminação. Ela requer que algo surja de si, que seja um ponto de partida, em contraste com uma continuação ou um com um acidente. Aristóteles distingue a geração de qualquer coisa a partir de alguma transformação (gignomenon).6 Esta transformação pode ocorrer por causas naturais (phusis) ou seja, por causa da natureza de alguma coisa, do artifício de alguma outra fonte (technè) ou do que ele chama de automaton. A phusis invoca alguma necessidade inerente à coisa que provoca a transformação. A techné aponta para o impacto de um elemento externo. Automaton é as vezes traduzido como acaso e as vezes como espontaneidade – e de acordo com Aristóteles se trata de algo que não está na alçada de nenhuma outra coisa. Não é determinado nem pela natureza e nem por qualquer artífice. Assim é a agência: ela é um começo porque não está subsumida por nada, nem por uma necessidade e nem por uma imposição alheia – e nem é produto de alguma indeterminação.
Interessa-nos como a agência se distribui – e nos perguntamos sobre sua natureza considerando sua extensão. Ela pode estar concentrada em algumas partes especiais do universo – Deus, os humanos, alguns mais poderosos dentre os humanos, os animais, as micropartículas – ou pode estar por toda parte ou em parte alguma – e neste caso não haveria nada que seria capaz de começar alguma coisa. A dificuldade de determinar como a agência se distribui deriva em grande parte das dificuldades relativas a como as coisas são governadas. O governo é o começo de um ato e, ao mesmo tempo, um dispositivo que instaura um seguimento – como se segue uma regra ou um mandamento. É assim que o tema da agência esbarra no tema da arché já que a distinção entre começadores e prosseguidores é, sem dúvida, tributária de uma ontologia do comando que distribui aquilo que há em instituidores e instituídos, e assim entre agentes e elementos inanimados ou passivos – entre sujeitos de um comando e objetos, assujeitados a um comando. Agamben mostra como a partir do termo arché, comando como em mon-arquia e começo como arque-ologia, há um viés em direção a entender seguimento de um comando e prosseguimento de um começo como intimamente aparentados.7 Consideradas neste viés, ontologias que postulam agentes – e monadologias em particular – são ontologias de arché, de onde comando e começo têm, ambos, lugar. Se os agentes são distribuídos, há inúmeras instâncias de arché que são, como veremos, como partículas de governo precisamente porque são pontos onde algo se origina. É no contexto de pensar a arché que aparece o tema da distribuição da agência – e algumas das consequências problemáticas das monadologias em geral resultam de que elas mantêm ainda um vínculo entre ontos e arché.
Interessa-nos também como a agência é exercida – por quem, mas também de que maneira: se em isolamento ou em associação, se por todo o tempo ou apenas de uma vez por todas. Tudo isso forma uma tentativa de explorar o espaço das ontologias da agência. E neste contexto é que entendemos as monadologias a partir de certa maneira de teorizar a agência. Elas a teorizam como distribuídas principalmente por uma diáspora de agentes. Em um sentido importante, elas contrastam com a visão de que a agência se limita ao que é humano e que agentes são apenas agentes humanos. Elas se contrastam também com a ideia de que a agência paira independente de agentes. A ideia de que a agência se dá entre agentes – já constituídos e estabelecidos – faz com que tudo seja uma ação a ser compreendida em termos de quem a provocou. Agentes são unidades de ação constituídos – como indivíduos em uma sociedade, como sujeitos. Monadologias são um tipo de ontologia de agentes – ou, talvez, de articulação social de agentes.
Antropologias da agência
Para considerar com mais vagar o espaço das ontologias da agência, podemos nos concentrar por um instante no espaço das antropologias da agência; ou seja, como podemos conceber e analisar a agência humana. Acerca da agência humana, é interessante distinguir cinco posturas que se distinguem pela relação entre agente e a agência e pela maneira como agentes são concebidos. Não poderemos faremos aqui mais do que uma caracterização esboçada destas posturas que tem muitas ramificações e corolários interessantes a serem explorados.
1. A primeira postura é aquela segundo a qual não há agência entre os humanos – nem em agentes individuados nem em sua associação já que os humanos não estão jamais às voltas com o começo de coisa alguma e não fazem mais do que seguir comandos. Pode-se conceber que os humanos seguem alguma necessidade que provêm, por exemplo, de leis da natureza – ou de algum comando divino – e assim não são senão determinados por agências alheias, ou por nenhuma agência real. Esta posição inanimista acerca do humano pode ser encontrada entre aqueles que recomendam um determinismo neurológico associado ou não a imposições genéticas. Esses são os herdeiros do homem-máquina de La Mettrie8 que postulam que não há nenhuma instância de agência entre humanos, todos os seus gestos podem ser entendidos apenas em termos de uma mecânica, ou de algum conjunto de leis de alguma ordem. A mente humana, incapaz de agência, seria uma coleção de origem bioquímica de dispositivos físicos e toda aparente capacidade de começar atos seria nada mais do que um seguimento de determinações, por exemplo, neuronais, ou seria uma ilusão. Os estados mentais seriam ou eles mesmos estados físicos, ou seriam instanciados em casa caso por estados físicos ou seriam inexistentes, não mais do que produtos de uma ignorância momentânea acerca do que se passa entre humanos.9 Neste caso, não há nem agentes humanos e nem agência entre as coisas humanas – as sociedades humanas seriam não mais que complexas instâncias que executam leis que as transcendem. A agência estaria em algo que transcende a humanidade – a natureza, por exemplo, que fornece todo comando e assim dita todo o funcionamento dos assuntos humanos. Não haveria, entre humanos, nenhuma agência já que ela de alguma maneira transcende o que humanos fazem – seguem determinações estabelecidas por outra instância. Podemos chamar esta posição, quanto à antropologia da agência, de transcendência da agência – no caso específico do apelo as leis da natureza, a agência transcendente aos humanos se encontra nessas leis.
2. A segunda é aquela que rejeita que haja agentes humanos genuínos, mas postula agência nas sociedades humanas. Os indivíduos humanos não são genuínos agentes, mas são produtos do agenciamento social ou coletivo. As forças sociais são que agenciam indivíduos por meio de afetos, poderes, disciplinamentos. A agência, que se remete a classes sociais ou a gêneros ou a identidades étnicas ou raciais e outros dispositivos que dão forma às sociedades humanas, produzem também os indivíduos. Há, nas sociedades agência sem agentes, e vale algo como a fórmula de Foucault: “o indivíduo é o produto do poder”.10 Não é portanto em cada um dos indivíduos que se encontra a agência, ela está nas forças agenciadoras que ou fazem uso dos recursos disponíveis no emaranhado social para produzir indivíduos. Estes indivíduos são ou consequência de determinações gerais que apenas dão uma impressão ilusória de que há neles agência ou são produtos de múltiplos agenciamentos que os singulariza já que invocam elementos singulares sub-humanos.11 Aqui não há agentes individuais e é apenas em uma associação de humanos que surge a agência – são associações que tem classes, gêneros ou diferenças raciais. A agência não está em nenhum dos indivíduos em isolamento – apenas os dispositivos sociais humanos comandam – e genuinamente começam cursos de ação. A agência social produz indivíduos que agem menos por motu próprio e mais pela distribuição de poder associado a eles pelos agenciamentos vigentes. São esses que constituem o mobiliário último das sociedades humanas e que apenas se realizam nos indivíduos, eles mesmos passivos ou inanimados. Agentes, neste caso, são considerados em termos dos processos subjacentes a eles e os indivíduos não são senão resultado destes processos que tem a capacidade de individuar. Nesta segunda postura, assim como na primeira, é difícil encontrar qualquer instância ética se associamos a esta alguma responsabilidade ou habilidade de resposta. Se não há agentes, é difícil atribuir a quem quer que seja alguma responsabilidade. Essas duas antropologias da agência são avessas à ideia de indivíduos são pontos em um espaço ético já que não há genuínos agentes. Nesta segunda postura, há talvez espaço para gestos políticos que afetam as direções dos agenciamentos e que são começados por outros agenciamentos igualmente indiferentes à qualquer agente. Podemos chamar esta segunda postura de imanência da agência sem agentes.
3. A terceira posição é aquela que entende a agência social humana como sendo sempre um produto de agentes já constituídos. Ou seja, os agenciamentos não podem produzir indivíduos se não estiverem balizados, patrocinados ou mantidos por outros indivíduos. Assim, o indivíduo é um produto do poder de outros indivíduos. Não há na sociedade humana nada que, sendo resultado de alguma agência humana, não tenha sido introduzido por algum grupo de agentes e conservado pelo interesse de algum grupo de agentes. Nesta postura agenciamentos por eles mesmos não explicam nada, a menos que haja uma remissão a alguém que está por trás deles – ações coletivas não são produto de um espontaneidade emergente e nem de uma espontaneidade anterior a qualquer indivíduo, mas produtos da ação dos agentes. A eficiência de agenciamentos de classe, gênero ou raça depende dos grupos de agentes que implementam, por exemplo, a supremacia de certa classe, gênero ou raça – não há supremacia da burguesia, dos homens ou dos brancos sem a ação de patrões, homens e brancos no sentido de instituí-la e protegê-la. Analogamente, não há distúrbio na ordem destes agenciamentos senão pela ação de grupos de agentes.12 Agentes humanos, vistos assim, são constituídos na interdependência social; indivíduos são produtos dos poderes instituídos e da resistência a eles – mas esses poderes têm um lastro em outros agentes individuais que os implementam. Indivíduos humanos não são indiferentes aos demais e nem podem surgir ou serem o que são (individuados ou identificados) senão em relação com o meio social em que vivem – são criaturas intrinsecamente inseridas em sua sociedade. Os indivíduos que fazem valer os agenciamentos e aqueles que são constituídos em meio a estes estão portanto em um vínculo social importante; é aqui que há uma interdependência social que deve ser entendida como interdependência entre agentes humanos. A afirmação de que há agentes humanos individuais, nesta postura, não exorciza ou elimina os elos sociais e nem reduz sua relevância mas apenas invoca explicações destes elos em termos de quem os sustenta. Essa postura é a de uma antropologia de agentes interdependentes já que concebe os indivíduos humanos como genuinamente capazes de começar e comandar ainda que em meio aos vínculos sociais estabelecidos com todos os outros. Podemos chamar esta postura de imanência dos agentes interdependentes.
4. A quarta postura difere da terceira quanto à interdependência dos agentes. Nela, cada agente é constituído em completa indiferença com respeito aos demais – indivíduos são como átomos e a sociedade que eles formam não é nada mais do que sua sombra. Trata-se de afirmar que não há genuinamente sociedades, apenas indivíduos que são dotados de toda agência independentemente dos demais agentes. Cada um deles é autônomo e se constitui em processos alheios a cada um dos outros agentes e às associações que eles formam e cada um se individua com independência de todos os outros. Trata-se, aqui também, de uma antropologia de agentes, mas estes agentes não são interdependentes e sim autônomos e subsistentes por si mesmos. Os elos sociais são aqui não mais que ocasionais e as associações entre indivíduos não são constitutivos do que eles são mas simplesmente contingentes a sua localização em uma sociedade. Aqui agenciamentos não são capazes de forjar indivíduos – ainda que sejam produtos de outros agentes – como na terceira postura. Os agentes são fundamentalmente intocados pelos agenciamentos que podem apenas dar origem a instituições sociais das quais os indivíduos são independentes. Os indivíduos, constituídos independentemente de qualquer sociedade, podem se engajar em um contrato social que dá origem a instituições, práticas e convenções sociais.13 Os agentes são como começos absolutos – unidades de espontaneidade cada uma independente de todas as outras. Cada indivíduo atua em sociedade centralmente em função de si mesmo e o que lhe diz respeito é independente de qualquer interesse coletivo. Essa antropologia da agência se aproxima de uma visão liberal das sociedades em que elas são não mais do que construções dos indivíduos, independentes entre si e autônomos enquanto agentes. Nessa postura, indivíduos fazem escolhas guiadas pelos seus próprios interesses e são essas escolhas que moldam a sociedade. Como em uma visão liberal, não há elo social que não seja mantido por indivíduos e não há elo social que não seja opcional para cada indivíduo. Essa postura pode ser chamada de imanência dos agentes independentes.
5. Por fim, a quinta posição desloca os agentes, princípio de toda agência, para fora de qualquer antropologia – nem sequer pode-se saber se eles, por serem agentes, tenham qualquer tipo de motivação ou mesmo que agem movidos por qualquer interesse. Se a primeira postura recusava agência às sociedades humanas em uma antropologia sem agência, esta última recomenda uma agência, de agentes, sem antropologia. Aqui é o outro, o outro agente, que transcende a qualquer coletivo e a qualquer vínculo social. Os agentes humanos não podem ser entendidos por nenhuma antropologia sem que esta lhes faça a violência de retirar deles sua capacidade de agência – qualquer antropologia é já uma violência à transcendência da agência do outro. Não há uma ontologia do humano anterior a como cada agente se encontra com outro – não há antropologia que preceda os encontros. Aqui não é a agência que transcende o coletivo dos indivíduos, mas o outro é que transcende, em sua capacidade também absoluta de começar, qualquer entendimento da sociedade.14 Não é sequer que os agentes são unidades de espontaneidade, mas que eles não podem ser considerados, e não podem ser entendidos, fora de sua agência. Nesta postura, nenhuma antropologia pode preceder a agência dos agentes. Os indivíduos são considerados como pessoas encontradas e toda interação com elas está em um diálogo em que a polifonia de discursos é, em princípio, incorrigível. Além dos agentes individuais serem começos absolutos, eles são outros absolutos – outros para qualquer antropologia que pretenda construir uma narrativa sobre eles que seja anterior ao seu discurso. Aqui são os agentes que transcendem a rede de vínculos sociais – a agência não está na sociedade humana não porque não está nos agentes humanos, mas porque são estes agentes mesmos que transcendem a qualquer rede de vínculos sociais. Esta postura pode ser chamada de transcendência dos agentes.
Estas cinco posturas se articulam em torno de dois polos que são a primeira e a última delas. Na primeira qualquer agência transcende o humano e toda instituição social humana, na última é o agente que transcende toda instituição social humana. Em ambos os pólos a sociedade humana não é lugar de agência – ou a agência está alhures, em algum dispositivo natural por exemplo, ou os agentes são humanos e entretanto alheios ao escopo de qualquer antropologia. Em um polo, o que transcende às sociedades humanas é a agência, em outro são os agentes. Entre os dois polos, três posturas em que a agência não transcende mas reside de alguma forma no convívio social humano. Na imanência da agência sem agentes a agência transcende os agentes mas não os vínculos entre eles – é na sociedade humana e em seus dispositivos que estão os agenciamentos que dão início às coisas. Na imanência de agentes independentes, ao contrário, os agentes são indiferentes a qualquer agenciamento – eles transcendem à sociedade humana se bem que participam dela e são inteligíveis através dela. A posição intermediária (3) entende tanto que há agentes por trás de todo agenciamento quanto que há uma interdependência entre os agentes que fazem com que os agenciamentos sociais se articulem já desde a individuação. Nesta posição, há indivíduos ainda que eles sejam produtos de agenciamentos coletivos que, por sua vez, tem lastro em outros indivíduos que por eles são responsáveis. A postura 3 é, em certo sentido, um ponto médio entre os dois polos – o polo da agência transcendente e o polo dos agentes transcendentes já que nem a agência transcende os indivíduos e nem os indivíduos são alheios às construções sociais.
Ontologias da agência
Quando passamos da antropologia da agência para a ontologia da agência, encontramos grosso modo posturas equivalentes – as vantagens e dificuldades de cada uma delas, contudo, são um tanto distintas. Nesta passagem, entendemos o âmbito da agência como ampliando-se para além do humano, para além do espaço de convívio humano. Fazendo esta passagem é que entendemos como uma teoria da agência promove uma ampliação do que se pode saber acerca do humano para um escopo mais amplo: das sociedades humanas à metafísica. Os primeiro polo (1) postularia, neste caso, que não há agência em parte alguma do mundo sensível, ou entre as coisas concretas. A agência transcenderia o mundo sensível – nada de concreto teria agência. Resta ainda saber se ela estaria presente em algo que transcende o que está no convívio de tudo o que existe – que chamaremos de convívio do sensível – ou se ela está inteiramente ausente sendo assim transcendente porque inexistente. Ou ela seria transcendente – e estaria por exemplo em leis da natureza indiferentes a qualquer coisa concreta – ou ela não existiria. No último caso há talvez uma separação completa entre ontos e arché – todo o que existe é desprovido de agência, an-agente, incapaz de começar qualquer coisa. O elo entre ontos e arché é de fato central numa ontologia que é tributária da noção de comando – aquilo que é ou é um comando (um começo) ou segue (ou prossegue) o comando. Um universo sem agência é um universo de anomia – já que é o nomos que conecta aquilo que é a um comando. Uma espécie de an-arché, uma espécie de hipercaos de que fala Meillassoux, onde tudo é irremediavelmente contingente e, precisamente, mais do que isso, tudo é irremediavelmente incapaz de qualquer comando, de exercer qualquer governo.15 As duas versões de uma transcendência ontológica da agência – a de que não há agência imanente e de que não há agência tout court – podem parecer muito diferentes já que em uma todo o concreto obedece e na outra nenhum concreto comanda. As imagens podem parecer em um caso de subserviência do concreto e no outro de impotência do concreto. Elas, no entanto, se assemelham em um ponto importante: elas tomam o convívio sensível como desprovido de agência.16 Ou seja, o sensível não é apenas incapaz de comandar, mas também incapaz de começar – nem sequer há auto-governo entre as coisas sensíveis. Toda agência transcende o que é sensível; se a agência reside alhures, não há senão governados entre as coisas sensíveis, se a agência não existe, não há senão desgovernados entre as coisas sensíveis.17 Transposta para a ontologia da agência, a posição 1 é a postulação de um convívio do sensível que é, nele mesmo, desprovido de governo. Não há, no sensível, nenhum poder de governar nem sequer a si mesmo.
Pensar a possibilidade de um universo sem agência – ou de um convívio do sensível sem agência – demanda certa atenção. Se o começo está alhures, em um campo que transcende o sensível, cabe a este apenas persistir – ou prosseguir. Por outro lado, se não há começo em parte alguma, não há genuína persistência já que nada subsiste, permanece ou se segue – há apenas fluxo, temporariedade e casualidade. Heidegger escreve que a incapacidade de despedida é uma impotência de começo.18 Onde não há agência, também nada vai embora, há uma permanência do impermanente já que nada fica para proceder à despedida. É como se não apenas o rio passasse mas também seu leito, suas bordas e toda a paisagem ao seu redor – e passassem concomitantemente e na mesma velocidade; nesse caso, coisa alguma passa já que passar é sempre diferencial.19 Agenciamentos são aquilo que fazem alguma coisa passar, ter um fim. A incapacidade da despedida é o que produz a esterilidade de um ontos sem arché – onde nada tem ocaso. E no cenário de uma ontologia da arché é que um universo sem começos – ou um convívio do sensível sem começos – se contrasta com um universo repleto de agência, onde todo começo tem lugar sob a égide de outros começos. Em um cenário repleto de agência, todo começo ocorre no âmbito de algum prosseguimento. Como um governo que se instaura após uma descolonização, um governo que já não age sobre um ambiente acrático. Assim também é a causalidade pela liberdade de Kant, que introduz a autodeterminação em um ambiente heterodeterminado – uma determinação brota dentro do escopo de outra. Assim, o agenciamento em um universo repleto de agência é um começo dentro de um prosseguimento. Onde não há agência, por outro lado, só há prosseguimento e, se não há agência em outra parte, nem há o que seguir.
Em contraste com a transcendência da agência, o polo da transcendência do agente (posição 5) entende que a agência de um outro agente não cabe em nenhuma ontologia. É como se a ontologia ela mesma fosse uma espécie de prosseguimento, ou pelo menos uma ausência de agência – como na imagem de Heidegger de uma metafísica sem começos nem despedidas. O outro agente só pode ter lugar fora da ontologia. Nenhuma ontologia pode fazer justiça à alteridade de uma outra agência. Aqui, há agentes mas não há ontologia – como ma posição 1 a ontologia é completa ou parcialmente desprovida de agência. A agência do outro, nessa posição, se contrasta com toda e qualquer ontologia, não cabe nela. O agente está fora do escopo do que pode ser provido por uma ontologia já que ele é sempre uma outra agência, um outro começo. A agência aqui é pensada como alheia ao modo como estão constituídas as coisas – e isso não porque há agência em outra parte, mas precisamente porque há um outro agente absoluto que escapa de qualquer ontologia. Assim como na antropologia em que os agentes transcendem, aqui o encontro com outro agente está fora de qualquer espaço comum que possa ser conhecido – o encontro com um agente não pertence à ordem dos existentes. Aquilo que transcende, como fonte da agência, é algo de outro em relação a tudo o mais que existe, e no entanto é, precisamente, outro agente. A agência é pensada assim menos como um elemento de uma ontologia e mais como um encontro, como um impensado da ontologia que uma outra agência introduz. A agência é sentida no encontro, e assim ela pode ser pensada por uma ética em que a lida com um outro agente é pensada como um outro começo, como uma abertura para uma interlocução ainda impossível no âmbito de qualquer ontologia.20 Toda interação entre agentes escapa qualquer teoria, qualquer imagem do mundo já que, segundo essa posição, um outro agente é sempre um absoluto outro inaugurador.
A postura 2, da imanência da agência, contrasta com os dois polos formados pelas posições 1 e 5. Aqui a agência está no convívio dos sensíveis, é imanente a eles, mas não em agentes. O espaço de tudo o que há de concreto ele mesmo possui forças de agenciamento que presidem processos de individuação.21 Como numa antropologia da agência imanente, os agenciamentos precedem e comandam os indivíduos – eles são começos onde indivíduos apenas prosseguem. Uma ontologia da agência assim procura encontrar a estrutura e a forma da agência imanente, como ela articula forças capazes de produzir começos dentro do convívio dos sensíveis. A individuação é produto destes agenciamentos e, assim, as existências concretas estão imbricadas por sua pertinência a este convívio que as agencia; os indivíduos, assim como na posição 1 especialmente onde há uma agência alhures transcendente, ficam a mercê de uma agência que lhes é externa – a agência lhes transcende. Não há, aqui, genuínos agentes, há apenas forças de agenciamento que ocorrem no espaço onde os indivíduos convivem. Não se trata, portanto, de atribuir potências, disposições, capacidades ou poderes causais – ingredientes de agência – a nenhum indivíduo em particular. Potências pertencem a uma coordenação, a um emaranhado onde os indivíduos participam – é no espaço de onde surge a interação entre eles que há agência.22 Se pudermos comparar a agência com as disposições – e nesta postura as disposições são entendidas como agências – entendemos que não há propriedades disposicionais propriamente ditas. Se um açúcar se dissolve em água, isso se dá por um agregado que envolve um conjunto de elementos incluindo, por exemplo, a pressão e a temperatura do ambiente, e não uma propriedade do açúcar – e nem sequer por uma lei natural transcendente.23 Isso porque os indivíduos não possuem disposições, não possuem agência, ocorre ao açúcar dissolver-se na água – não há nada que diga respeito a sua essência aqui, ele não carrega capacidades em si. A agência está fora de qualquer indivíduo que é um produto dos agenciamentos imanentes que lhe dá início.
Em contraste com a imanência da agência, a imanência dos agentes independentes – a posição 4 – entende que os agentes trazem em si toda agência e, por ser mais próxima da posição 5 que da posição 1, entende que cada agente atua com independência em relação à agência dos demais. Aqui agentes são particulares com substratos que transcendem a toda sua expressão no convívio dos sensíveis – eles guardam uma capacidade própria de agenciar, independente dos demais. Os agenciamentos são portanto propriedades, e nem sempre propriedades manifestas. Há aqui um elemento retirado de cada um dos agentes, um elemento de uma vida secreta que elude ao que aparece de cada agenciamento no convívio dos sensíveis.24 Os indivíduos aqui presidem todo agenciamento e a agência em diáspora se espalha em ingredientes que estão em indivíduos. Se na posição 2 a agência incide sobre os indivíduos, aqui ela coincide com eles, surge apenas deles, com eles. Os agentes, humanos e não-humanos, se engajam em interações que fazem com que o modo como as coisas existem seja uma consequência das suas ações em paralelo – é no espaço em que os agentes convivem que eles se expressam e é apenas nele que os indivíduos se enredam. Há um lastro de agentes em tudo o que ocorre nesse espaço de convívio, não há, assim elementos comuns nesse convívio que não tenham origem na interação de agentes independentes entre si. Esta independência, contudo, faz com que cada agente seja movido por suas características próprias, que são em parte recônditas, retiradas.25 Esta postura atribui ao não-humano agência distribuída em agentes, e assim atribui aos indivíduos de uma imanência provida de agência a capacidade de começar alguma coisa que, por sua vez, é afetada apenas pela ação de outros agentes atuando no mesmo espaço e de forma independente.
A posição 3, que aqui aparece no exato meio entre os polos da transcendência da agência e da transcendência dos agentes (1 e 5), é a posição onde se encontram as monadologias: elas assumem a imanência dos agentes interdependentes. Nessa posição, elas sofrem a pressão dos dois lados – tanto de ontologias sem agência ou sem agência imanente quanto de agentes que prescindem e precedem qualquer ontologia. Mais diretamente, elas sofrem a pressão da posição que assume que há uma agência que preside e precede qualquer agente (2) e daquela que assume que os agentes são independentes. É neste espaço do meio que se movem as monadologias e a diferença entre elas, como veremos, pode em parte ser atribuída a maneira como elas negociam com estas pressões. A posição 3 ao mesmo tempo postula agentes e os entende como interconectados uma vez que não há nada que caracteriza os agentes enquanto tal senão sua posição no convívio dos sensíveis. Não há indivíduos concretos que se são o que são independentemente do emaranhado criado entre eles. As monadologias se articulam em um espaço em que há agência de agentes e estes estão emaranhados de tal forma que não podem ser separados dos vínculos que formam, do mundo em que estão, dos nexos entre atualidades que construíram. Este livro explora este espaço, formado pelo contraste tanto com as outras posições acerca da agência quanto pelas diferenças internas que são possíveis como variações da ideia geral de monadologia.
Trama de multidões
Como uma exploração deste espaço, o livro investiga os compromissos metafísicos, éticos e políticos associados à ideia de monadologia. Nas monadologias, a agência está em diáspora. As características desta dispersão são as dimensões do espaço onde estão as monadologias residem; elas levam em consideração as interconexões entre os agentes que se movem em meio a outros e ao mesmo tempo se negam a entender que há agência pairando independente de qualquer agente. Assim, é uma pluralidade de agentes de todo tipo – todos diferentes entre si – que se responsabilizam por tudo o que há de atual. É assim que as monadologias tomam de empréstimo dos estudos do que é social a tese de que aquilo que existe de concreto – humano ou não-humano – não pode ser entendido senão por meio de sua co-existência. Quando consideramos todos os agentes humanos e não-humanos que promovem a agência em diáspora no universo, fica claro que se trata conceber o que há como repleto de um número enorme de agentes. As monadologias estão sempre próximas dos infinitesimais e do infinito. Em todo caso, elas trabalham com multidões. Mais do que um livro sobre Leibniz – ou sobre Tarde, Whitehead ou Latour – este livro pretende fazer o contraste entre as monadologias destes autores com a finalidade de trazer a tona e por em questão as ideias que derivam de uma imagem do universo que o entende como uma trama de multidões.
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