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An old paper still popular in Academia.edu


Heterosexuais, heteroraciais, heteroculturais: as colonizações das mulheres negras
Hilan Bensusan
Universidade de Brasília

Anche le donne hanno perso la guerra. Curzio Malaparte

A colonização é uma transação que se faz com a moeda das identidades. È um negócio que começa com a pergunta quem é quem. É um assunto que necessita credenciais apresentadas e credenciais distribuídas. (Por exemplo, em Lourenço Marques do início dos anos 70, uma faixa na frente da administração colonial informava: “Moçambique só é Moçambique porque é Portugal”). A colonização, que é freqüentemente associada ao silenciamento, à visibilidade relativa e à apropriação, é para nós ocidentais subalternos às voltas com o espólio das colonizações passadas e com a sombra das colonizações continuadas, é nossa metáfora mais corrente do assujeitamento. A colonização é nossa imagem mais ao alcance da mão para a situação em que uma identidade, um ego, uma fonte de vontade se expande ocupando um espaço de uma outra: ela aparece quando evocamos que pessoas negras ficam assujeitadas à cultura branca––são hospedeiras das maneiras brancas de pensar e agir––ou quando as mulheres são ocupadas pelos homens e assim rendem o controle de seus corpos e de seus destinos. As mulheres negras são o ponto de encontro de dois assujeitamentos centrais à maneira como nós vivemos. Se a posição das mulheres em uma sociedade arranjada em grande medida pelos desejos masculinos é de terra colonizada e a posição das pessoas negras em uma sociedade em que um negro pode declarar “agora estamos em uma democracia, todos somos brancos” é de terra invadida, que terra são as mulheres negras?

O discurso da contra-colonização é também freqüentemente articulado na moeda das identidades. O movimento de emancipação negra e o movimento de mulheres são muitas vezes guiados por uma identidade––e uma identidade compulsória e com um estereótipo na lapela. Alice Walker escreveu uma vez que a maioria dos homens brancos ou negros e das mulheres brancas não é capaz de compreender negritude e feminismo no mesmo corpo, para não dizer na mesma imaginação. Ela publicou esta observação em um livro de Gloria Hull, Patrícia Bell Scott e Bárbara Smith que recebeu o título- diagnóstico de “All the Women Are White, All the Blacks Are Men, But Some of Us Are Brave”. As mulheres negras não são apenas a sobreposição da colonização heterossexual com a colonização heteroracial; a identidade feminina negra é talvez um cruzamento de conseqüências das colonizações que forjam nossas identidades e as identidades de quem não somos. O mapa das identidades desenhado pela colonização e pelo movimento de contra-colonização colocou as mulheres negras em um redemoinho, pressionadas entre as duplas solidariedades compulsórias e as duplas subserviências inescapáveis. O diagnóstico do título do livro indica que as identidades obrigatórias estão longe de serem retratos de uma ordem natural: a matriz de exclusões e preponderâncias é uma articulação de nossas maneiras de determinar quem assujeita quem.
A história da colonização das mulheres negras é uma história de estupros. É uma história de sexo forçado, heterossexual, heteroracial, heterocultural que deixa a miscigenação como legado––uma história de relações sexuais promovendo o assujeitamento. As mulheres negras––ocupáveis por serem mulheres, avassaladas por serem negras––são freqüentemente associadas a animais sexuais sedutores, mas subjugáveis. O estupro, e a ameaça de estupro, é um instrumento da colonização das mulheres negras (e dos homens, que ficam a mercê dos desejos dos homens brancos por suas mães, esposas, filhas etc.). É a situação das mulheres escravizadas que estão à mercê de seus amos––como estão seus filhos e, também, os homens de sua comunidade. Angela Davis (1983) mostra como a imagem dos homens e das mulheres negras se transformou durante o processo da escravidão negra nos Estados Unidos. Os homens negros foram desprovidos pelos brancos do privilégio de assujeitarem suas mulheres como entenderem e, depois, reconstruídos como animais sexuais ativos para constituir o mito do estuprador negro. As mulheres negras tiveram que se adaptar à intimidação e ao abuso dos homens brancos e à indiferença das mulheres brancas que exibem uma imagem de feminilidade––e demandas de política sexual e emocional––em grande contraste com a situação das negras. O medo do estupro, e o estupro, é parte da colonização das mulheres––mulheres colonizadas são mulheres re-apossadas (Rubin, 1975).

Eu sou um homem branco em um departamento de filosofia, uma cultura em enorme medida branca e masculina. Fui treinado por anos no meu lugar de fala de homem, de branco, de filósofo. E, no entanto, adquiri em alguma parte o gosto de infiltrar e gostaria de ver a filosofia––e todos os jardins reclusos dos homens e dos brancos––infiltrados. Gostaria de propagar uma infiltração de mão dupla entre as afinidades que são compulsórias para o meu lugar de fala––minha identidade imposta––e minhas afinidades eletivas. As afinidades eletivas, vou querer dizer, são pelo menos uma mola na engrenagem que abre janelas. Gosto de pensar que as pessoas espiãs também estão expostas, também elas são colocadas em situações que não são as mais condescendentes com suas formas de ver as coisas. Algumas vezes, a pessoa espiã também fica infiltrada. Capitães que terminaram por encher Lisboa de cravos há mais de trinta anos atrás, homens como Ernesto Melo Antunes, começaram a estudar o movimento de libertação das colônias portuguesas em África para melhor dominá-lo à serviço do regime português e foram infiltrados por um desejo de destituir o regime. Infiltrar não é, em geral, uma tarefa fácil. Quanto melhor entendemos a vida das outras pessoas, mais preparadas estamos a deixar que suas motivações também nos conduzam.

Propus e ensinei em 2004 um curso sobre a escrita das mulheres negras. Em grande parte, o curso se tornou um curso sobre identidades em choque, políticas das diferenças e a colonização das mulheres negras. Foi em grande parte um curso sobre a política e o significado dos estupros. Me interessou ensinar este curso, que foi pensado para celebrar a introdução de quotas para pessoas negras nesta universidade, porque gostaria de ajudar uma infiltração intelectual dos temas, perspectivas e sotaques das mulheres negras no pensamento das pessoas que estão de alguma maneira em contato com a filosofia. Tenho esta afinidade eletiva com um caráter que aparece na forma da americana negra da qual fala Maya Angelou (1984):

A mulher negra é assaltada desde os anos mais tenros por todas as forças comuns da natureza ao mesmo tempo em que ela fica presa no fogo cruzado dos preconceitos masculinos, do ódio irracional branco e da falta de poder negro. O fato de que as americanas negras adultas tornam-se personagens formidáveis é freqüentemente tratado com surpresa, desgosto e até beligerância. Raramente é tratado como um resultado inevitável da batalha ganha pelos sobreviventes e que merece respeito senão aceitação entusiástica. (265, tradução minha)
No curso, procurei retirar da vala comum da literatura alguns textos de mulheres negras que pudessem se infiltrar nas maneiras de pensar insinuadas pela filosofia. Algumas valas comuns também têm suas vantagens. Na vala comum da literatura é onde aparecem os sub-processamentos dos sotaques do pensamento antes deles se cristalizarem em áreas, disciplinas ou funções; ali a forma emerge com o pensamento e o pensamento não precisa estar a serviço de completar lacunas (exibir uma prova, apresentar um argumento ou se contrapor a uma maneira de ver as coisas). Os textos das mulheres negras freqüentemente passam ao largo das categorias de identidade literária; ora são autobiografias, ora ensaios, ora relatos das vidas das personagens.

Escolhi “Advancing Luna––and Ida B. Wells” para dar o tom das discussões na sala. Trata-se de um texto sobre as solidariedades divididas das mulheres negras. Alice Walker ali apresenta Luna, uma militante do Movimento por direitos civis, uma branca infiltrada entre militantes negros no sul. Luna não deixa de ser branca em seu ativismo e é primeiro apresentada de uma forma neutra, como se fosse uma infiltração sobre a qual é difícil não ter uma opinião ambígua. Luna é diretamente feita branca quando se vê sentindo-se obrigada a silenciar o estupro que sofreu dentro do Movimento por um militante negro, Freddie Pye. O texto de Walker dá voltinhas em torno das encruzilhadas da narradora quando a solidariedade de gênero e a solidariedade de raça se cruzam; a narradora, negra, tem que responder ao que ela reconhece como duas afinidades compulsórias e termina escrevendo mais de um final. Ao terminar o seu primeiro relato do que se passou––quando ela conta que um dia vê Freddie Pye saindo do quarto de Luna, o que traz à tona todo tipo de questão sobre a veracidade do relato de estupro da ativista branca––ela escreve:

Esta é a “história”. Ela tem um final “não resolvido”. Talvez porque Freddie Pye e Luna ainda estejam vivos, como eu. Contudo, uma noite, enquanto conversava com um amigo, eu me escutei dizendo que eu havia, na verdade, escrito dois finais. Um, o que se segue, que eu considerava apropriado para tal história, publicada em um país verdadeiramente comprometido com a justiça, e o que está acima, que é o melhor que consigo oferecer a uma sociedade onde o linchamento ainda é preservado, pelo menos inconscientemente, como um meio de controle racial. (1987: 108)
E segue um outro final onde Luna e Pye conversam sobre o movimento negro depois de Pye afirmar não ter onde dormir e estar passando a noite sob o teto de Luna. Pye não trata do estupro mas Luna deixa claro que, em um país em que os negros são linchados por acusações sem provas de terem estuprado brancas, o ponto central da questão para ela é se ela deve mesmo––tal como ela fez––se calar diante do estupro. Walker apresenta várias saídas para a sua trama começada; e, até mesmo, conjectura outras. O texto, que escolhi como uma introdução que chamei de teórica às encruzilhadas que vamos encontrar no curso, deixa todos os grupos de pertinências com alguma coisa para morder e alguma coisa que dá vontade de cuspir. Luna é uma infiltração e é também uma personagem que é branca e é mulher e é ativista e tem assim suas afinidades compulsórias e suas afinidades eletivas––e muitas vezes estas coisas todas em conflito. Valerie Smith (1990: 167) analisa sua experiência ensinando “Advancing Luna”:

Para mim, dentro da sala de aula, estudantes devem ser capazes de desenvolver um vocabulário para falar sobre diferenças que são inicialmente a fonte dos silêncios. Talvez mais importante, eu esperaria que estudantes começassem a desenvolver um sentido de respeito por si mesmos como produtos individuais de experiências culturais e históricas discretas. Sem surpresas, no meu seminário não pude atingir nenhum destes objetivos. Apenas conseguimos representar a natureza frágil e fraudulenta das questões que nos dividem. A estória forçou estudantes a confrontar a circunstância de seu próprio corpo, as condições que os fazem diferentes. Talvez a confrontar também meu corpo. [...] a estória iluminou os silêncios sobre os quais nossos consensos são feitos. (tradução minha)
Na minha experiência, claramente as estudantes negras antipatizaram com Luna e tenderam a ter mais empatia com Pye. As estudantes brancas se identificaram mais com Luna; uma delas disse: como mulher branca, não posso deixar de acreditar no relato de estupro de Luna. Os estudantes homens––metade dos inscritos eram homens, mas 20% deles desistiram no início do curso––não falaram quase nada. Algumas mulheres brancas ativistas também desconfiavam de Luna: qual é a motivação desta mulher, ela realmente é parte do movimento negro ou ela apenas segue alguma moda dos anos ’60? Luna infiltrou, mas não era uma agente secreta dos brancos; feita mulher branca estuprada por um negro talvez para gritar, ela não gritou.

Entender Luna é entender quanto de uma sociedade onde o temor ao linchamento controla o movimento e a interação sexual das pessoas negras está presente em uma branca interagindo com pessoas negras. Angela Davis (1983) diagnostica quanto da sexualidade negra foi forjada nos episódios de intimidação por linchamento que se seguiram à guerra civil nos EUA––como documentou Ida B. Wells. Uma estudante propôs que discutíssemos um relato de um linchamento de um negro, “Eu, um homem correto” de Murilo de Carvalho onde um homem branco, motivado por uma professora branca que se senta em um ônibus perto de um homem negro, convence todas as pessoas brancas passageiras do ônibus a linchar o homem negro. Uma outra estudante propôs––uma vez que o texto de Walker apresenta um pós-escrito que especula sobre a trama e permite que as personagens escapem dela––que fossem escritos adendos ao texto em que as personagens pudessem também ter alguma sobrevida. Uma outra estudante escreveu o pós-escrito com a voz da professora branca que não foi abusada pelo negro, mas foi personagem da trama branca que o linchou. Ela fala do negro ao seu lado no ônibus e de como lhe faltam saídas––e como ela se torna passivamente parte da falta de saída dele. Este pós-escrito dá alguma voz a uma pré-Luna, alguém que está adquirindo as motivações para se infiltrar no movimento negro e que dificilmente estaria pronta a contundir a causa mesmo sendo estuprada por Pye.

Um fragmento de consenso começou a aparecer no horizonte quando discutimos “Coming Apart––By Way of Introduction to Lorde, Teish e Gardner”. Ali Alice relata a crise e a parcial reconciliação de um casal negro depois que a esposa faz contato com o uso que o marido faz de pornografia com mulheres brancas e negras. Trata-se de desconstruir a imagem que o marido negro tem de que basta que os negros tenham acesso ao corpo das mulheres brancas para que a igualdade racial esteja estabelecida. Esta crença na capacidade de redenção por meio da satisfação do desejo sexual masculino aparece também entre as personagens homens negros de Toni Morrison (1998) e de Carolina Maria de Jesus (1977). Neste fragmento de relato de Carolina Maria de Jesus, há um sumário de algumas mentalidades sexuais masculinas e negras que emergem quando a colonização parece entrar em seu lento declínio:

Cada um pegava sua enxada. Trabalhavam comentando:
–– Eu dormi com uma mulher branca.
O outro dizia:
–– Eu dormi com uma pretinha, e dei cinco mil-réis pra ela.
–– Eu dei dez para a branca
[...] E cada um dava a sua opinião.
–– Eu sempre falei que não haveria de morrer sem conhecer uma mulher branca.
–– Você vê como é que o mundo já está melhorando, nós os negros já podemos dormir com as mulheres brancas. É a igualdade que está chegando.

A esposa negra de “Coming Apart” gradualmente desconstrói a crença do marido na capacidade de libertação que a realização de seus desejos, nascidos e criados em uma sociedade de supremacia dos homens brancos, pode trazer. Paralelamente, o desejo do marido se transforma em um período que envolve uma breve separação:
Muito antes que ela volte, ele lê os seus livros e pensa sobre ela––e em sua luta sozinha e no medo que ele tem de comparti-la––e quando ela volta, é sessenta por cento o corpo dela que ele move na luz do sol, a própria carne negra dela confirmada pelo brilho dos olhos dele. (1987: 62) Ela consegue assim infiltrá-lo e transforma-lo gradativamente depois de mostrar como ela, uma mulher negra, está com as mulheres, vítimas do desejo pornográfico, e como ela também está com os negros, vítimas do terror do linchamento. E, encontrada esta posição, ela pode fazer com que sua luta seja por alguma coisa diferente––e esta coisa diferente é que infiltra nele, é que pode infiltrar em quem lê. De fato, “Coming Apart” dá a impressão de conciliar o que “Advancing Luna” separou: entre as visões de mundo dos negros e das mulheres há os estupros e os linchamentos, mas a origem da pornografia pode ser um elo entre ambas.

Este elo é atado no texto porque Alice Walker escreve desde um lugar de fala que se conhece como negro e que se conhece como tendo um ponto de vista das mulheres––“womanist”, ela cunhou. Algumas estudantes engajaram-se em uma comparação de uma voz como a de Walker––que neste sentido se assemelha com a voz de Maya Angelou––com a voz, menos identificável de Carolina Maria de Jesus. Carolina, para quase todo mundo na classe, aparece como uma voz mais nômade, em que os pontos de vista desfilam, mas não permanecem: ela não fala pelos favelados, pelas mulheres ou pelos negros. Ela freqüentemente fala contra todos estes grupos––e é uma voz peregrina, solitária. O nomadismo de Carolina––a sua subalternidade sem um programa de redenção––incomodou e encantou diferentes segmentos da sala de aula. Algumas pessoas expressaram terem pena, e não vontade de atuação política, ao ler Carolina: elas sentiam falta da voz da Alice Walker, tentando expressamente se orientar politicamente diante de suas personagens. Outras pessoas insistiam no caráter completamente outro de Bitita: é como se ela fosse a dobra das narrativas políticas, como se ela fosse a diferença que não quer ser alavanca para um projeto político, apenas focar no ponto cego, no ponto podre, da maneira como vivemos. A Bitita, e talvez a vida literária ou não de Carolina Maria de Jesus, aparece como a narradora de The Bluest Eye de Toni Morrison descreve a Pecola no fim do romance. Pecola ficou sendo

[t]odo o nosso lixo, que jogamos em cima dela e que ela absorveu. [...] Todos nós––todos os que a conheceram––nos sentíamos tão higiênicos depois de nos limparmos nela. Éramos tão bonitos quando montávamos em sua feiúra. A simplicidade dela nos condecorava, sua culpa nos santificava, sua dor nos fazia reluzir de saúde, seu acanhamento nos fazia pensar que tínhamos senso de humor. Sua dificuldade de expressão nos fazia acreditar que éramos eloqüentes. Sua pobreza nos mantinha generosos. Até seus devaneios usamos––para silenciar nossos próprios pesadelos. E nos deixou fazer isso e, portanto, mereceu nosso desprezo. Nela, afiamos o nosso ego, com a fragilidade dela reforçamos nosso caráter, e bocejávamos na fantasia de nossa força. (2003: 205-6)

Toni Morrison fala da narradora e de suas amigas, negras, mas que escaparam de ser a lata de lixo da comunidade observando Pecola. Morrison, no seu posfácio, declara que Pecola não é uma personagem típica ou representativa––ela é única (talvez como Carolina); mas ela é a conseqüência da comunidade que a construiu––e Toni Morrison, com muitas vozes, pretende investigar isto. Algumas das diferentes reações a Pecola––e talvez a Bitita, e a voz de Carolina Maria de Jesus––são reações que Toni Morrison, no seu posfácio, afirma que se esforçara por evitar. Ela diz que procurou narrar Pecola sem despertar pena e nem esmagar a personagem com o peso da investigação de sua vulnerabilidade. Ela queria––e pensa que não conseguiu––instigar. Porém a voz de Carolina Maria de Jesus não é uma personagem que pode ser narrada de várias maneiras: a comunidade de Pecola somos nós, a voz de Cláudia, a narradora de The Bluest Eye, é uma voz que nós podemos usar para falar de Carolina e do lixo. Seu lugar de fala é nômade e nos escapa porque mulheres negras como ela exercem muitas vezes o papel de lixo emocional que Morrison denuncia com sua Pecola. Ter uma lata de lixo é confortável––e uma tradição que escreve sobre mulheres negras, que envolve, por exemplo, a voz de Maya Angelou, tenta celebrar este conforto que as mulheres negras são capazes de produzir––mas este conforto que não é recíproco tem conseqüências. Pecola preferia ser uma aberração: ter olhos azuis com sua pela negra. Carolina quis ser a aberração escrevendo sobre ela e sobre a Bitita. Ambas foram deixadas de lado.

Ana Cristina Chiara contrasta a figura de Carolina com a do filósofo branco e europeu Deleuze. Ela escreve para Deleuze como ela se encontra confinada em uma redoma de vidro com os dois e Carolina cresce, ocupa mais espaço:

O corpo da negra é sustentado por uma vontade férrea. Carolina quer que você a veja com o olho de seu estômago francês, quer que seu olho satisfeito se perca no buraco da fome, na cloaca que dói sem parar. [...] Carolina está sempre com dor de estômago, nervosa e em falta. O povo que falta, conforme você gosta de falar, excede em Carolina. Ela é um excesso histérico perturbando a calma e luxuosa impassibilidade francesa. Excede porque é excessiva a fome, porque é excessiva a degradação das condições da vida que leva, porque também tem excessiva imaginação e capacidade de se virar catando, no monturo do Lixão, comida e literatura. [...] Carolina é exótica, mas não admite que v. a ponha de quatro no Jardim Zoológico da literatura menor, junto ao Kafka e as suas complicações com o pai. [...] Ela quer a Língua Portuguesa da Academia de Letras, quer o fardão de ouro e o poder, quer o seu poder. Não deseja o gueto da resistência, quer a potência máxima dos marimbondos de fogo, se é que você pode entender. (2002: 3)

Uma estudante negra disse que entendia a atitude de Carolina: ela queria escrever como aprendeu que era bonito, ela queria participar do clube que ela aprendeu que era o clube dos bons: o cânone. O gueto da resistência não é para ela um destino, sua voz não é de resistência, não é um projeto político. É uma voz de quem não tem espaço, é uma voz pré-política. Outras estudantes queriam dar de ombros ao cânone; elas queriam que Carolina estivesse em seu gueto de resistência. Mas o discurso do gueto de resistência periga esmagar quem quer apenas ser aceita: quem quer os olhos azuis. Agora, quem vai dizer a Pecola que seus olhos sonhados, os mais azuis, são parte de um sonho errado? O peso da investigação pode esmagar a voz da Bitita, os olhos azuis sonhados da Pecola. Morrison adverte: o que podemos fazer, nós leitores e nós co-personagens, é não resistir a sermos instigados.

A tentação de colocar alguma voz no Jardim Zoológico do exotismo é a tentação de encontrar uma maneira de não ouvi-la com todos os nossos ouvidos. O exotismo––ou o discurso que olha de cima como olhamos os animais em cativeiro––pode ser uma forma de racismo que pertence ao mesmo arsenal de atitudes mentais que Toni Morrison diz que queria evitar no seu posfácio ao The Bluest Eye:
Eu não queria que o leitor tivesse tempo para pensar: “O que é que eu tenho que fazer, do que tenho que abrir mão para ler isto? De que defesa preciso, que distância manter?” (2003: 213)
Existe um grande número de graus de envolvimento que as pessoas podem ter com um texto literário; e, uma estratégia para mantê-lo à distância––pô-lo longe do que estamos dispostos a tomar como verdade acerca de nós––, é o exotismo. No relato de Paulina Chiziane, em Niketche, leitores podem tomar Toni e suas muitas mulheres como um exemplar do exótico macho africano e ver confirmados os mitos sobre a sexualidade dos homens negros denunciados por Angela Davis (1983). Toni Morrison procura evitar o exotismo no olhar branco para Cholly––o pai negro de Pecola que a estuprou¬¬––tentando contar como ele chegou à situação de não saber lidar com o afeto de Pecola por ele sem estuprá-la. A infância emocionalmente confusa e insegura é contada e segue-se o episódio em que ele é humilhado por caçadores brancos quando, bastante jovem, está fazendo amor com Darlene em uma relva: ele passa a odiar Darlene porque lhe parece fácil direcionar sua raiva aos homens brancos: o ódio aos homens brancos

[...] o teriam destruído. Eram homens brancos, grandes, armados. Ele era pequeno, negro, indefeso. Seu subconsciente sabia o que seu consciente não adivinhava––que odiá-los o teria consumido, queimado como um pedaço de carvão macio, deixando apenas flocos de cinza e um ponto de interrogação de fumaça. (2003: 151)

A misoginia––e a conseqüente dificuldade em estabelecer laços afetivos com as mulheres como com sua filha Pecola––se originou da humilhação que ele sofreu pelos brancos: uma espécie de “estupro” como Toni Morrison ela mesma descreve no posfácio. Cholly não pode ser simplesmente perverso, ensandecido ou uma aberração negra: sua origem, bem como a origem de sua filha Pecola, é traçada desde as práticas de uma comunidade de supremacia branca e masculina. Um respeito que as narrativas precisam ter com as personagens pode requerer que elas negociem com leitores que tenham o mito do estuprador negro na cabeça. Paulina Chiziane, em Niketche, corre o risco de fazer sua personagem masculina moçambicana aparecer às sociedades como a sociedade brasileira apenas como um caso (exótico) de perversão. Mas os romances são situados, eles só podem negociar com as forças que quem os escreve reconhece ou identifica. O homem negro incontrolavelmente polígamo não aparece nunca como uma peça exótica no Moçambique de Chiziane.

Ela apresenta uma saga de uma mulher moçambicana em um processo de empoderamento e de descoberta das vantagens da solidariedade feminina através da reabilitação da poligamia tradicional. O romance examina como a poligamia institucionalizada, traz vantagens para as mulheres em comparação com a monogamia oficial que deixa aos homens a possibilidade de terem amantes sem nenhuma responsabilidade para com elas e sem nenhum direito de fato garantido à esposa. Rami, a esposa oficial de Toni, começa conhecendo as quatro amantes do marido e se encontrando com elas. Depois, elas tornam pública a relação delas com Toni, o constrangem a toma-las como esposas polígamas, a aceitar um conselho de família poligâmica, a aceitar um rodízio de casas controlado pelo calendário, começam a influir sobre a se queixar que Toni tenta furar o cerco e encontrar uma amante além das cinco. Toni termina enfraquecido e suas cinco mulheres independentes e poderosas. Rami consegue fazer uso dos recursos da tradição contra a supremacia masculina––ela consegue poder oscilar entre as instituições patriarcais coloniais e as instituições patriarcais tradicionais para conseguir um estado de coisas que lhe conceda mais poder. Rami, negra e africana, dispõe de recursos que outras mulheres não dispõem: ela faz uso destes recursos. Parece também que ela não tem um plano de vôo para embarcar na saga, mas no processo ela se reconstrói e desvela como Toni depende de suas conquistas. A saga de Rami mostra como a conquista da autonomia requer uma renegociação com as instituições vigentes; trata-se de conquistar a posição de negociadora. As mulheres de Toni começam a protagonizar seu casamento quando deixam de ser a lata de lixo emocional na qual Toni despeja aquilo que bem entende quando bem entende. Ele, monógamo oficial e polígamo sorrateiro, tinha o poder de negociar sozinho quando vigia a tradição e quando vigia a palavra do colonizador––ele controlava a dialética da colonização. Rami, esposa oficial e promotora da poligamia, toma estas rédeas de sua mão. Ela torna a vida pessoal de Toni uma esfera de negociação pública em uma arena política de uma família poligâmica. Ela amplia o escopo do que é negociável.
Este foi o meu desejo com o curso sobre a escrita das mulheres negras em um departamento de filosofia: ampliar o escopo do que elegemos para nossas afinidades. Penso que podemos fazer muitos trabalhos intelectuais a margem de compromissos com grupos de identidade compulsória forjados em algum esquema de colonização. Trato de enxergar modos de exorcizar este legado colonial. Não suponho, portanto, que estejamos definitivamente sob a égide das identidades e seus mapas forjados na colonização. Acredito que nossa melhor aposta contra as identidades compulsórias sejam afinidades eletivas––causas escolhidas para a mobilização. Porém os textos das mulheres negras que trazem (suave ou fortemente) o legado da subjugação colonial trazem vozes, vozes que ficam facilmente sem eco nos corredores de departamentos das universidades––vozes que são vozes mesmo desconectadas de qualquer grupo de identidade que consigamos exorcizar. Sem as vozes que vem do espólio em forma de redemoinho que as colonizações produzem, qualquer afinidade fica sendo apenas muito limitadamente eletiva.



Referências:
Angelou, M. (1984) I know why the caged bird sings. Virago.
Chiara, A. C. (2002) “Quem trabalha como eu tem de feder". In: Anais Virtuais do VIII Congresso Internacional Abralic Mediações.
Chiziane, P. Niketche. Companhia das Letras.
Davis, A. (1983) “Rape, racism and the myth of the black rapist”. On: Women, Race and Class, 172-201, Vintage.
Morrison, T. (1998) Sula. Vintage
(2003) O olho mais azul. Companhia das Letras
Smith, V. (1990) “Split affinities: the case of interracial rape”. In: Conflicts in Feminism, Marianne Hirsch, Evelyn Fox Keller (eds.), 271-287. Routledge.
Walker, A. (1987) Ninguém segura esta mulher. Marco Zero.
Jesus, C.M. (1977) Diário de Bitita. Nova Fronteira.
Rubin, Gayle. (1975) Traffic in Women. Notes on “Political Economy” of sex. In: REITER, Rayna (ed.) Toward an Anthropology of Women. New York: Monthly Review Press.

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