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A natureza exorcizada e a política em campo aberto

Chapter 2 of Linhas de Animismo Futuro, the book is still in the works.


A natureza exorcizada e a política em campo aberto

A ideia de natureza é uma tela que isola o humano do real substituindo a simplicidade caótica da existência pela complicação ordenada de um mundo.
Clément Rosset

1. A noção teológico-política de Natureza sequestra as disposições, as capacidades, a agência e a animação de tudo o que está sob seu domínio. Aquilo que é entregue à natureza, é entregue a um domínio ordenado, a uma soberania de leis. A Natureza é uma arché da cosmologia vigente, ela substitui a lida com os mortais não-humanos por um apelo a uma entidade imortal acima de qualquer limitação, até mesmo de caráter moral acerca do que está sob seus domínios. As leis da natureza são portanto tipicamente entendidas como transcendentes a seus domínios – leis de um soberano despótico imperial. Mumford, em seu livro Laws in Nature, analisa a ideia de lei para alcançar o dilema: ou há disposições nas coisas naturais – elas têm poderes – e não existe um domínio de leis ou há um tal domínio e as coisas naturais são desprovidas que qualquer disposição e não se pode dizer, a não ser como uma abreviatura da formulação de uma lei, que um animal é feroz ou que o açúcar é solúvel. Mumford prefere a ideia de que há genuínas disposições entre as coisas naturais – elas são dotadas de capacidades, de poderes. Este re-encantamento da natureza abraça não apenas a tese de que não há genuínas leis como coloca em xeque a ideia mesma de uma entidade soberana Natureza.

A possibilidade de haver poderes nos não-humanos invoca a ideia de que eles tem uma habilidade de resposta, uma animação diante do seu meio circundante – que eles se engajam como genuínos protagonistas com respeito ao que há ao seu redor. Olhar para alguma coisa natural como quem procura conhecê-la colocando-a em um domínio de leis é como desviar os olhos de uma entidade concreta em direção a uma ordem que jamais se manteria sem uma sociedade de agentes que a implemente – trata-se de uma instância daquilo que Whitehead chamava de falácia da concretude deslocada (misplaced concreteness). Olhamos para a mortal e vemos a deusa que a comanda, fazemos sua mortalidade desaparecer no altar de sua submissão. A teologia política vigente concebe tudo o que é natural como devendo subserviência – ali não há política, porque só há polícia. Como a Humanidade contrabalança a Natureza em um equilíbrio cosmológico que nos permite conceber os humanos como em estado de exceção (e, portanto, sozinhos em qualquer empreitada de animação), a política está apenas naquilo que consegue se manter, pelos dispositivos das máquinas antropológicas, como humano. Assim, a constituição teológico-política vigente bifurca natureza e política, ques e quens, polícia e direito.

Explorar a difícil fricção entre Natureza e Humanidade – onde persistem os híbridos, onde se insinuam os animais, onde rodam as manivelas da maquinaria antropológica é perambular por uma fronteira em disputa: pode-se naturalizar a política, e pode-se fazer o movimento inverso. O movimento inverso é o de desnaturalizar, que significa poder entender que não há uma autoridade natural estabelecida sobre algo, e uma política pode ter lugar – assim dizemos que relações raciais, relações de classe, de gênero, sexo ou lucidez não são naturais mas políticas. Surgem as esferas dilatantes dos animismos: os movimentos em direção a tornar capaz de política aquilo que previamente não era. Eles começam com os outros humanos do homem branco moderno – imigrantes, negros, índios, mulheres, população trans, crianças, loucos, doentes etc. – e seguem em direção ao não-humano – o alimento, o animal, a paisagem, as populações vegetais, os ecossistemas, a biodiversidade, a Terra. Esta me parece uma boa maneira de entender o gesto animista em sua amplitude: o ímpeto de erodir a noção teológico-política de Natureza pelas bordas e com isto colocar em questão qualquer pretensão de um subconjunto próprio de entidades que se pretenda lócus exclusivo de toda política. Como diz Viveiros de Castro (em sua conferência Curt Nimuendaju de 2014) acerca das populações ameríndias do baixo Amazonas, ali é onde o slogan do militante iniciante – tudo é político – se torna literalmente verdadeiro.

A expansão do âmbito do político é também uma diáspora da agência: não somos nós humanos os poucos soberanos – em companhia apenas da Natureza imperial – mas a animação adquire diferentes formas, diferentes velocidades, diferentes capacidades de aceleração em pelo menos tudo o que é sublunar (ou seja, em pelo menos tudo o que é terrano). Trata-se de entender o não-humano circundante não mais como se a polícia andasse atrás dele, mas como legítimo interlocutor político, capaz de agência e portanto de tratar alianças, de compor redes, de fazer pactos e de entabular negociações. Ou seja, trata-se de entender o não-humano não por meio de uma linguagem imperial, mas por meio de uma diplomacia ad hoc, onde fazemos corpo com toda sorte de agentes sempre em provisoriedade. Trata-se de pensar no mundo também como um espaço de composição – uma ontologia de alianças.

2.Bruno Latour introduz um elemento importante nesta caracterização. Ele faz uso da science studies a que ele e outros tem se dedicado para encontrar nas vicissitudes da vida de laboratório um protótipo de como traçar alianças que envolvem humanos e não-humanos. Não se trata, em sua concepção da atividade científica, de entender que nós humanos fazemos pactos acerca do não-humano, que as teorias se mantém por um esforço implícito ou explícito dos cientistas humanos em as preservarem – algo como o irônico motto de Lakatos: não há teoria falsa, há apenas cientistas insuficientemente espertos. Uma alternativa assim seria uma variante construtivista da teologia política naturalista: só há política porque ela é feita por humanos. A descrição da atividade científica que Latour favorece é aquela em que as teorias são verdadeiras porque são construções, porque se mantêm é que são verdadeiras – è vero perché è bem trovato, não encontrado por cientistas apenas, mas encontrado como se encontra um ponto de acordo em uma negociação que envolve elementos humanos e não humanos. Ou seja, nós humanos fazemos pactos com o não-humano, e não em torno dele, não ao redor dele e não acerca dele.

A tese de Latour pode ser apresentada de uma maneira incisiva da seguinte maneira: a construção de teorias é a forma moderna de pactuar com a agência – inclusive com a agência recalcitrante – do não-humano. Trata-se de uma forma velada de articulação política, velada sobretudo dos Modernos que são nativos cujo relato sobre si mesmos dificilmente pode ser tomado como informativo. Latour ele mesmo indica este mecanismo de velamento quando descreve o trabalho de uma etnógrafa de origem desconhecida – como frequentemente os etnógrafos têm uma origem ignorada pelos nativos pesquisados – às voltas com os Modernos. Os nativos logo lhe informam da importância das distinções entre domínios: o domínio científico, o domínio político, o domínio diplomático entre outros. Eles contam à etnógrafa que não se pode deixar de considerar estes domínios como separados. E ela, astuta e ciente da arte de desconfiar do que contam os nativos sobre si mesmos, percebe que aquela conversa servia apenas para enrolá-la. Latour escreve:

Se bem que seus informantes insistem visivelmente nestas distinções, ela compreende rapidamente (algumas semanas de campo serão suficientes para convencê-la, ou mesmo apenas a leitura dos jornais) que com estas histórias de domínios, quer-se dar a ela pistas erradas. Ela vê claramente que, por exemplo, o domínio da “Ciência” é invadido por elementos que parecem antes fazer parte da Política [...]1

A separação entre domínios – tributária da distinção com portaria entre Natureza e agência – é parte do credo oficial dos Modernos assim como a indiferença a ela é parte da sua praxis generalizada. Este trabalho de velamento é, conforme a descoberta da etnógrafa dos Modernos de Latour, constitutiva da maneira como vivem os Modernos: a cultura de esconder para esquecer. Ela (e Latour) dão um nome para este gesto central na constituição dos modernos: DC (que abrevia Double-Click). Trata-se de um dos modos de existência dos coletivos modernos que eles prezam e dão importância, ainda que não falem sobre isso. DC permite que todo um processo de produção subjacente de alguma coisa – como o processamento requerido para um computador satisfazer o comando de um toque no mouse – permaneça recôndito, não venha à tona. (E vale notar que o veículo que transmite, como um vahana hindu, o comando a tudo aquilo que deve parecer recôndito – o que se passa no computador – é aqui apresentado como um animal, não um animal qualquer, mas um animal transmissor.) É DC que deixa alguma coisa escondida para que possa ser esquecida. E é DC que rege a articulação política velada com o não-humano entre os Modernos. O inanimismo aparece como uma camuflagem para as teias de articulações políticas subjacentes.

Quanto à articulação política, Latour procura aproximar a noção de agência política da noção de instauration , herdada de Etienne Souriau, de quem ele herda também o foco nos diferentes modos de existência. Souriau2 entende que alguma coisa existe em função daquilo que com ela co-existe – aquilo que existe tem que ser co-possível com o que existe também. A existência é entendida em termos dos existentes, ela depende daquilo que a institui e que a mantém, e é este processo de dependência com respeito a outros existentes que ele chama de instauration. Podemos entender estes instituidores, instauradores que co-existem com o que existe como seus patrocinadores. Um rio requer o patrocínio da frequência de chuvas e da terra dos seus leitos, um prédio de uma agência de banco requer o patrocínio da gravidade e do meio circulante. Os patrocinadores são aproximados por Latour dos agentes políticos já que ambos mantêm uma teia de alianças que permitem a existência de alguma coisa. Um exemplo estudado por Latour é a introdução de micróbios na concepção de mundo do século XIX por Pasteur, que foi um processo que demorou desde 1864 até o fim do século.3 Travaram-se alianças que envolveram agentes humanos – comunidades científicas, médicos, higienistas, governos e suas políticas públicas – e agentes não-humanos – animais envenenados, líquidos fermentados, substâncias alcóolicas e germes aéreos. Ou seja, o conhecimento é ele mesmo não uma descoberta de uma lei imperial, e muito menos a delimitação de sua área de atuação, mas a construção de um coletivo, de uma rede, que Latour gosta de denotar como se denotaria polímeros formados por componentes humanos e não-humanos, algo como -H-NH-NH-NH-H-H-. Teorias não são como pontos de observação distantes e indiferentes, mas construções a partir do que importa para cada uma das partes – como em qualquer aliança política. Teorias são construções, porém não apenas construções entre cientistas mas também entre os patrocinadores não-humanos envolvidos nos seus enunciados – a ciência não tem objeto, tem apenas co-autores, humanos e não-humanos. E elas são verdadeiras se se mantêm; uma teoria aceita faz uma aliança que é uma boa construção, e porque é uma boa construção, e enquanto for uma boa construção, pode ser verdadeira.4 É o que a instala e o que a mantêm – seus patrocinadores – que fazem com que ela subsista. Verdades não são mais do que acordos duradouros, acordos entre o engenho humano e as trajetórias singulares não-humanas. Latour compara as construções que são boas o suficientes para serem verdadeiras ao idólatra que construía para si um deus de barro, e que era interpelado pelo monoteísta: “mas foi você mesmo que o esculpiu, não foi?” – e o idólatra: “sim, e não ficou forte e poderoso? Eu acredito nele.”

A política é, para Latour, um exercício de negociação, de toma-lá-dá-cá, e não pode ser diferente. E a atividade científica é descrita como algo parecido e que engaja com não-humanos. Ou seja, é a continuação da mesma coisa mas com meios que não são mais, por exemplo, os parlamentares, mas os laboratoriais onde as alianças com o não-humano são feitas em outras bases, em outras velocidades, em outros regimes. O não-humano é pensado pelo inanimismo moderno como sendo a fronteira do político e Latour entende que ele não pode ser senão a fronteira do político que declara seu nome. Existe animação política não-confessa – e parte dela é não-autorizada. Latour entende a constituição moderna como sendo bicameral – há a câmara da Humanidade, onde se faz política, e a câmara da Natureza onde se descobre ordens (se atende à polícia).5 E no entanto, há na atividade científica outra constituição tácita, performativa, indiferente ao credo e em consonância com a praxis dos Modernos. Talvez nesta constituição velada haja laivos de um animismo onde há agência para além das articulações políticas em forma de pactos explícitos. Atentar para as vicissitudes da atividade científica é atentar para uma outra constituição implicitamente respeitada: aquela em que a atividade política se dá em campo aberto.

3.Descola contrasta o naturalismo com seu antecessor europeu, o analogismo, e ambas com duas outras disposições, o totemismo e o animismo. Ele descreve estas disposições como estruturas de toda relação com o não-humano e procura encontrar uma universalidade subjacente a este quadro de quatro ontologias contrastantes. Se o naturalismo entende o não-humano como semelhante em fisicalidade apesar de distinto em interioridade e o analogismo entende o não-humano como distinto em fisicalidade e em interioridade, o totemismo entende o não-humano como semelhante tanto em fisicalidade e interioridade e o animismo como igual em interioridade e distinto em fisicalidade. Descola entende que o animismo – assim como o totemismo – estende ao não-humano a interioridade que ele encontra nos humanos – não-humanos podem ter uma animação como a dos humanos. Neste sentido, o animal individual, por exemplo, é percebido eventualmente como sendo parte de um coletivo como o coletivo humano e, assim, enredado em uma teia de relações com outros não-humanos que são como alianças, como contratos sociais. Tanto Marshal Sahlins6 quanto Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro7, apontam para uma proximidade grande entre o animismo e o totemismo quanto à atribuição de interioridade ao não-humano pela capacidade de alianças políticas com outros coletivos. No esquema de Descola, tanto a disposição animista quanto a totemista – e em certo sentido também a analogista – são formas de animismo. Em todos estes casos, porém precisamente não no caso do naturalismo, o não-humano de um modo ou de outro está enredado em alianças e portanto em associações que, por significarem uma vida coletiva, apontam para uma capacidade de manter elos sociais que, por sua vez, requerem o que a interioridade presente nos humanos requer.

Para Descola, no entanto, é como se o animismo fosse o antípoda do naturalismo e o totemismo o antípoda do analogismo. Para o totemismo, existentes de um totem são fisicamente e psiquicamente semelhantes entre si – quem é canguru tem o corpo e a interioridade de um canguru; a verdadeira natureza de seu corpo é revelado pelo totem (é um pouco como quando dizemos que a testa larga de uma pessoa evidencia que se trata de uma libriana). Para o animismo, em contraste com o naturalismo, é a interioridade que é comum a tudo, e a fisicalidade é sempre muito diferente. Descola encontra coletivos animistas em diversas partes das Américas – no baixo Amazonas, mas também no Canadá, entre os Inuit – e também na Sibéria, em partes da Ásia e em regiões da Polinésia e da África. Populações siberianas teriam passado ao analogismo a partir do animismo e um elemento importante daquela transição foi o início da criação de animais em cativeiro – precisamente dos caribus trazidos da América. Os coletivos animistas tipicamente não exercem a pecuária e a criação de renas movida pela maior dificuldade de sobrevivência destes animais do outro lado do estreito de Behring fez com que a semelhança de interioridade postulada entre humanos e caribus fosse gradativamente abandonada. Descola se concentra principalmente nas comunidades ameríndias do baixo Amazonas, sobretudo nos Achuar – Jivaros – que ele estudou, mas também nos Campa e nos Tukano e entende que em seus mitos

não há uma passagem irreversível da natureza à cultura, mas antes a emergência de discontinuidades naturais a partir de um contínuo cultural original no seio do qual humanos e não-humanos não eram claramente distintos” (187, tradução minha).

Ou seja, ao contrário de um universo de inanimação originário como o dos naturalistas – do pó viemos ao pó retornaremos – os animistas postulam um passado em que tudo tem uma animação, no princípio tudo tinha cultura e interioridade. A arché de tudo o que é cosmológico é portanto em algum sentido antropológico – ou pelo menos psicológico.

Trata-se de uma contraposição do antropocentrismo naturalista por um antropomorfismo: havia gentes antes de haver mundo. Assim, animais, por exemplo, pertencem a outros coletivos como o dos grupos humanos – os outros são sempre quens, são sempre de outras sociedades, de outras comunidades. O jaguar traz sua presa para casa, e bebe sangue como quem bebe cauím. O encontro com um outro é sempre o encontro com quem está em outra comunidade, carrega laços com outros existentes – ainda que os laços possam ser comparados com aqueles conhecidos. Por isso, os animais – e demais não-humanos já o alcance desta atitude varia em diferentes grupos – são entendidos como tendo uma vida que circula em torno de uma cultura comum com os humanos – uma interioridade que busca comida, bebida, abrigo – e uma fisicalidade diferente. É precisamente esta diferente fisicalidade que permite que alguns existentes não sejam animados e dotados de uma interioridade mas somente a fisicalidade daquilo que tem uma interioridade. Todo corpo é, ele mesmo, ou dotado de interioridade ou parte do que é dotado de interioridade. Como a fisicalidade de um existente se estende para fora de sua pele em direção ao ambiente em que ele vive, partes de sua fisicalidade dotada de interioridade pode não ter elas mesmas interioridade. A inanimação aparece como um subproduto de um universo animado – já que nem tudo é intencional em um mundo de intencionalidades em fricção. (Interessante comparar a ideia de que partes das fisicalidades não são dotadas de interioridade com a ideia leibniziana de que toda parte de matéria é dotada de uma alma ou enteléquia e, portanto, cada parte infinitesimal da fisicalidade está associada a uma interioridade.8)

4. Dois elementos merecem especial atenção na disposição animista tal como Descola a descreve. Primeiro, o tema da camuflagem. Assim como os naturalistas pensam que se pode transitar entre diferentes culturas por meio de uma fisicalidade comum – se os coreanos podem comer kimchi e os oaxaquenhos podem comer chapulines eles podem digerir estes alimentos e portanto eu também posso fazê-lo – os animistas pensam que se pode transitar entre diferentes naturezas por meio de uma interioridade comum. Descola ilustra isso por meio de um mito animista de Nova-Guiné (dos Orokaiva) em que um viajante se transforma em porco e em humano em diferentes trechos de uma viagem. A camuflagem é como uma mudança de opinião (ou de costumes, ou de hábitos) para os naturalistas: não se trata de uma mentira, mas de uma adaptação às circunstâncias. A camuflagem pode ser comparada com os relatos de Circe, por exemplo em Plutarco9: humanos se transformam em animais e mantêm suas memórias, seu julgamento moral – mas se dão conta de que enquanto animais podem ser mais prudentes, mais corajosos, enfim, mais virtuosos do que enquanto humanos. Como eles retêm seu julgamento moral, é possível para Grillus querer permanecer porco, ainda que o Odisseu lhe tente convencer a retomar sua vida humana. Analogamente, é concebível que se compare fisicalidades como os naturalistas comparam culturas. A camuflagem é também, portanto, um exercício de conhecimento do outro – assim como os viajantes e etnógrafos procuram em algum sentido viver com outras culturas, os camufladores procuram em algum sentido viver com outras naturezas, com outros corpos. Camuflar é fazer uma transição de natureza, ainda que temporária. Em um contexto multinaturalista, a etnografia seria mesmo substituída por uma fisiografia, por uma descrição ou um estudo da fisicalidade dos outros. A interioridade comum – a animação que é o pano de fundo de tudo o que há – é o meio através do qual é possível camuflar e fazer esta fisiografia.

O texto de Plutarco sobre Circe entende a camuflagem como uma fisiografia, em uma tonalidade alheia ao credo naturalista. A estranheza que ele provoca no leitor naturalista provêm da impossibilidade assumida de que animais tenham julgamento moral – parece que Grillus não pode ser um genuíno porco porque ele reteve sua interioridade. Grillus não está apenas transformado em porco, ele é, para o naturalista, um híbrido já que contrabandeou para o corpo do porco uma interioridade capaz de julgamento moral. Além disso, o naturalista não entende o propósito mesmo de uma fisiografia comparada: ou perdemos a interioridade e com isso a capacidade de virtude se nos transformamos em porcos ou estamos apenas disfarçados de porcos (quando convencidos de que nossa vida é mais virtuosa com o nosso corpo em forma de porco) já que enquanto porcos não temos mais que fisicalidade. É impossível, para o naturalista, experimentar a fisicalidade não-humana, pelo menos se a experiência requer uma interioridade. O texto é estranho porque ele gira em torno de uma fisiografia e a ideia mesma de uma fisiografia é anátema ao cerne da ortodoxia Moderna. Se a experiência é processamento de sensações – e não séries de ocorrências corporais10 - o corpo ele mesmo faz diminuta diferença já que ele não é mais que um veículo para a extração de sensações. A diminuta diferença é que talvez outros corpos tenham outras sensações e portanto processem outros inputs, mas as sensações são comparadas a partir de uma fisicalidade comum a todas elas e não através de uma experiência de uma interioridade comum a quem as tem. Assim como para o animista, há um sentido em que nenhuma etnografia pode trazer surpresas, para o naturalista a fisiografia não pode revelar nada que uma fisiologia ou uma física não sabem (ou não possam saber).

O texto de Plutarco data de uma época em que, na história das disposições ontológicas de Descola, preponderava o analogismo na Europa. De um ponto de vista analogista, fisicalidades e interioridades eram diferentes e a transformação de uma fisicalidade humana em uma suína traria uma interioridade transformada a qual seria possível aproximar apenas por meio de uma analogia. A camuflagem animista, ou a transformação dos corpos, ainda faz sentido de um ponto de vista analogista já que há diferentes interioridades e Grillos, com a ajuda de Circe, procedeu a um exercício de fisiografia-cum-etnografia já que virar porco é também se aventurar em uma outra animação. De todo modo, analogistas são as fábulas como as de Esopo ou de La Fontaine onde os animais aparecem como estrangeiros que tem um traço cultural marcante – a formiga trabalhadora, a raposa truculenta, o lobo sedento de domínio. Também estas fábulas se tornam para a sensibilidade naturalista não mais analogias11, mas meras alegorias, afinal animais não falam porque não têm do que falar e quando se conta de formigas, raposas ou lobos não se pode estar contando senão de formigas, raposas ou lobos em nós. Esses animais em nós aparecem seguramente, do ponto de vista naturalista, porque temos em comum com eles uma fisicalidade. Nós podemos ter elementos animais e isto não indica que temos algo que nos habilita a ter uma comunidade (ou mesmo uma comunalidade) com eles, mas antes que temos que estar vigilantes acerca de uma disputa entre o animal em nós e nossa interioridade. Trata-se de uma disputa que ocorre na arena da interioridade e que nos faz atuar como seu leão de chácara – sim, leão – já que este espaço característicamente humano tem que ser protegido do assalto animal (na forma, por exemplo, de instintos que são como espasmos de fisicalidade em nosso foro íntimo).

O segundo elemento é o tema do canibalismo e da ingestão. Uma parte importante da interioridade comum a todos (a tudo) é relativa à digestão – é preciso comer para subsistir. A comida é um momento de relação com o outro: comer é negociar com as forças e as intensidades de uma outra fisicalidade associada a uma interioridade semelhante – comer é criar uma rede, fazer corpo com um outro. O dilema diplomático é, como diz o xamã Inuit Ivaluardjuk12, que tudo o que se come tem alma; ou seja, a composição dos nossos corpos é já uma grande devoração onde a digestão é em escala molecular sempre uma realpolitik. E tudo tem alma no sentido de que tudo foi como nós, tudo foi alguém – e portanto toda atividade alimentar é um exercício (camuflado) de canibalismo. Transformar algo em comida não é só uma atividade de açougue – ou de fazenda – mas é algo que envolve um xamanismo: há que se determinar o resultado da ingestão de uma planta, há que se preparar para a digestão de uma erva e sobretudo há que se entabular negociações como as de guerra quando se vai à caça.

O xamã animista é diferente daqueles profissionais modernos que são capazes de enunciar e aplicar leis da natureza a não-humanos e que podem, em princípio, fazê-lo sem intimidade com um não-humano já que basta que seja conhecido o seu senhorio. O xamã é algo mais parecido a um diplomata: ele tem que fazer acordos com as populações que serão caçadas – e fazem isso por meio de um contato com um xamã não-humano – e estes acordos devem ser respeitados na hora do ataque. O xamã é aquele que lida com a realpolitik das negociações que envolvem coletivos que precisam se alimentar. O trabalho do conhecimento não versa sobre substâncias pré-existentes, como enfatiza Descola13; conhecer é sempre ter elementos para fazer alianças com o existente que é encontrado – ou com a comunidade de outros em questão já que um outro é sempre parte de um coletivo, é sempre alguém para os seus. O não-humano pode estar fora do nosso coletivo, mas não está fora do escopo da negociação, e portanto não está fora do âmbito de qualquer diplomacia. O xamã negocia em sonhos, por exemplo, com o xamã dos porcos selvagens antes de enviar humanos de seu coletivo à caça. Esta negociação requer que o xamã conheça como funciona a sociedade dos porcos selvagens; porém isto não é suficiente, é preciso saber apresentar suas demandas e saber abrir mão de algumas delas escutando a demanda que surge do outro lado da mesa. Como na prática da diplomacia entre países, negociadores tem que estar presentes na mesa – e tem que ter poderes para reformular demandas, reinterpretar requisitos, abrir mão do que começar a parecer, durante a negociação, menos importante. Davi Kopenawa, um xamã yanomami, em seu relato no livro La chute du ciel: paroles d’un chaman yanomami, insiste na importância da presença dos xamãs para a preservação da floresta: a palavra deles tem que estar sempre por perto, eles não podem registrar por escrito o que sabem porque suas palavras são relevantes onde elas são pronunciadas. A presença dos xamãs é importante porque as negociações não obedecem simplesmente a manuais ou a instruções prontas, elas tem que ser repensadas a cada circunstância, a cada vicissitude.

As relações com os não-humanos, para naturalistas e animistas, tem uma forma muito distinta. Descola cataloga diversas relações ecológicas que são possíveis entre um humano e seus outros. Entre as relações (potencialmente) reversíveis, ele considera a predação, a troca e a dádiva – as três presentes entre coletivos animistas na relação entre humanos e não-humanos. Os Jivaros – os Achuar, os Huambisa, os Aguarunas – primam por uma relação predatória com o não-humano, eles tomam o que lhes interessa e esperam hostilidade da parte prejudicada. Em contraste, os Tukanos do Rio Negro se esforçam por um balanço e um equilíbrio nas relações de troca enquanto os Campa – Ashaninka, Matsiguenga, Nomatsiguenga – acreditam que sua relação com os não-humanos devem envolver relações de dádiva onde a retribuição é por vezes desnecessária. Importante que em todos estes casos, há uma disposição ontológica animista; ou seja, a ontologia não determina nenhuma relação ecológica específica com o não-humano. Ainda mais importante é que nos três casos trata-se de relações que podem ser descritas como diplomáticas pois a predação, assim como a troca e a dádiva, pode ser entendida como uma forma de negociação na medida em que a hostilidade é esperada: há que se proteger da parte que foi predada. O roubo e o saque são, em certo sentido, ainda formas de negociação. Em contraste, os naturalistas não mantém relações ecológicas diplomáticas com o não-humano – eles nem sequer predam, já que quando saqueiam florestas ou mananciais esperam hostilidade apenas da parte dos humanos que são donos ou tem alguma forma de soberania sobre estes não-humanos. A natureza, na disposição naturalista, é algo que não é capaz de castigar (nem de se vingar, nem de fazer justiça). As negociações se dão sempre entre humanos e humanos – já que só eles possuem interioridade para que seja possível uma relação diplomática.

5. Descola entende que nem todos os coletivos animistas são perspectivistas – ou seja, nem todos entendem que o não-humano enxerga o humano como não humano. Viveiros de Castro, em contraste, atribui aos mesmos ameríndios do baixo Amazonas um perspectivismo segundo o qual o jaguar pensa no sangue como o humano pensa no cauím e o jaguar pensa que é humano (e que o humano não é) da mesma forma que o humano pensa que é humano (e que o jaguar não é). Ou seja, de acordo com o perspectivismo, ser humano é um indexical – é como o nós que é aplicado a qualquer coletivo por aqueles que a ele pertencem. A percepção do outro é sempre portanto a percepção do não-humano. Não há portanto uma diferença de natureza entre a humanidade e o resto – aquilo que os naturalistas atribuiriam ao domínio das leis e que são por si mesmos completamente inanimados. Não há uma diferença de soberania ou de autonomia entre os humanos e todo o resto, não há sequer diferença de natureza alguma – há apenas uma diferença de posição; ou seja, os humanos se vêem como tal porque se vêem como nós (como quando dizem: nós que estamos aqui, nós que vivemos agora etc.). Se Descola concebe estes coletivos como entendendo que o outro é sempre outro de algum grupo social, tão socialmente animado quanto qualquer grupo social humano, Viveiros de Castro ajunta que o outro é visto como pertencendo a um grupo social diferente, não-humano. Os outros são sempre de algum coletivo, mas são de outros grupos, de grupos que não são como o nosso.

O perspectivismo ameríndio exorciza assim qualquer máquina antropológica: nada senão uma posição, uma pertença em um coletivo, distingue o humano do não-humano; não há nenhum predicado real especial que diferencia o humano do não-humano, aquilo que promove a humanidade não é nada mais do que um demonstrativo e pertencer a um grupo humano é apenas a capacidade de pertencer a um coletivo. Separar humanos de não-humanos não é nada mais do que identificar um coletivo do qual pertencemos diante dos demais que não são aqueles aos quais pertencemos. Como tudo é político, não há também ontologia alguma nesta distinção – apenas políticas de inclusão social, ou seja, políticas de inserção em coletivos. E, ao mesmo tempo, um chauvinismo inerente às máquinas antropológicas que dividem humanos de não-humanos fica exposto. Humanos são apenas aqueles que estão entre nós, e sua definição não é mais do que um exercício posicional de reconhecimento. Do ponto de vista de cada coletivo, há sempre nós e eles, nós e os demais – e chama-se de humanos apenas aqueles que estão entre nós, aqueles que se contrastam com todos os outros por pertencerem à sociedade em que pertencemos. Não há máquina antropológica senão uma máquina pronomial pois de um ponto de vista perspectivista, não existe nada substancial que distinga o humano do não-humano, apenas o uso posicional dos pronomes. A impressão de que algo nos distingue enquanto humanos é como uma ilusão orientada pela posição da qual vemos os demais – nossa matriz de importância, que faz com que a linguagem, a morte, o tédio ou o que for nos contrastem crucialmente com todo o resto, é um reflexo de vermos a linguagem, a morte ou o tédio em nós e não os termos encontrado nos demais.

Mais uma vez o tema da nutrição merece ser enfatizado. Perspectivista ou não, o animismo traz ao centro a política da comida. Em todo caso, os outros são sempre membros de outras comunidades. E a relação diplomática, que pode adquirir diferentes formas como vimos, é pautada sempre pela realpolitik da grande bouffe: que outros de outros grupos sociais – que não-humanos, que não-reconhecidos – vão virar objeto de nutrição. O naturalismo transforma todo o não-humano em recurso alimentar – pode haver problemas naturais em se alimentar de pedras ou de musgos, mas não problemas políticos. Não há tabus alimentares senão aqueles determinados pela Natureza – e, assim, tratados pela física do acoplamento de corpos. Quando os animistas procuram o que comer, engajam-se não na escolha de que recurso consumir, mas em um expediente diplomático que permita que eles consigam tanto seguir subsistindo quanto seguir convivendo com suas cercanias – se preparando para a guerra, mantendo um comércio justo ou fazendo oferendas. Deste expediente, eles compõem seu corpo, um corpo mantido pelas vicissitudes diplomáticas no trato com o ambiente em que vivem. Em contraste, e como era de se esperar, toda trama política envolvida na nutrição dos naturalistas é velada, não pode haver relações diplomáticas com o recurso alimentar, a não ser aquelas que se apresentam como relações econômicas (ou nutricionais, ou culturais). De resto, trata-se de mais uma artimanha de DC: ficam ocultos as vicissitudes de bastidores para que se possa servir à mesa apenas a comida.

6. Assim como, para os animistas, há custos políticos em comer, os animismos ameríndios, perspectivistas ou não, parecem estar cientes de que há também um custo em transformar aquilo que existe em objetos acerca do qual se pode tratar. Há que se tratar com o que vai ser tratado desta maneira para que o trato seja cumprido. O trato político que é velado entre os naturalistas, é feito de modo explícito entre os animistas. Como diz Kopenawa, é preciso que os xamãs estejam presentes já que nenhum tratado pode substituir o trato que eles tem com os existentes da floresta; é preciso travar com eles diferentes tratados, o que é diferente de escrever acerca deles diferentes tratados. Talvez haja dois tratados, ou duas maneiras de entender o tratado. O tratado pode ser aquilo que trata acerca de alguma coisa, que tem como objeto alguma coisa – humana ou não-humana – e que a descreve ou a explica ou teoriza acerca dela de modo que o tema fica tratado. Com um tratado assim, já não se necessita nenhum outro trato com aquilo, a não ser que seja necessário um outro tratado. Neste sentido, tratados são como apresentações de teorias, como enunciados de leis – eles tornam desnecessária qualquer outra lida com o que eles tratam. Latour parece ter esta ideia de teoria capaz de representar aquilo do que ela trata quando ele estranha que seja risível quem acredita em levitação mas que seja aceitável que as teorias possam sustentar o mundo.14 E depois há todo um outro tratado, ou outra concepção do tratado: o tratado é aquilo que se pactua, aquilo que resulta de uma aliança e, como ela, pode ser explícito ou não. Estes tratados podem ser rompidos e sua manutenção muitas vezes se apoia em grande parte em outros destes tratados – e se apoia no outro tipo de tratado apenas se o outro tratado conseguir ser também um tratado, neste segundo sentido. O tratado é aqui como um pacto, como um trato, como um acordo – façamos um trato, e não farei um tratado acerca de você. Em ambos os tipos de tratado, alguma coisa fica estabelecida, ainda que provisoriamente até que outro trato seja preciso – a diferença está em que no segundo tipo de tratado, mas não no primeiro, há duas partes, dois lados, dois pólos que convergem no tratado. Há um encontro, e potenciais desencontros. No primeiro tipo, por outro lado, uma parte – a parte do autor do tratado – paira sobre a outra como em um exercício de levitação. No segundo, o tratado tem que ser feito, mantido, tratado, já que as tratativas dependem de uma interlocução onde mais de uma voz é ouvida. No tratado como pacto, não há algo que paira, determina ou precede a interlocução – o encontro é soberano.

É certo que estes dois tipos de tratado podem ser comparados com os dois planos de que falam Deleuze e Guattari.15 Os dois planos – o plano de organização e o plano de composição. O primeiro é um plano que prefigura os encontros já que ele é oculto por natureza, como a partitura das coisas ou o projeto de uma casa, que não se encontra na casa, mas está executado na casa. O segundo plano é onde o que é executado tem lugar, é onde as coisas se compõem porque as diversas forças e velocidades se encontram; o plano de composição é o plano do contato, onde ocorrem os acoplamentos e os contágios. Porém a analogia tem limites. Os dois tratados são tais que um rege os agentes, os determina, em alguma medida enquanto o outro é determinado pelo trato entre os agentes. Os planos de Deleuze e Guattari dizem respeito a como os agentes eles mesmos são constituídos – o plano de organização é o plano onde os poderes organizados reconhecem e instituem os sujeitos e o plano de composição é onde não há sujeitos mas apenas processos de individuações que transitam como infecções entre os sujeitos. Os tratados, em contraste, lidam com agentes, o primeiro trata acerca deles e é aquele que não os toma como agentes e o segundo diz respeito ao que emerge do encontro entre eles. O segundo sentido de tratado é aquele de onde surge a animação a partir do encontro – como o plano de composição é onde acontece o movimento, composição e velocidade – porém aqui o encontro é o encontro entre agentes, são eles e não suas forças compositivas, que produzem uma composição (diplomática) ao se encontrarem. O segundo sentido de tratado evoca a interanimação e a composição entre agentes – as unidades de animação são também unidades capazes de trato, capazes de fazer pactos.

Uma outra comparação possível com os dois tratados é com a distinção de Benveniste16 entre récit e discours – entre narrativa e discurso. Na primeira, os acontecimentos são reportados como se tivessem origem neles mesmos enquanto no segundo a enunciação supõe uma interlocução, um locutor e um ouvinte, e uma intenção de influência do primeiro sobre o segundo. Uma narrativa é como um enunciado de leis da natureza, onde se enuncia algo sobre aquilo de que a lei trata. Um discurso é um fragmento de diálogo, de tratativa, de negociação; ele pressupõe um aval, um assentimento (ou um veto, uma discordância). A narrativa é própria do que está constituído, daquilo que está dito, daquilo que já foi conversado ou que de toda maneira foi instituído. O discurso é menos o dito do que o dizer – evocando a distinção igualmente relevante aqui entre o dit (o dito) e o dire (o dizer) em Levinas.17 O dizer tem um eu e tem um tu, assim tem um outro discurso suposto. O dizer é o processo de instituir, onde um diálogo suposto não deixa ainda nada já constituído. A narrativa, ou o dito, é a linguagem a que nos servimos para reportar como são as coisas, é a linguagem do que paira sobre elas – é como descrevemos a Natureza quando falamos de suas leis, já que é a linguagem da ontologia. Em contraste, o discurso, ou o instante do dizer, é um passo político. O discurso em uma negociação, na confecção de um trato, pode ser contrastado com discursos vindos de outras partes. O discurso da negociação é um passo na direção do campo aberto da política. Os xamãs de Kopenawa possuem a capacidade de fazer tratos, de fazer discursos, ouvir discursos e fazer novos discursos – e esta capacidade, este saber-como, não pode ser expresso em um dito, que possa ser escrito, registrado e preservado sem o locutor e o ouvinte dos discursos. Eles falam com não-humanos, e o que eles falam não pode ser extraído da condição do dizer – como se abandona uma escada depois de subir por ela.

Em Entretien dans la montagne, Paul Celan coloca em foco o drama do contraste entre a linguagem do eu e do tu e a linguagem do isso – daquilo que não pode responder. Em um diálogo no alto da montanha, um interlocutor descreve o que se vê em termos de uma narrativa, de uma descrição explicativa de como cada parte se encadeia nas demais. E ele ajunta que tudo isso lhe é estrangeiro, e também estrangeiro ao interlocutor, já que a linguagem usada aqui não é feita nem para um eu e nem para um tu. O locutor se sente estrangeiro diante dos objetos da linguagem com quem ele não pode tratar. A linguagem da descrição é possível, mas ela não é recomendada, já que ela aliena os interlocutores. Os dois tipos de tratado estão em contraste aqui – o tratado que se baseia na descrição do alto da montanha e o tratado entre Eu e Tu. Os animismos insistem no campo aberto em que nenhum destes sentidos de tratado tem um objeto fixo especificado. Em um diálogo, no alto da montanha, a personagem de Celan fala:

Tu sabes. Tu sabes e tu vês: a terra está dobrada, aqui em cima, dobrada uma vez, duas vezes, três vezes, e está aberta no meio, e no meio se estende uma água, e a água é verde, e o verde é branco, e o branco vem de ainda mais acima, vem dos glaciares, nós podemos dizer, mas não devemos, já que esta é a linguagem que aparece aqui, o verde com o branco dentro, uma linguagem que não é feita nem para ti, nem para mim […] uma linguagem, bem, sim, sem Eu e sem Tu, nada senão Isso, comprendes, nada senão Eles, e somente isso.18

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