Esta é a palestra performance que fiz em fins de agosto, sobre a prioridade da adição sobre a negação.
Está aqui.
O texto:
Não
As recusas, as contestações e as
profundidades tântricas da sinceridade
A negativo é uma intensidade pronta
Peter Handke
Engasguei, tive náusea, uma náusea
mansinha que me rasgava de feiúra costura
por costura; era repelente e réptil e
replicante e repentino e reprovava – e o
que mais?
Era um Não desses que brotam da
garganta junto com as neissérias, as
estreptococas, as estafilococas e esses
inúmeros outros animais ou espíritos
animais, ou engenhocas, ou microdeuses
pineais, ou pedaços de fúria abandonados
ao léu, como é o Não. Essa população
toda da garganta sugeriu a algumas das
nossas ancestrais que havia ali alma, ou
almas. No escurinho dos tubos, como
numa zarabatana cheia de bafo, tudo
perde a conta e degenera – tiraram-me
dali o gênero, o número e todas essas
histórias de meia-pataca que soam como
negócios sujos de família, a família que é
engenhoca da mesmice crescei-vos e
multiplicai-vos. O Não se aloja nesse
panteão zarabatana que parece uma sauna
e, como os micróbios segundo Artaud, é
um deus. A garganta as vezes o expele,
como um catarro. Com os micróbios,
quando ele fica solto no ar ele tem um
poder cósmico.
O Não, dizem, é irmão do Sim, como
Caim e Abel eram irmãos gentis. O Sim
não vive na zarabatana da garganta, ele é
nômade e às vezes aceita tudo o que lhe
trazem – mas parece que é irmão no
escarro e no escarcéu. Se são irmãos, são
ninhada, proliferação de Sins. Com uma
intensidade de corrosão no estômago.
Byung-Chul Han diz: o mal da época é o
“por que não” que deixa tudo
indeterminado, como um céu azul da
infância, eterna verdade vazia e perfeita.
Também a isso diga sim, tenha um sim
para tudo, exorciza a recusa e acumula e
adiciona e coleciona e ambiciona, o Não
ficou cafona.
Afirmativite, alguém poderia diagnosticar.
Uma síndrome de tolerância infinita e que
talvez abra o caminho para uma
intransigência qualquer passar com tapete
vermelho. Mesmo que seja a intransigência
ao que todo mundo quer sim. Como é
possível recusar? No regime da
afirmativite, recusar é o único excesso
intolerável; trata-se de uma interessante
tolerância à afirmação. Caia em todas as
tentações, menos as que trazem um Não
mocozado que pode escarrar no Shopping
Center.
Não, o caralho.
Há também uma velha ladainha: diante de
um indeterminado, aparece uma recusa. A
recusa determina. A negação patrocina a
determinação. Osho: se eu não tiver a
capacidade de dizer não, meu sim não
quer dizer nada. De algum céu azul vazio
e perfeito sai a trovoada. O não não é
uma palavra, é a queda de uma árvore. O
não é uma ferida – e somos feitos de
feridas e de curas sobre outras feridas.
São
os rasgos que dão forma ao rosto.
Mas ouçamos essa teoria geral da negação
determinada antes de voltar para a era da
afirmação: o futuro, por exemplo, há nele
uma eterna verdade vazia e perfeita –
indeterminada, brumosa, interminada.
Uma recusa, uma subversão, uma transgressão –
ou uma cicatriz – e o futuro se torna
concreto, os dias vão transparecendo uma
anatomia, uma forma determinada que
torna o que era aéreo pesado, marcado e
outra cicatriz e outra e outra transformam
o imprevisível em destino. Um não tem
em si uma forma, uma intensidade
pronta,
que deságua em um esqueleto; é uma
ossatura de nãos que transformam o
planeta em uma diversidade de combates
ainda que bastasse ao universo um javali
devorado na África. Negar um tipo geral é
criar um gênero
dentro daquele tipo,
negar
o gênero geral é criar a espécie. Existir é
diferir? Menos, existir é se contrapor. A
negação cria um espaço ao sol, ela é uma
apropriação. E Pascal: buscar um lugar ao
sol é começar a usurpação de toda a
Terra. Nessa fricção que forma o concreto
, há toda a microcosmopolítica do ser e
do nada; é por causa da negação
determinada, obstinada, é que há o ente e
não antes o nada. O não tira do tudo que
não é nada uma coisa que se separa de
todo o seu universo. Ela cria uma cicatriz
instauradora. Ela tece, borda, delimita,
traça, circunda. Não. O nada cerca o ser,
faz ele ter que ser ele mesmo, fiel a si,
íntegro, indêntico, sem rachaduras, sem
fissuras, ele não pode evaporar na bruma
porque ao brumoso vem a negação e
determina. Toda coisa deve ao nada – este
ser antiquíssimo e idêntico e noturno de
Hegel – seu destino; passa a vida a
exercer essa gratidão preservando seus
contornos ainda que a pele de que é feito
seu corpo desfaleça, desvanesça, esvaeça.
A negatividade vai dando forma às coisas:
isso não, aquilo não, aquilo outro também
não. Pelo menos em uma maneira de ver
a existência como uma escultura em
pedra-sabão. E quantas vezes o não fica
engasgado nos músculos da garganta, na
glândula pineal – que sempre me parece
uma válvula – e não sai. É preciso, dizem
tantos, aprender a dizer não: tomar os
instrumentos na mão e esculpir o mundo.
Mas com esse gesto formal, com essa
intensidade pronta, pegamos uma varinha
e fazemos mais do que montar todo o
concreto como a imagem em negativo do
abstrato?
O enredo se repete, o céu, o povo, o
tempo. E o não: não. Quando ele não
vem, fica a afirmativite, aquela pasmaceira
toda. Tudo nos conformes.
Tento arrancar o grito da garganta; um
grito que ele só vire todas as coisas do
avesso. Como eu carrego esse grito, eu sou
do avesso.
Mas talvez não seja preciso gritar – o
grito contamina como a crítica; ficamos a
cara do inimigo que vomitamos. Deleuze,
por exemplo, insinua que a soberania do
animal está na mera falta de atiçamento,
em virar a cabeça, como no amor fati de
Nietzsche – nem brigar, nem se recusar,
nem contestar, apenas virar o rosto para o
outro lado. Deleuze diria: já a maioria das
pessoas não tem mundo, vivem no mundo
de todo mundo. Não esculpem o mundo
como um carrapato que diz não pra quase
tudo, até que passa o mamífero. Ele
esculpe um mundo para si: mas esculpe só
com um não na mão (quer dizer, nas
garras)?
A afirmação – sim – não é tão estranha
ao não. E também a adição, não é tão
estranha à negação. Adicione um não ao
plano e você terá um espaço
tridimensional. A negação determinada é
uma adição. Uma adição indeterminante
talvez porque o que estava já não fica
mais. A força do não vem da adição de
um grito das produndezas guturais à
pasmaceira vigente. Nada fica igual depois
de um não, e não importa tentar restaurar
caco por caco com outro não e outro e
outro – cada não te leva mais longe do
lagarto que você despedaçou.
Du point de vue de l’esprit cruauté
signifie rigueur, application et décision
implacable, détermination irréversible,
absolue. Artaud, sobre o teatro da
crueldade. O não é a crueldade da
sinceridade – implacável.
O não é uma esponja balofa, nasal, engole
o que nega para sumir com ele, mas não
some com ele, como uma hiena carrega os
ossos do conteúdo que nega para onde vai
e como uma lata de lixo fica ao sabor do
que exala, do que exume, do que exaura,
do que enxota, do que exília. O não é
mesmo um exílio, uma gritaria de fora e
sua musculatura abraça e engole e cospe e
retém – o não é a gota de nada que se
aloja na determinação. Por isso ele
constrói o fundamento – ao que os
alemães apelidaram com as vísceras, as
gúturas, os grúteos de Grund – que é um
abismo – abGrund. É no abismo que as
coisas ficam concretas, concrentes,
concrescentes… elas vão se tornando
matéria pura, purida, prurida, purida, vers
le concret – le concret, é no abismo que
há lé com cré.
O não faz e acontece porque adiciona; a
retirada é um excesso. O excesso é o
escultor, o excesso impede a imitação;
como a crueldade, a parte maldita. Tente
adicionar a tinta rosa na roupa do
presidente, guarda-chuvas azuis na
correnteza do rio, uma embalagem de
plástico sobre o parlamento, uma roupa de
dandi na periferia de Kinshasa, uma
vanguarda operária sobre uma sociedade
de classes, o olhar de um menino índio
sobre os brinquedos abundantes da criança
branca que ganhou um urso de pelúci
a gigante feito na China – tente adici
onar os olhos dos outros sobre sua agenda
que parece cheia e que é completa. A
negação, a contradição, a refutação, a
contestação parecem perigosas; o perigo
mora na adição. É a adição de uma recusa
que desengata a composição. É um excesso
que faz desabar: mais e mais forças
produtivas, mais e mais sedimento em uma
montanha até que ela erode em avalanche
que desconfigura toda a paisagem. Uma
adição. O que acontece quando alguma
coisa a mais é posta sobre o que já
terminou, já está completo, consumado,
constituído, instituído, pronto, pronto para
ser embalado. A negação é uma operação
do excesso.
A adição vem antes e reparem que ela não
é uma afirmação. Afirmação é muita coisa
já que é a cara daquilo que se afirma.
Anne Sexton: For this thing the body
needs, let me sing, for the supper, for the
kissing, for the correct yes. A afirmação é
um foco, uma tomada de decisão, uma
tomada na determinação, um amor fati.
Dizer que sim tem a musculatura da
negação. A pegada. A rasgada. A tirada. A
força das entranhas que adiciona a alguma
coisa a sua proteção, o seu cuidado, a sua
celebração. A afirmação assim é uma
adição, um suplemento de intensidade. Um
excesso de fundamento: Grund, Grund,
Grund, Grund, Abgrund, o abismo que se
abre como um excesso.
A afirmativite também não é ela mesma
uma adição, e um excesso? Sim, ela é
feita de excesso, mas de excesso domado.
De excesso que não é descabelado e fora
de lugar, mas é já completo, consumado,
constituído, instituído, pronto, pronto para
ser embalado. Afirmar assim é deixar que
nos corpos permaneçam os órgãos, as
funções, os sistemas. O excesso é uma
tectônica de pele, da flor de lava que
irrompe da pele sem órgãos, sem
organização, como um corpo entulho no
qual se vive. Do outro lado, na
afirmativite não fazemos para nós um
mundo – ficamos no mundo de todo
mundo.
O Não é uma força de suplemento, uma
desordem, uma diferença na indiferença –
uma adição. A seu viço está em
descompor, transgredir e mesmo em
restaurar o que não volta mais porque
nenhuma identidade é inperturbável pela
adição. A adição é também adoção,
sedição, sedução. A adição de um par de
olhos na câmera embutida na minha
máquina mais íntima que me cobre de me-
vi-te-vendos, de te-vi-me-vendos, de
vapores de celebração e de refutação. Me
seduz, me tira do caminho. As folhas que enchem de sedimento o chão sem fazer
barulho. Um des-vio, a força de um não
sobre o que não permanece porque
pretende permanecer; o canto de Ossanha
ao lado do Ifá. A tentação ao lado do
destino. O porta-voz que é tentado
enquanto procura raízes no meio das
folhas. O homem ou seria o omen, ou
seria o hímen que diz tô não tá porque
ninguém tá quando quer. A adição dos
anos vem rasteira como as folhas,
sorrateira bagunçar você. Adiçaõ.
Addiction. Crueldade.
A crueldade é uma adição. Mais que as
palavras, seu som decomposto, convulsivo,
certeiro de quem enxerga onde está Deus
porque se ocupa de caçá-lo. Ela dissipa
com canibalismo os dedos em riste, os
tribunais, enche de fôlego as credenciais,
borda despalavras com os pedidos indeferidos. Ela é uma linha de força que
é ensaiada pelo Não.
Ao dizer que alguma coisa é ou não é
também adicionamos à coisa qualquer
coisa. O Não se agrega, se aninha e
deforma.
O Não quer ser um ovo. O Não, um
músculo; ou uma nervura no meio do
excesso. Uma glossolalia monossilábica,
gritada, uma conspiração tântrica da
faringe. O excesso, todo ele a flor da pele
do que fica exposto ao que cai do céu, aninha e embala um não, abriga o não,
faz crescer suas garras e deixa que ele
amaldiçoe na altura do cosmos. Ele desintegra, mas desintegra porque in
fla, ajunta. É o ato de inflar que deforma,
reforma, revoluciona. Depois da adição,
voltar a si é voltar a outro lugar – portanto não se volta, o excesso é éxodo
sem volta. Restaurar é deixar marcas, é expor as feridas, as cicatrizes de estar no
Aberto à mercê do excedente, do abuso,
do que vem a mais – meu rosto é feito
das minhas feridas; de próteses, de
emendas, sou uma emenda, feita de
emendas e minha sinceridade é guiada
pelo suplemento de realidade que eu
adiciono com minha faringe. Sem um não,
nada aparece, nada fica concreto mas o concreto nasce do suplemento ao abstrat
o – um pedaço de madeira que se junta ao projeto de uma cadeira, uma multidão
de convictos que se junta ao passo da
revolução. É que ao Não se ajunta alguma
coisa, ele é como um porta-voz, mas só
sou sincero no canto de Ossanha, só sou
sincero através da crueldade nas palavras
que não querem ser palavras, que viram
xenolalia, palavras-em-língua, feridas na
língua, só sou sincero quando a nervura
rasga a palavra. A sinceridade está fora de
mim. Os meus músculos apenas começam
um grito cósmico. FECHA A BOCA.
GARGANTA. ABRE A BOCA.
Que grito? Um ruído que tem a erosão da
náusea, enjoo, angústia. Não consigo ler
um não sem uma adição: uma desfiliação,
um plano, um abismo, um maremoto, uma
degeneração, um megafone, faringite,
gastroconjuntivite, palpite, dinamite,
aborto, contrabando, suicídio e pirataria.
Há também a imobilidade, o silêncio, a
recusa.
I prefer not to.
O Não grita mesmo quando é febre,
dispnéia, labirintite, urro engolido,
sussurro. Como se diz um não com a
garganta em português? Talvez assim
:
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes
pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos,
e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um
facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e
cânticos nos
lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais
ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu,
que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus
e o
Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas
intenções,
Ninguém me peça
definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A
minha vida é um vendaval que se
soltou,
É uma onda que se
alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei
por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por
aí! (José
Régio, Cântico Negro)
A subversão, mesmo acima de qualquer
suspeita, o desajuste, a sublevaçaõ e a
loucura adicionam escarros de não no
mundo. O não tem a intensidade do
irrecuperável. Em Equus, de Sydney
Lumet, o terapeuta fala assim: curar esse
amor desenfreado por cavalos, eu sei
curar, faço os pontos, arranco a infecção;
mas restaurar esse amor depois, isso eu
não tenho ideia de como fazer. Estamos no
espaço do irrestaurável. E ele faz a
garganta inflar.
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