Texto para a chamada da ECOPOS sobre realismo especulativo (primeira versão):
O realismo especulativo e a metafísica dos outros
1. O realismo especulativo e a metafísica da subjetividade
O realismo especulativo nasceu de um desconforto. Ou, pelo menos de um desconforto percebido. Desconfortos (percebidos), em filosofia, produzem agendas, dão prioridade a certas questões ou maneiras de apresentá-las e apresentam, ou insinuam, uma história, por vezes épica, do tempo recente que passou. O desconforto do realismo especulativo é com um estado de coisas em que a impossibilidade de que possamos ter acesso por pensamento ou conhecimento de alguma coisa para além da nossa correlação com elas – para além do modo como elas se apresentam à nós. Trata-se de um desconforto (percebido) que é facilmente dividido em dois: o desconforto com a falta de tentativas de ultrapassar a correlação e o desconforto com o caráter central atribuído à algo tão demasiado humano como a correlação. Este duplo desconforto é também um desconforto com uma época histórica que cobriria mais ou menos os últimos dois séculos: a era do correlato. Assim, o realismo especulativo extrai de seu desconforto uma agenda, uma questão principal e uma história épica: a agenda de superar a era do correlato, a questão principal de como fazê-lo e uma história de estradas bloqueadas que agora se abrem aos intrépidos.
O realismo especulativo foi uma confluência de filosofias pautado por este desconforto. Quentin Meillassoux o exprimiu em sua cartografia da era do correlato e sua proposta de ultrapassá-la.1 Ele atribuiu à Kant a elaboração do correlacionismo fraco – a tese de que podemos pensar mais não conhecer para além da correlação. Meillassoux também entendeu que a partir deste orbital outras três posições se articularam durante a era do correlato: o correlacionismo forte – que estende a impossibilidade de acesso para além do conhecimento e afirma que é impossível pensar para além da correlação; a metafísica da objetividade – que rejeita por inteiro a crítica de Kant à possibilidade de conhecer algo para além da correlação e, finalmente e a metafísica da subjetividade – que de alguma maneira entende a correlação como sendo ela mesma absoluta e tudo o que é possível conhecer uma vez que é de correlação que a realidade é feita. As três posições são insuficientes para uma saída da era do correlato – e, além disso, não respondem adequadamente aos problemas com os quais a posição de Kant procurou lidar. Meillassoux entende que Kant tornou explícita não apenas a inevitabilidade de lidarmos com a correlação quando tentamos aceder à realidades de algum modo independentes de nós como também o caráter contingente de nossa prisão em suas amarras. Ultrapassar a era do correlato significa, para Meillassoux, algo diferente de negar as premissas do correlacionismo fraco ou intensificá-las em direção a um correlacionismo forte. É preciso encontrar um modo de aprender as lições de Kant e, ainda assim, ir para além do que o correlacionismo que ele inaugurou permite. Aprender as duas lições significa levar em conta a correlação como um fato incontornável acerca de nosso acesso ao mundo e entender que este fato não é senão a expressão de uma facticidade, de uma contingência – não é em si mesmo absoluta e nada de estrutural acerca do mundo tem como consequência que não acedamos senão correlações.
A metafísica da subjetividade pode parecer a melhor candidata para esta superação – que de fato é como uma Aufhebung hegeliana já que se trata tanto de deixar para trás quanto de assimilar. Quanto ao desconforto (percebido) duplo, ela responderia também de modo duplo. Primeiro, para além das correlação não há nada além de (outras) correlações já que é preciso ter em mente que a correlação não é apenas uma amarra ou um empecilho mas é também uma aquilo que torna o mundo cognoscível ou pensável como uma mediação entre dois pólos muito distintos. Segundo, ela observaria que as correlações não são nossas, nós é que estamos às voltas com ela quando nos engajamos em conhecimento ou em pensamento. A metafísica da subjetividade de alguma maneira entende a subjetividade ela mesma como uma alavanca para uma saída do impasse do correlacionismo – ou porque a subjetividade é reveladora ou porque ela é um conveniente ponto de partida.
Meillassoux encontra a metafísica da subjetividade em filósofos distintos como Hegel e os hegelianos de um lado e Bergson e Whitehead e aqueles influenciados por eles como Deleuze e Latour de outro.2 A distinção entre estes dois grupos aponta para uma distinção entre duas maneiras bastante diferentes de entender a metafísica da subjetividade. De acordo com a primeira, a correlação é uma e tem uma estrutura própria associada às capacidades conceituais; ela é aquilo que torna o acesso possível e os dois pólos que ela media nem sequer podem ser concebidos senão por meio da correlação – a correlação é uma espécie de mediação instauradora. De acordo com a segunda, a correlação é múltipla e tem uma estrutura comum associada às capacidades perceptivas em geral (ou mesmo às capacidades afetivas em geral); ela é da estrutura da experiência e não há mesmo nada além de qualquer das correlações já que elas são tanto humanas quanto extra-humanas e estão por toda parte.
Em ambos os casos, a correlação é objeto de um procedimento especulativo. A especulação parte de um fenómeno já conhecido e o ultrapassa tomando-o como um exemplo; ou seja, encontrando no fenómeno conhecido algo que pode ser projetado para outras partes, para outros fenómenos. Trata-se de um procedimento de generalização a partir do conhecido, como se o fenómeno de partida servisse como um instrutor para lançar a vista para além do que é conhecido. Whitehead compara a especulação com um voo de avião que pode subir alto e permitir que se veja muito ou apenas sobrevoar o aeroporto a depender do fenómeno de base, que ele entende como a pista de decolagem do voo.3 No caso das metafísicas da subjetividade, o fenómeno conhecido é a correlação e ele é tomado como exemplo de qualquer contato entre uma subjetividade e qualquer outra coisa. Uma metafísica da subjetividade hegeliana – chamemos de metafísica da subjetividade do primeiro tipo - entende que a correlação revela algo sobre a mediação que é ela mesma absoluta, o engajamento com conceitos sem o qual nada pode estar nem sequer em princípio presente. Por outro lado, uma metafísica da subjetividade begsoniana ou whiteheadiana – metafísica da subjetividade do segundo tipo –,entende a nossa correlação como um exemplo que revela como são as coisas em geral; por toda parte há correlações e nada para além delas. Em ambos os casos, a correlação não é mais um véu que poderia ser retirado mas aquilo mesmo que há para se ter acesso – não há nada além da correlação. Nem árvore-em-si, nem oceano-em-si, apenas árvore-para-nós e oceano-para-nós o que no primeiro tipo de metafísica da subjetividade é entendido como árvore-para-os-conceitos e oceano-para-os-conceitos e no segundo é acompanhado também de árvore-para-oceano e oceano-para-árvore.
Porém as metafísicas da subjetividade dos dois tipos falham em levar em conta a segunda lição de Kant, segundo Meillassoux. Ainda que elas levem em conta que a correlação é um fato central do nosso acesso ao mundo – e de fato a tomam como ponto de partida de um procedimento especulativo – elas a tornam absolutas e portanto desconsideram seu caráter contingente e deixam de atender à facticidade da correlação. Para Meillassoux, a falha das metafísicas da subjetividade em assimilar a facticidade da correlação é instrutiva. A facticidade aponta para a fissura entre aquilo que é e aquilo que aparece – o aparecer de alguma coisa não é intimamente ligado ao que a coisa é, há a possibilidade dela ser completamente outra com respeito ao modo como ela aparece. A falha em levar em conta a facticidade da correlação é uma aposta na transparência do mundo – na sua transparência em termos de uma acessibilidade aos conceitos na forma da mediação que é ela mesma absoluta ou em termos de uma rejeição da distinção entre a natureza das coisas e a experiência que algo tem delas. Ou seja, ou porque a mediação é transparente ou porque um princípio como a bifurcação entre experiência e natureza diagnosticado e exorcizado por Whitehead deve ser deixado de lado.4 Em outras palavras, aquilo que as metafísicas da subjetividade deixam de considerar é a ocultação da realidade – há nela algo que não se mostra, que se esconde, que inclina-se ao velamento. A facticidade da correlação aponta precisamente para a ocultação: a realidade não e transparente, não se mostra na nossa correlação e nem sequer em correlação alguma. Há algo de recôndito que constitui o que é real; a realidade guarda um elemento de resistência ao aparecimento, de contraste com as aparências, de velamento já que o que ela mostra em correlações não tem nada de necessário. As metafísicas da subjetividade consideram ou que a mediação uma vez entendida como constitutiva não oculta nada ou que aquilo que uma correlação oculta é acessível a alguma outra já que não há nenhum resíduo de realidade para além das correlações. Os dois tipos de metafísica da subjetividade parecem estar comprometidas com a transparência da realidade, ainda que não endossem que a realidade pode aparecer a um sujeito de uma vez por todas. Essa transparência, assinala Meillassoux, decorre da rejeição da facticidade da correlação.
2. Facticidade e ocultação
Em contraste, Meillassoux quer encontrar um modo de alcançar algum absoluto que se distingue da correlação, que está para além dela. O que está para além do para-nós é talvez o que é em-si; ou o que é para-os-outros e, supostamente, em todos os casos, o que é sem-nós. O sem-nós é entendido muitas vezes como o para-ninguém, ou mesmo como o para-nada. Rejeitar as metafísicas da subjetividade implica em não considerar o sem-nós como sendo para-alguém (ou para-outros). O para-nada ou para-ninguém é o oculto, o que está para além das aparências, de qualquer aparência. Meillassoux procura este para-nada precisamente na relação entre ocultação e facticidade e considera que o absoluto é precisamente aquilo que torna a ocultação possível, a facticidade. Em outras palavras, o absoluto é inaugurado pela capacidade da realidade de eludir as aparências, pela sua capacidade de ser qualquer coisa – ou seja pelo caráter contingente de tudo. Se Meillassoux entende que as metafísicas da subjetividade postulam o absoluto no que é contingente, sua recomendação é que se encontre o absoluto na contingência ela mesma. As metafísicas da subjetividade são perspicazes em procurar o absoluto onde a era do correlato encontra o seu foco, mas incorrem no erro de pensar encontrá-lo onde não pode haver senão contingências. O absoluto não pode estar no que é contingente; e eis que Meillassoux procura encontrá-lo precisamente na ubiquidade da contingência. E é esta ubiquidade que permite que haja um elemento oculto em tudo o que é já que a contingência como princípio fundamental – o princípio que Meillassoux considera absoluto é o princípio da facticidade – garante que a transparência não pode revelar nada de necessário acerca da realidade. Dito de outra forma, a contingência é uma pedra no sapato da transparência da realidade já que ela deixa claro que há uma capacidade de ser outro inscrita em tudo que transparece.
Eis a trama que Meillassoux apresenta: correlação contra absoluto. Há que haver uma distinção entre os dois e temos que encontrar um modo de ultrapassar a correlação em direção ao absoluto. É certo que, para Meillassoux, não basta que multipliquemos as vias de acesso de modo, digamos, que possamos estar às voltas com a correlação em uma delas e aceder ao absoluto em outra – como por exemplo recomenda a própria tradição kantiana que veda o absoluto ao âmbito do conhecimento teórico mas concebe o acesso à ele por uma via prática. É preciso que a correlação seja ultrapassada em um âmbito teórico, temático, enquanto genuíno objeto do conhecimento. Ultrapassar a correlação também deve ser ultrapassar qualquer correlação – não apenas ir para além daquela em que estamos, mas ir para além de qualquer outra. O absoluto não é, portanto, apenas o não-humano, é o não-correlativo, é o que subsiste por si mesmo. Aquilo que subsiste por si mesmo é o princípio da facticidade que torna possível que a transparência seja enganosa – e que a realidade tenha algo de oculto. O oculto aponta para o absoluto. O salto especulativo de Meillassoux é da ocultação da correlação através da facticidade para a facticidade em geral – é o contingente na correlação que é o fenómeno que serve como ponto de partida. A correlação é um exemplo do elo central entre realidade e contingência, um elo que faz com que tudo possa ser outro e que o que existe não tenha transparência.
Meillassoux entende assim que a contingência forma um princípio que transcende a tudo o mais, e é por isso que o princípio da facticidade de todas as coisas pode ser um genuíno absoluto. A independência que Meillassoux almeja para o absoluto requer também neutralidade; ele é para-ninguém (ou para-nada). A neutralidade aponta em direção ao infinito: o que é absoluto não depende de ponto de vista, de perspectiva ou de nenhuma limitação. Porém se trata de uma ilimitação ou de uma indelimitação que está na vizinhança de uma totalidade que pode ser um tema do pensamento teórico. Uma metafísica indiferente aos desafios da era do correlato – que pode ser chamada de metafísica da objetividade – almeja oferecer uma imagem do mundo que seja pensável e absoluta e neutra e total. Analogamente, uma metafísica da subjetividade oferece uma imagem do mundo pensável em termos de correlações, neutra com respeito a cada uma delas – se houver mais de uma digna de ser considerada como é o caso do segundo tipo de metafísica da subjetividade – e total já que nada além das correlações têm lugar. O princípio de facticidade de Meillassoux, por sua vez, também é neutro e total: tudo está submetido à contingência. Graham Harman, em seu livro sobre Meillassoux, afirma que enquanto Meillassoux rejeita a) a finitude do conhecimento e sua incapacidade de capturar a realidade, ele afirma b) a centralidade da relação entre o humano e o resto do mundo já que é apenas a partir da tematização possível com a correlação humana que o princípio da facticidade pode ser formulado. Em contraste, como veremos, Harman afirma que ele próprio intenta precisamente rejeitar a segunda e afirmar a primeira.
A era do correlato é caracterizada por Meillassoux como a era da finitude. O acesso à realidade é limitado pela correlação. A finitude é entendida como uma renúncia à totalidade – à totalidade que é alheia às correlações já que neutra com respeito a cada uma delas. O avesso da finitude é uma imagem total da realidade, uma imagem em que tudo o que existe fica disponível a uma contemplação especulativa. Sem finitude, a especulação pode atingir o todo, pode prover uma visão de terceira pessoa – e a terceira pessoa é alguém que não está de modo algum envolvido em nenhuma situação – que é como uma visão de parte alguma, um ponto de vista sem ponto, uma fresta desde o Grande Fora. Uma tal visão total não é uma visão desde cima, nem desde dentro e nem mesmo desde fora – é de fato uma visão desde fora do fora. Para esta transcendente terceira pessoa, não haveria nenhuma assimetria, todas as coisas se relacionariam com ela do mesmo modo já que ela não estaria mais perto de nada, não seria mais íntima de nada, não teria maior responsabilidade com nada – aliás não teria responsabilidade nenhuma como o Deus de Leibniz não tem compromisso com a existência de nenhuma mônada em particular quando escolhe uma dentre as infinitas classes de mônadas (ao escolher criar um mundo).5 A visão transcendente é similar àquela que Heidegger diagnostica em suas conferências de Bremen6 como o produto da gradativa substituição do mundo onde há proximidade (Nähe) por um Ge-Stell (um dispositivo, uma posicionalidade, uma cartografia) que aponta para uma exposição total.
Para Meillassoux, a totalidade é a resposta adequada à finitude – ainda que a totalidade seja a do princípio de facticidade, princípio absoluto. A totalidade é o que a especulação permite ver e talvez aqui haja um elo entre o método especulativo e o esforço pela totalidade. Há uma totalidade acessível à especulação porque a especulação procede por passos especulares, por meio de espelhos – ela projeta alguma medida de mais do mesmo. Ela projeta o que ela já viu no que ela não viu – ou no que não pode ver. Há nela um elemento de indução enumerativa: chegamos à totalidade por meio de uma projeção do que já foi visto. Por esse meio, ela procura alcançar uma imagem o mais ampla possível – e por meio dessa busca de totalidade é que o absoluto pode ser alcançado, pelo menos para Meillassoux. A totalidade que a especulação propicia é análoga àquela que faz ver o todo a partir de uma amostra reveladora postulando que é melhor supor semelhanças relevantes do que antever distinções ou supor a diferença. Meillassoux faz uso da especulação já que ela aponta para a totalidade, em seu caso a partir da capacidade de ser outro que a facticidade da correlação apresenta para a facticidade de toda coisa. A totalidade que seu princípio da facticidade faz alcançar é, para Meillassoux, um antídoto para a finitude já que ele revela alguma coisa para além da correlação e pensado desde a correlação. Não estamos mais confinados à correlação, não estamos mais na finitude do correlato, mas alcançamos o direito de espreitar o absoluto para além dela, o absoluto que ela mesma nos ajuda a revelar.
No entanto, o procedimento especulativo pode ser cego para a possibilidade de que é a exterioridade e não a totalidade que é o avesso da finitude. E o realismo especulativo pode ter sido vítima de seu desconforto percebido ao deixar de lado o receio de uma visão total da realidade. Emmanuel Levinas, em parte inspirado por Jean Wahl, apresentou uma defesa da exterioridade contra a totalidade.7 Aquilo que nos confina em nós mesmos – por exemplo na forma de um correlacionismo – seria para Levinas não uma ausência de totalidade mas precisamente uma neutralização do que é exterior. Assim, ele oferece elementos para uma crítica à conexão entre o tipo de totalidade que a especulação pode prover – e que revela algumas dimensões importantes de qualquer totalidade – e a rejeição da finitude. Ele entende que a projeção de mais do mesmo não pode alcançar um genuíno infinito e pode, no máximo, neutralizar aquilo que é diferente do seu ponto de partida. Entendendo o infinito como ele pensa que Descartes concebia – como trazendo à baila uma não-delimitação, uma indefinição que talvez seja impossível ao infinito atual – ele entende que a totalidade é precisamente o que impede a abertura ao infinito, e que uma totalidade que projeta o mesmo não pode ser mais do que uma finitude multiplicada onde a assimetria é minimizada em nome de relações especulares. Levinas inaugurou uma maneira de pensar segundo a qual a totalidade se contrasta com a exterioridade. A totalidade é feita de complementos – e de variações do mesmo, de reflexos especulares – e é precisamente incompatível com qualquer suplemento, aquilo que não atende a uma lacuna ou a um espaço deixado em branco. O suplemento é o que impede a finitude. Se há um elemento exterior na realidade – um elemento que se pode encontrar sem antever – ela não pode caber numa totalidade, e em particular numa totalidade alcançada por uma especulação a partir do já conhecido. Se é assim, depois da finitude talvez não haja totalidade. E a saída da era do correlato seja talvez postular que no mundo mesmo haja incognoscíveis – e que o conhecimento tenha que ser em alguma medida limitado ainda que não seja finito e precisamente por não sê-lo.
O contraste entre totalidade e exterioridade aponta ele mesmo para a ocultação. Há um sentido de parentesco entre totalidade e transparência se a primeira é entendida como uma exposição, pelo menos em princípio, como indica a imagem da Ge-Stell de Heidegger na qual não há mais espaço para qualquer retirada, para qualquer velamento já que o controle da exposição é daquilo que dispõe da coisa como objeto. Meillassoux tenta exorcizar a transparência das metafísicas da subjetividade por meio da atenção à contingência que torna possível a ocultação. E, no entanto, ao apresentar a facticidade como sendo ela mesma absoluta e compondo um princípio cujo escopo é total, ele termina como que postulando que tudo é transparente à contingência. Há uma imagem total que substituiria a finitude da era do correlato, mas por ser total é que ela talvez seja precisamente incapaz de alcançar o infinito da exterioridade. A contingência de todas as coisas é uma visão de parte alguma que dilui o exterior e o interior em uma totalidade. Não há um outro exterior a contingência; ninguém nem Deus poderia exorcizar o princípio da facticidade. (Meillassoux advoga que a inexistência de Deus é contingente e, assim, Deus pode vir a existir a qualquer momento, porém não pode revogar a facticidade de todas as coisas que transcende a tudo e engloba qualquer realidade.) Tudo pode ser outro e esta contingência transcende qualquer distinção entre o que é interior e o que é exterior. Se é a exterioridade – e, de fato, a preocupação com o mundo exterior parece ser parte do desconforto que impulsionou o realismo especulativo – que contrasta com a finitude, é a própria finitude que termina ganhando o jogo na forma da totalidade. Vemos para além de nossa correlação mas ao mesmo tempo exorcizamos a possibilidade de um outro exterior a uma totalidade alcançada a partir de nossa ponto de partida.
3. Orientação a objetos
A ontologia orientada a objetos de Harman tem como ponto de partida precisamente a ocultação. Seu esforço especulativo começa com Heidegger em sua distinção entre objetos para o conhecimento ou o pensamento – Gegenstanden – e coisas, que ora aparecem e ora se recolhem, se escondem.8 As coisas se mostram apenas quando lhes convêm – elas atendem à si próprias quando se mostram e quando preferem se retirar. Heidegger enfatizava que mostrar é um elemento tão importante para alcançar a realidade quanto conhecer, pensar ou procurar ter um acesso. E é a partir da distinção entre as coisas mostradas e os objetos sempre expostos que Harman constrói sua orientação aos objetos. A partir da importância da ocultação, o esforço de Harman é o de rejeitar a centralidade da correlação humana postulando que todo acesso a qualquer objeto é limitado. Os objetos trazem em si um elemento sensual – exposto como um Gegenstand – mas também um elemento real recôndito, secreto – como a coisa de Heidegger. Sua ontologia orientada a objetos pretende um conhecimento de objetos que contém um elemento real e inacessível. O objeto real inacessível é comum à interface humana com qualquer objeto e à interface de qualquer objeto com qualquer outro. É da natureza do objeto ter uma estrutura quadrupla que inclui qualidades reais, qualidades sensuais que se dão ao contato, o objeto sensual que pode ser figurado e o objeto real em retirada. O objeto real é constituinte de qualquer objeto no mundo porém não é o que se dá a uma relação sensível – não é um Gegenstand à ser alcançado pela sensibilidade. Trata-se do anestético no estético, do inacessível à sensibilidade de qualquer objeto disponível no sensível. O objeto real indica o elemento numênico ou em-si de qualquer objeto, aquilo que se retira durante uma interação com qualquer outro objeto. Porque não se pode aceder ao objeto real, há uma limitação, uma finitude no que se pode capturar da realidade.
A ontologia orientada a objetos de Harman rejeita o caráter sui generis da limitação do conhecimento humano postulando que em qualquer contato entre objetos há mediação, é sempre o elemento sensual (objeto sensual e qualidades sensuais) que entra toca um outro objeto em seus elementos sensuais. Nenhum objeto é esgotado pelas relações que outros objetos mantêm com ele. Há um elemento na ontologia orientada a objetos de Harman que se assemelha às metafísicas da subjetividade (do segundo tipo): há correlação por toda parte. Porém há uma diferença importante, a ocultação – há algo para além da correlação, há uma vida secreta dos objetos. Há precisamente um além em cada objeto, ainda que em uma estrutura quádrupla comum. O acesso aos objetos é sempre limitada, finita e em cada um deles há um resíduo – o objeto real – que não se mostra, que resiste. A finitude do acesso é, ela mesma, generalizada; tudo o que há tem a capacidade de se retirar, de estar oculto, de estar velado.
Harman parte da ocultação – e não da transparência – em direção a uma totalidade de objetos em uma estrutura quádrupla comum que envolve o objeto real que não se mostra a qualquer contato. É como se a ocultação fizesse parte da totalidade – e não da exterioridade. Com Harman podemos alcançar uma visão de parte alguma – uma visão de totalidade – em que os objetos em sua estrutura quádrupla se mostram e se retiram. Há uma totalidade (especulativa) onde há lugar para o que está à mostra de outros objetos e também o que está retirado – ainda que nessa totalidade não possamos aceder ao objeto real de cada objeto com a estrutura quádrupla. Para Harman, o objeto em sua estrutura que contém o objeto real é um termo neutro, que se aplica a tudo o que há. Objetos constituem aquilo que existe porém não são apenas esses constituintes, há algo que fica fora de cena, cada um tem uma vida secreta. O segredo é distinto e velado em cada caso, mas a estrutura geral do segredo é neutra e pode ser pensada independente do que cada segredo esconde. A estrutura quádrupla é a estrutura da retirada, do segredo que está por toda parte – não é apenas o conhecimento humano que esbarra em segredos dos outros objetos, por toda parta há mais deste mesmo. A orientação aos objetos de Harman se dá precisamente na incapacidade da totalidade de dar conta dos objetos – cada um deles tem um segredo que faz os indiscerníveis não serem necessariamente idênticos.
No entanto, trata-se de uma totalidade que se alcança e que aparece também como decorrência de um procedimento especulativo: se os objetos do meu conhecimento (e do meu pensamento) se escondem, esta vida secreta, esta retirada, pode ser ela mesma tomada como ponto de partida para um procedimento especulativo que me permita concluir que tudo se mostra e se retira, que há em todo objeto um objeto real recôndito e, assim, um segredo que resiste a qualquer correlação. Peter Gratton observa que a importância de Levinas para a ontologia orientada a objetos de Harman é talvez maior do que a de Heidegger.9 Numa leitura assim, o recôndito objeto real seria de alguma maneira como um elemento exterior, como um outro que se abriga no inalcançável mesmo de todo objeto – como uma exterioridade embutida em cada objeto e, assim, inclusa na totalidade de objetos. Porém a exterioridade do objeto real estaria circunscrita aos objetos em sua estrutura quádrupla e estruturada como um componente dos objetos. Se há alguma exterioridade, ela está mapeada dentro de uma totalidade de objetos. Se há uma influência de Levinas sobre Harman, ela não se dá no entendimento da completa exterioridade como marca de um infinito que é avesso à totalidade.
Em contraste com a ontologia orientada a objetos de Harman, a versão de Tristan Garcia não apela em momento algum para objetos reais. Ao invés disso, Garcia apresenta cada existente de uma maneira objetiva – como objetos – e de uma maneira formal – como coisas. Uma coisa não possui nem um substrato e nem se confunde com seus predicados, como as substâncias no sentido cartesiano (ou as mônadas de Leibniz). Uma coisa se caracteriza por uma borda, por uma fronteira, por uma divisa. A coisa é precisamente aquilo que está do lado de dentro de um saco – e o que está de fora é o mundo, é o seu mundo; portanto o mundo de uma maneira formal. Garcia entende o mundo como sendo todo o resto de uma coisa, como um demonstrativo a partir da coisa. Nem o mundo e nem a coisa podem ser entendidos senão em referência um ao outro. É a fronteira que faz a coisa – a coisa é uma delimitação com respeito ao mundo, com respeito a todo o resto. Ainda que predicados determinem o que é um objeto – sem qualquer apelo a um recôndito objeto real e, assim, a qualquer substrato – eles o fazem distinguindo o que faz o objeto a coisa que ele é e todo o resto.
O processo de passagem do objetivo ao formal – do objeto em meio a muitos objetos em direção à coisa que se distingue do seu mundo – é através da operação de de-determinação. A de-determinação é a ênfase na borda que faz a coisa ser distinta. Em outros termos, é a de-determinação que fixa a referência. É como se Garcia alcançasse a orientação a objetos por um caminho que leva do que os predicados descrevem para o que os predicados designam, como eles fixam a referência. É um caminho semelhante ao que faz Saul Kripke ao argumentar que não é o significado que fixa a referência, mas os predicados podem determinar o que está sendo designado.10 Assim, “gato é um animal” fixa uma referência e faz com que estejamos apontando para o gato mesmo ao dizer que o gato não é um animal – o predicado pode introduzir um lugar para um termo, sem defini-lo, sem determiná-lo. Assim, se descobrirmos que os gatos são robôs inseridos por extra-terrestres para espiar a vida doméstica humana, entenderemos não que não há gatos já que nada satisfaz os predicados que usamos para definir 'gato', mas que os mesmos gatos que pensávamos que eram animais são robôs. Kripke considera que fixar referência não é dar o significado ou definir e, vice-versa, que fixar a referência não é necessariamente definir. Garcia considera que um objeto pode ser de-determinado de modo que aquilo que faz a borda seja desconsiderado e a borda ela mesma – aquilo que a borda faz – seja posto em foco. A atenção formal de Garcia é para o mundo em que a coisa é compreendida, para o seu exterior que posiciona a coisa (de-determinada).
A ontologia orientada a objetos de Tristan Garcia é assim bem menos comprometida com a especulação. Objetos são entendidos em termos de suas qualidades, suas sucessões de estado e suas relações com outros objetos determinados por predicações e, de uma maneira formal, são coisas caracterizadas apenas por uma borda que as separa do resto do (seu) mundo. Aquilo que distingue um objeto de todo o resto é precisamente que ele tenha uma borda enquanto coisa – mas essa borda, essa distinção do resto do mundo apenas pode ser entendida a partir da coisa. Ou seja, as coisas só podem ser entendidas desde dentro, a partir de um mundo específico que contrasta com ela e cujo contraste não pode ser entendido desde descrições. Garcia aponta para a possibilidade de que uma coisa seja de-determinada, e assim vista sob um ponto de vista que a distingue de todo o resto independentemente das determinações que as predicações do objeto promovem. A de-determinação é um procedimento que contrasta com a especulação: ela parte de um objeto e o considera nele mesmo com sua borda, sem usá-lo como exemplo de coisa alguma. Afastada da especulação, a ontologia orientada a objetos de Garcia parece estar mais próxima da exterioridade até porque pensa a partir da borda, da fronteira. Garcia entende uma coisa em contraste com seu exterior – e não inserida em uma totalidade.
4. A metafísica dos outros
O contraste entre totalidade e exterioridade aponta para uma dificuldade da especulação. A especulação procede por meio da postulação, como através de um espelho, de mais do mesmo, de mais do que já é conhecido. A especulação tem um parentesco com a totalidade. Há um sentido em que ela também tem uma relação com a transparência – a transparência dos espelhos, do que é refletido neles. Mesmo nos casos de Meillassoux que critica as metafísicas da subjetividade por serem prisioneiras da transparência da realidade ao entenderem a correlação com absoluta e de Harman que assume a ocultação como constitutiva dos objetos, a especulação conduz a uma dose de transparência da realidade na forma de uma totalidade que abrange tudo e exorciza a inteligibilidade mesma de um exterior. A especulação avança para além de cada caso particular porque procura o conteúdo especular em tudo o que considera – toma tudo o que vê como um exemplo, como um exemplar, e não como algo que pode ser singular. Mesmo a ocultação – na forma de facticidade ou de objeto real – é tomada como um exemplo e espelhada por toda parte. O realismo especulativo coloca assim a questão de como o secreto se reflete no espelho. Trata-se de uma questão acerca do especular: como aquilo que se retira vê sua imagem refletida por toda parte. A vida secreta que o realismo em certo sentido torna explícita é refletida por um espelho e se torna visível através de uma imagem total que espelha o segredo e o cartografa. A imagem especular inclui assim os pontos cegos, os pontos que não podem ser vistos já que não se mostram mas que em sua retirada deixam marcas em espelhos. A retirada para além da luz é um exemplo e assim um espelho que reflete por toda parte.
Contraponho o procedimento especulativo como o que chamo de metafísica dos outros. Comprometida com a exterioridade, a metafísica dos outros entende que há um elemento de fora de qualquer concepção do mundo. O elemento que fica de fora não é um ponto de fuga em uma imagem que apresenta uma cartografia de tudo, mas é um outro, um além, uma transcendência inevitável. A metafísica dos outros considera que o Outro – o fora, o exterior – é um componente da realidade que faz com que todo mapa dela seja incompleto diante de elemento que não cabe na finitude, que é da ordem do infinito que Levinas vê em Descartes. Ou seja, o Outro é um elemento completamente diferente que coloca em questão qualquer descrição. A metafísica dos outros começou talvez com o gesto do Estrangeiro d'O Sofista de Platão ao introduzir a possibilidade de um discurso acerca do que é completamente outro – inclusive completamente outro com respeito ao que é. O Estrangeiro lista então os cinco grandes tipos μέγιστα γένη que compõem a realidade: Movimento, Repouso, Ser, Mesmo e Outro. O Ser aparece rodeado por tipos não-substantivos que o afetam desde fora e que tornam possível o nada como o ser completamente outro, o produto de Outro aplicado a Ser. Como Mesmo e Outro são indexicais e apontam para uma relatividade já que o outro é outro para um mesmo e como movimento e repouso são também interdependentes e relativos ao que é mesmo e ao que é outro, é como se o Ser estivesse rodeado por outros tipos que o colocam em um endereço: é apenas em relação com o que é outro que o ser é o que é. Em contraste com a especulação, a metafísica dos outros apresenta a realidade como dotada de suplementos, como não apenas incompleta como impossível de ser completada. Os outros oferecem um elemento externo que torna a empreitada da metafísica circunscrita senão impossível.
A metafísica dos outros é uma metafísica de horizontes abertos e, por isso mesmo, ao mesmo tempo uma crítica à metafísica. A atenção ao suplemento, e o exorcismo do especular, leva a metafísica dos outros a um foco ao que vem de fora não como um prolongamento especular, mas como uma exterioridade que não sucumbe a nenhuma totalidade mas a transcende. O Grande Fora não é alcançado por procedimentos de complementação e nem pela reflexão através de espelhos, mas precisamente por ser exterior e assim inesgotável. O realismo da metafísica dos outros é também o realismo que reside na crítica à metafísica – na sua impossibilidade. Trata-se do realismo de uma realidade aberta, de uma realidade que pode ser suplementada. Como se trata de uma metafísica que é também uma crítica à metafísica – como se trata de uma metafísica auto-destrutiva – a metafísica dos outros lida com o desconforto do realismo especulativo de um modo muito diferente: ela postula o exterior como sempre presente e inesgotável. Seu caminho vai na direção do paradoxo: ela é uma metafísica que, postulando os outros como ingredientes, apresenta uma caracterização maximamente geral da realidade que coloca limites em qualquer caracterização maximamente geral da realidade. Jon Cogburn entende que se há um fenómeno (no caso da metafísica dos outros a presença de outros transcendentes) que torna a metafísica impossível, a tarefa da metafísica e oferecer uma abordagem da realidade que mostre o que é preciso ser o caso para que a metafísica seja impossível.11
Cogburn denomina que empreitadas assim de paradoxico-metafísicas.12 Podemos enxergar um contraste entre a especulação e a metafísica dos outros nestes termos. A metafísica dos outros de uma lado contrasta com o realismo especulativo e de outro lado o exacerba na direção de um paradoxo: o oculto não pode aparecer no espelho e se aparece é apenas para mostrar que o espelho não espelha, que a reflexão encontra um ponto cego. Ao contrário do realismo especulativo, a suposição é de que o ponto cego está fora do escopo do espelho. Não há imagem refletida do segredo, ele está de fora; o espelho não reflete o que está do campo de visão ainda que o campo seja ampliado pelo espelho. O espelho, no entanto, deixa ver seu fim – aquilo que não reflete mais. Seu fim não coincide com o fim do campo de visão; é antes como o fim marcado pelo horizonte. Aquilo que está mais além não é mostrado, mas é apontado.
O realismo especulativo e a metafísica dos outros
1. O realismo especulativo e a metafísica da subjetividade
O realismo especulativo nasceu de um desconforto. Ou, pelo menos de um desconforto percebido. Desconfortos (percebidos), em filosofia, produzem agendas, dão prioridade a certas questões ou maneiras de apresentá-las e apresentam, ou insinuam, uma história, por vezes épica, do tempo recente que passou. O desconforto do realismo especulativo é com um estado de coisas em que a impossibilidade de que possamos ter acesso por pensamento ou conhecimento de alguma coisa para além da nossa correlação com elas – para além do modo como elas se apresentam à nós. Trata-se de um desconforto (percebido) que é facilmente dividido em dois: o desconforto com a falta de tentativas de ultrapassar a correlação e o desconforto com o caráter central atribuído à algo tão demasiado humano como a correlação. Este duplo desconforto é também um desconforto com uma época histórica que cobriria mais ou menos os últimos dois séculos: a era do correlato. Assim, o realismo especulativo extrai de seu desconforto uma agenda, uma questão principal e uma história épica: a agenda de superar a era do correlato, a questão principal de como fazê-lo e uma história de estradas bloqueadas que agora se abrem aos intrépidos.
O realismo especulativo foi uma confluência de filosofias pautado por este desconforto. Quentin Meillassoux o exprimiu em sua cartografia da era do correlato e sua proposta de ultrapassá-la.1 Ele atribuiu à Kant a elaboração do correlacionismo fraco – a tese de que podemos pensar mais não conhecer para além da correlação. Meillassoux também entendeu que a partir deste orbital outras três posições se articularam durante a era do correlato: o correlacionismo forte – que estende a impossibilidade de acesso para além do conhecimento e afirma que é impossível pensar para além da correlação; a metafísica da objetividade – que rejeita por inteiro a crítica de Kant à possibilidade de conhecer algo para além da correlação e, finalmente e a metafísica da subjetividade – que de alguma maneira entende a correlação como sendo ela mesma absoluta e tudo o que é possível conhecer uma vez que é de correlação que a realidade é feita. As três posições são insuficientes para uma saída da era do correlato – e, além disso, não respondem adequadamente aos problemas com os quais a posição de Kant procurou lidar. Meillassoux entende que Kant tornou explícita não apenas a inevitabilidade de lidarmos com a correlação quando tentamos aceder à realidades de algum modo independentes de nós como também o caráter contingente de nossa prisão em suas amarras. Ultrapassar a era do correlato significa, para Meillassoux, algo diferente de negar as premissas do correlacionismo fraco ou intensificá-las em direção a um correlacionismo forte. É preciso encontrar um modo de aprender as lições de Kant e, ainda assim, ir para além do que o correlacionismo que ele inaugurou permite. Aprender as duas lições significa levar em conta a correlação como um fato incontornável acerca de nosso acesso ao mundo e entender que este fato não é senão a expressão de uma facticidade, de uma contingência – não é em si mesmo absoluta e nada de estrutural acerca do mundo tem como consequência que não acedamos senão correlações.
A metafísica da subjetividade pode parecer a melhor candidata para esta superação – que de fato é como uma Aufhebung hegeliana já que se trata tanto de deixar para trás quanto de assimilar. Quanto ao desconforto (percebido) duplo, ela responderia também de modo duplo. Primeiro, para além das correlação não há nada além de (outras) correlações já que é preciso ter em mente que a correlação não é apenas uma amarra ou um empecilho mas é também uma aquilo que torna o mundo cognoscível ou pensável como uma mediação entre dois pólos muito distintos. Segundo, ela observaria que as correlações não são nossas, nós é que estamos às voltas com ela quando nos engajamos em conhecimento ou em pensamento. A metafísica da subjetividade de alguma maneira entende a subjetividade ela mesma como uma alavanca para uma saída do impasse do correlacionismo – ou porque a subjetividade é reveladora ou porque ela é um conveniente ponto de partida.
Meillassoux encontra a metafísica da subjetividade em filósofos distintos como Hegel e os hegelianos de um lado e Bergson e Whitehead e aqueles influenciados por eles como Deleuze e Latour de outro.2 A distinção entre estes dois grupos aponta para uma distinção entre duas maneiras bastante diferentes de entender a metafísica da subjetividade. De acordo com a primeira, a correlação é uma e tem uma estrutura própria associada às capacidades conceituais; ela é aquilo que torna o acesso possível e os dois pólos que ela media nem sequer podem ser concebidos senão por meio da correlação – a correlação é uma espécie de mediação instauradora. De acordo com a segunda, a correlação é múltipla e tem uma estrutura comum associada às capacidades perceptivas em geral (ou mesmo às capacidades afetivas em geral); ela é da estrutura da experiência e não há mesmo nada além de qualquer das correlações já que elas são tanto humanas quanto extra-humanas e estão por toda parte.
Em ambos os casos, a correlação é objeto de um procedimento especulativo. A especulação parte de um fenómeno já conhecido e o ultrapassa tomando-o como um exemplo; ou seja, encontrando no fenómeno conhecido algo que pode ser projetado para outras partes, para outros fenómenos. Trata-se de um procedimento de generalização a partir do conhecido, como se o fenómeno de partida servisse como um instrutor para lançar a vista para além do que é conhecido. Whitehead compara a especulação com um voo de avião que pode subir alto e permitir que se veja muito ou apenas sobrevoar o aeroporto a depender do fenómeno de base, que ele entende como a pista de decolagem do voo.3 No caso das metafísicas da subjetividade, o fenómeno conhecido é a correlação e ele é tomado como exemplo de qualquer contato entre uma subjetividade e qualquer outra coisa. Uma metafísica da subjetividade hegeliana – chamemos de metafísica da subjetividade do primeiro tipo - entende que a correlação revela algo sobre a mediação que é ela mesma absoluta, o engajamento com conceitos sem o qual nada pode estar nem sequer em princípio presente. Por outro lado, uma metafísica da subjetividade begsoniana ou whiteheadiana – metafísica da subjetividade do segundo tipo –,entende a nossa correlação como um exemplo que revela como são as coisas em geral; por toda parte há correlações e nada para além delas. Em ambos os casos, a correlação não é mais um véu que poderia ser retirado mas aquilo mesmo que há para se ter acesso – não há nada além da correlação. Nem árvore-em-si, nem oceano-em-si, apenas árvore-para-nós e oceano-para-nós o que no primeiro tipo de metafísica da subjetividade é entendido como árvore-para-os-conceitos e oceano-para-os-conceitos e no segundo é acompanhado também de árvore-para-oceano e oceano-para-árvore.
Porém as metafísicas da subjetividade dos dois tipos falham em levar em conta a segunda lição de Kant, segundo Meillassoux. Ainda que elas levem em conta que a correlação é um fato central do nosso acesso ao mundo – e de fato a tomam como ponto de partida de um procedimento especulativo – elas a tornam absolutas e portanto desconsideram seu caráter contingente e deixam de atender à facticidade da correlação. Para Meillassoux, a falha das metafísicas da subjetividade em assimilar a facticidade da correlação é instrutiva. A facticidade aponta para a fissura entre aquilo que é e aquilo que aparece – o aparecer de alguma coisa não é intimamente ligado ao que a coisa é, há a possibilidade dela ser completamente outra com respeito ao modo como ela aparece. A falha em levar em conta a facticidade da correlação é uma aposta na transparência do mundo – na sua transparência em termos de uma acessibilidade aos conceitos na forma da mediação que é ela mesma absoluta ou em termos de uma rejeição da distinção entre a natureza das coisas e a experiência que algo tem delas. Ou seja, ou porque a mediação é transparente ou porque um princípio como a bifurcação entre experiência e natureza diagnosticado e exorcizado por Whitehead deve ser deixado de lado.4 Em outras palavras, aquilo que as metafísicas da subjetividade deixam de considerar é a ocultação da realidade – há nela algo que não se mostra, que se esconde, que inclina-se ao velamento. A facticidade da correlação aponta precisamente para a ocultação: a realidade não e transparente, não se mostra na nossa correlação e nem sequer em correlação alguma. Há algo de recôndito que constitui o que é real; a realidade guarda um elemento de resistência ao aparecimento, de contraste com as aparências, de velamento já que o que ela mostra em correlações não tem nada de necessário. As metafísicas da subjetividade consideram ou que a mediação uma vez entendida como constitutiva não oculta nada ou que aquilo que uma correlação oculta é acessível a alguma outra já que não há nenhum resíduo de realidade para além das correlações. Os dois tipos de metafísica da subjetividade parecem estar comprometidas com a transparência da realidade, ainda que não endossem que a realidade pode aparecer a um sujeito de uma vez por todas. Essa transparência, assinala Meillassoux, decorre da rejeição da facticidade da correlação.
2. Facticidade e ocultação
Em contraste, Meillassoux quer encontrar um modo de alcançar algum absoluto que se distingue da correlação, que está para além dela. O que está para além do para-nós é talvez o que é em-si; ou o que é para-os-outros e, supostamente, em todos os casos, o que é sem-nós. O sem-nós é entendido muitas vezes como o para-ninguém, ou mesmo como o para-nada. Rejeitar as metafísicas da subjetividade implica em não considerar o sem-nós como sendo para-alguém (ou para-outros). O para-nada ou para-ninguém é o oculto, o que está para além das aparências, de qualquer aparência. Meillassoux procura este para-nada precisamente na relação entre ocultação e facticidade e considera que o absoluto é precisamente aquilo que torna a ocultação possível, a facticidade. Em outras palavras, o absoluto é inaugurado pela capacidade da realidade de eludir as aparências, pela sua capacidade de ser qualquer coisa – ou seja pelo caráter contingente de tudo. Se Meillassoux entende que as metafísicas da subjetividade postulam o absoluto no que é contingente, sua recomendação é que se encontre o absoluto na contingência ela mesma. As metafísicas da subjetividade são perspicazes em procurar o absoluto onde a era do correlato encontra o seu foco, mas incorrem no erro de pensar encontrá-lo onde não pode haver senão contingências. O absoluto não pode estar no que é contingente; e eis que Meillassoux procura encontrá-lo precisamente na ubiquidade da contingência. E é esta ubiquidade que permite que haja um elemento oculto em tudo o que é já que a contingência como princípio fundamental – o princípio que Meillassoux considera absoluto é o princípio da facticidade – garante que a transparência não pode revelar nada de necessário acerca da realidade. Dito de outra forma, a contingência é uma pedra no sapato da transparência da realidade já que ela deixa claro que há uma capacidade de ser outro inscrita em tudo que transparece.
Eis a trama que Meillassoux apresenta: correlação contra absoluto. Há que haver uma distinção entre os dois e temos que encontrar um modo de ultrapassar a correlação em direção ao absoluto. É certo que, para Meillassoux, não basta que multipliquemos as vias de acesso de modo, digamos, que possamos estar às voltas com a correlação em uma delas e aceder ao absoluto em outra – como por exemplo recomenda a própria tradição kantiana que veda o absoluto ao âmbito do conhecimento teórico mas concebe o acesso à ele por uma via prática. É preciso que a correlação seja ultrapassada em um âmbito teórico, temático, enquanto genuíno objeto do conhecimento. Ultrapassar a correlação também deve ser ultrapassar qualquer correlação – não apenas ir para além daquela em que estamos, mas ir para além de qualquer outra. O absoluto não é, portanto, apenas o não-humano, é o não-correlativo, é o que subsiste por si mesmo. Aquilo que subsiste por si mesmo é o princípio da facticidade que torna possível que a transparência seja enganosa – e que a realidade tenha algo de oculto. O oculto aponta para o absoluto. O salto especulativo de Meillassoux é da ocultação da correlação através da facticidade para a facticidade em geral – é o contingente na correlação que é o fenómeno que serve como ponto de partida. A correlação é um exemplo do elo central entre realidade e contingência, um elo que faz com que tudo possa ser outro e que o que existe não tenha transparência.
Meillassoux entende assim que a contingência forma um princípio que transcende a tudo o mais, e é por isso que o princípio da facticidade de todas as coisas pode ser um genuíno absoluto. A independência que Meillassoux almeja para o absoluto requer também neutralidade; ele é para-ninguém (ou para-nada). A neutralidade aponta em direção ao infinito: o que é absoluto não depende de ponto de vista, de perspectiva ou de nenhuma limitação. Porém se trata de uma ilimitação ou de uma indelimitação que está na vizinhança de uma totalidade que pode ser um tema do pensamento teórico. Uma metafísica indiferente aos desafios da era do correlato – que pode ser chamada de metafísica da objetividade – almeja oferecer uma imagem do mundo que seja pensável e absoluta e neutra e total. Analogamente, uma metafísica da subjetividade oferece uma imagem do mundo pensável em termos de correlações, neutra com respeito a cada uma delas – se houver mais de uma digna de ser considerada como é o caso do segundo tipo de metafísica da subjetividade – e total já que nada além das correlações têm lugar. O princípio de facticidade de Meillassoux, por sua vez, também é neutro e total: tudo está submetido à contingência. Graham Harman, em seu livro sobre Meillassoux, afirma que enquanto Meillassoux rejeita a) a finitude do conhecimento e sua incapacidade de capturar a realidade, ele afirma b) a centralidade da relação entre o humano e o resto do mundo já que é apenas a partir da tematização possível com a correlação humana que o princípio da facticidade pode ser formulado. Em contraste, como veremos, Harman afirma que ele próprio intenta precisamente rejeitar a segunda e afirmar a primeira.
A era do correlato é caracterizada por Meillassoux como a era da finitude. O acesso à realidade é limitado pela correlação. A finitude é entendida como uma renúncia à totalidade – à totalidade que é alheia às correlações já que neutra com respeito a cada uma delas. O avesso da finitude é uma imagem total da realidade, uma imagem em que tudo o que existe fica disponível a uma contemplação especulativa. Sem finitude, a especulação pode atingir o todo, pode prover uma visão de terceira pessoa – e a terceira pessoa é alguém que não está de modo algum envolvido em nenhuma situação – que é como uma visão de parte alguma, um ponto de vista sem ponto, uma fresta desde o Grande Fora. Uma tal visão total não é uma visão desde cima, nem desde dentro e nem mesmo desde fora – é de fato uma visão desde fora do fora. Para esta transcendente terceira pessoa, não haveria nenhuma assimetria, todas as coisas se relacionariam com ela do mesmo modo já que ela não estaria mais perto de nada, não seria mais íntima de nada, não teria maior responsabilidade com nada – aliás não teria responsabilidade nenhuma como o Deus de Leibniz não tem compromisso com a existência de nenhuma mônada em particular quando escolhe uma dentre as infinitas classes de mônadas (ao escolher criar um mundo).5 A visão transcendente é similar àquela que Heidegger diagnostica em suas conferências de Bremen6 como o produto da gradativa substituição do mundo onde há proximidade (Nähe) por um Ge-Stell (um dispositivo, uma posicionalidade, uma cartografia) que aponta para uma exposição total.
Para Meillassoux, a totalidade é a resposta adequada à finitude – ainda que a totalidade seja a do princípio de facticidade, princípio absoluto. A totalidade é o que a especulação permite ver e talvez aqui haja um elo entre o método especulativo e o esforço pela totalidade. Há uma totalidade acessível à especulação porque a especulação procede por passos especulares, por meio de espelhos – ela projeta alguma medida de mais do mesmo. Ela projeta o que ela já viu no que ela não viu – ou no que não pode ver. Há nela um elemento de indução enumerativa: chegamos à totalidade por meio de uma projeção do que já foi visto. Por esse meio, ela procura alcançar uma imagem o mais ampla possível – e por meio dessa busca de totalidade é que o absoluto pode ser alcançado, pelo menos para Meillassoux. A totalidade que a especulação propicia é análoga àquela que faz ver o todo a partir de uma amostra reveladora postulando que é melhor supor semelhanças relevantes do que antever distinções ou supor a diferença. Meillassoux faz uso da especulação já que ela aponta para a totalidade, em seu caso a partir da capacidade de ser outro que a facticidade da correlação apresenta para a facticidade de toda coisa. A totalidade que seu princípio da facticidade faz alcançar é, para Meillassoux, um antídoto para a finitude já que ele revela alguma coisa para além da correlação e pensado desde a correlação. Não estamos mais confinados à correlação, não estamos mais na finitude do correlato, mas alcançamos o direito de espreitar o absoluto para além dela, o absoluto que ela mesma nos ajuda a revelar.
No entanto, o procedimento especulativo pode ser cego para a possibilidade de que é a exterioridade e não a totalidade que é o avesso da finitude. E o realismo especulativo pode ter sido vítima de seu desconforto percebido ao deixar de lado o receio de uma visão total da realidade. Emmanuel Levinas, em parte inspirado por Jean Wahl, apresentou uma defesa da exterioridade contra a totalidade.7 Aquilo que nos confina em nós mesmos – por exemplo na forma de um correlacionismo – seria para Levinas não uma ausência de totalidade mas precisamente uma neutralização do que é exterior. Assim, ele oferece elementos para uma crítica à conexão entre o tipo de totalidade que a especulação pode prover – e que revela algumas dimensões importantes de qualquer totalidade – e a rejeição da finitude. Ele entende que a projeção de mais do mesmo não pode alcançar um genuíno infinito e pode, no máximo, neutralizar aquilo que é diferente do seu ponto de partida. Entendendo o infinito como ele pensa que Descartes concebia – como trazendo à baila uma não-delimitação, uma indefinição que talvez seja impossível ao infinito atual – ele entende que a totalidade é precisamente o que impede a abertura ao infinito, e que uma totalidade que projeta o mesmo não pode ser mais do que uma finitude multiplicada onde a assimetria é minimizada em nome de relações especulares. Levinas inaugurou uma maneira de pensar segundo a qual a totalidade se contrasta com a exterioridade. A totalidade é feita de complementos – e de variações do mesmo, de reflexos especulares – e é precisamente incompatível com qualquer suplemento, aquilo que não atende a uma lacuna ou a um espaço deixado em branco. O suplemento é o que impede a finitude. Se há um elemento exterior na realidade – um elemento que se pode encontrar sem antever – ela não pode caber numa totalidade, e em particular numa totalidade alcançada por uma especulação a partir do já conhecido. Se é assim, depois da finitude talvez não haja totalidade. E a saída da era do correlato seja talvez postular que no mundo mesmo haja incognoscíveis – e que o conhecimento tenha que ser em alguma medida limitado ainda que não seja finito e precisamente por não sê-lo.
O contraste entre totalidade e exterioridade aponta ele mesmo para a ocultação. Há um sentido de parentesco entre totalidade e transparência se a primeira é entendida como uma exposição, pelo menos em princípio, como indica a imagem da Ge-Stell de Heidegger na qual não há mais espaço para qualquer retirada, para qualquer velamento já que o controle da exposição é daquilo que dispõe da coisa como objeto. Meillassoux tenta exorcizar a transparência das metafísicas da subjetividade por meio da atenção à contingência que torna possível a ocultação. E, no entanto, ao apresentar a facticidade como sendo ela mesma absoluta e compondo um princípio cujo escopo é total, ele termina como que postulando que tudo é transparente à contingência. Há uma imagem total que substituiria a finitude da era do correlato, mas por ser total é que ela talvez seja precisamente incapaz de alcançar o infinito da exterioridade. A contingência de todas as coisas é uma visão de parte alguma que dilui o exterior e o interior em uma totalidade. Não há um outro exterior a contingência; ninguém nem Deus poderia exorcizar o princípio da facticidade. (Meillassoux advoga que a inexistência de Deus é contingente e, assim, Deus pode vir a existir a qualquer momento, porém não pode revogar a facticidade de todas as coisas que transcende a tudo e engloba qualquer realidade.) Tudo pode ser outro e esta contingência transcende qualquer distinção entre o que é interior e o que é exterior. Se é a exterioridade – e, de fato, a preocupação com o mundo exterior parece ser parte do desconforto que impulsionou o realismo especulativo – que contrasta com a finitude, é a própria finitude que termina ganhando o jogo na forma da totalidade. Vemos para além de nossa correlação mas ao mesmo tempo exorcizamos a possibilidade de um outro exterior a uma totalidade alcançada a partir de nossa ponto de partida.
3. Orientação a objetos
A ontologia orientada a objetos de Harman tem como ponto de partida precisamente a ocultação. Seu esforço especulativo começa com Heidegger em sua distinção entre objetos para o conhecimento ou o pensamento – Gegenstanden – e coisas, que ora aparecem e ora se recolhem, se escondem.8 As coisas se mostram apenas quando lhes convêm – elas atendem à si próprias quando se mostram e quando preferem se retirar. Heidegger enfatizava que mostrar é um elemento tão importante para alcançar a realidade quanto conhecer, pensar ou procurar ter um acesso. E é a partir da distinção entre as coisas mostradas e os objetos sempre expostos que Harman constrói sua orientação aos objetos. A partir da importância da ocultação, o esforço de Harman é o de rejeitar a centralidade da correlação humana postulando que todo acesso a qualquer objeto é limitado. Os objetos trazem em si um elemento sensual – exposto como um Gegenstand – mas também um elemento real recôndito, secreto – como a coisa de Heidegger. Sua ontologia orientada a objetos pretende um conhecimento de objetos que contém um elemento real e inacessível. O objeto real inacessível é comum à interface humana com qualquer objeto e à interface de qualquer objeto com qualquer outro. É da natureza do objeto ter uma estrutura quadrupla que inclui qualidades reais, qualidades sensuais que se dão ao contato, o objeto sensual que pode ser figurado e o objeto real em retirada. O objeto real é constituinte de qualquer objeto no mundo porém não é o que se dá a uma relação sensível – não é um Gegenstand à ser alcançado pela sensibilidade. Trata-se do anestético no estético, do inacessível à sensibilidade de qualquer objeto disponível no sensível. O objeto real indica o elemento numênico ou em-si de qualquer objeto, aquilo que se retira durante uma interação com qualquer outro objeto. Porque não se pode aceder ao objeto real, há uma limitação, uma finitude no que se pode capturar da realidade.
A ontologia orientada a objetos de Harman rejeita o caráter sui generis da limitação do conhecimento humano postulando que em qualquer contato entre objetos há mediação, é sempre o elemento sensual (objeto sensual e qualidades sensuais) que entra toca um outro objeto em seus elementos sensuais. Nenhum objeto é esgotado pelas relações que outros objetos mantêm com ele. Há um elemento na ontologia orientada a objetos de Harman que se assemelha às metafísicas da subjetividade (do segundo tipo): há correlação por toda parte. Porém há uma diferença importante, a ocultação – há algo para além da correlação, há uma vida secreta dos objetos. Há precisamente um além em cada objeto, ainda que em uma estrutura quádrupla comum. O acesso aos objetos é sempre limitada, finita e em cada um deles há um resíduo – o objeto real – que não se mostra, que resiste. A finitude do acesso é, ela mesma, generalizada; tudo o que há tem a capacidade de se retirar, de estar oculto, de estar velado.
Harman parte da ocultação – e não da transparência – em direção a uma totalidade de objetos em uma estrutura quádrupla comum que envolve o objeto real que não se mostra a qualquer contato. É como se a ocultação fizesse parte da totalidade – e não da exterioridade. Com Harman podemos alcançar uma visão de parte alguma – uma visão de totalidade – em que os objetos em sua estrutura quádrupla se mostram e se retiram. Há uma totalidade (especulativa) onde há lugar para o que está à mostra de outros objetos e também o que está retirado – ainda que nessa totalidade não possamos aceder ao objeto real de cada objeto com a estrutura quádrupla. Para Harman, o objeto em sua estrutura que contém o objeto real é um termo neutro, que se aplica a tudo o que há. Objetos constituem aquilo que existe porém não são apenas esses constituintes, há algo que fica fora de cena, cada um tem uma vida secreta. O segredo é distinto e velado em cada caso, mas a estrutura geral do segredo é neutra e pode ser pensada independente do que cada segredo esconde. A estrutura quádrupla é a estrutura da retirada, do segredo que está por toda parte – não é apenas o conhecimento humano que esbarra em segredos dos outros objetos, por toda parta há mais deste mesmo. A orientação aos objetos de Harman se dá precisamente na incapacidade da totalidade de dar conta dos objetos – cada um deles tem um segredo que faz os indiscerníveis não serem necessariamente idênticos.
No entanto, trata-se de uma totalidade que se alcança e que aparece também como decorrência de um procedimento especulativo: se os objetos do meu conhecimento (e do meu pensamento) se escondem, esta vida secreta, esta retirada, pode ser ela mesma tomada como ponto de partida para um procedimento especulativo que me permita concluir que tudo se mostra e se retira, que há em todo objeto um objeto real recôndito e, assim, um segredo que resiste a qualquer correlação. Peter Gratton observa que a importância de Levinas para a ontologia orientada a objetos de Harman é talvez maior do que a de Heidegger.9 Numa leitura assim, o recôndito objeto real seria de alguma maneira como um elemento exterior, como um outro que se abriga no inalcançável mesmo de todo objeto – como uma exterioridade embutida em cada objeto e, assim, inclusa na totalidade de objetos. Porém a exterioridade do objeto real estaria circunscrita aos objetos em sua estrutura quádrupla e estruturada como um componente dos objetos. Se há alguma exterioridade, ela está mapeada dentro de uma totalidade de objetos. Se há uma influência de Levinas sobre Harman, ela não se dá no entendimento da completa exterioridade como marca de um infinito que é avesso à totalidade.
Em contraste com a ontologia orientada a objetos de Harman, a versão de Tristan Garcia não apela em momento algum para objetos reais. Ao invés disso, Garcia apresenta cada existente de uma maneira objetiva – como objetos – e de uma maneira formal – como coisas. Uma coisa não possui nem um substrato e nem se confunde com seus predicados, como as substâncias no sentido cartesiano (ou as mônadas de Leibniz). Uma coisa se caracteriza por uma borda, por uma fronteira, por uma divisa. A coisa é precisamente aquilo que está do lado de dentro de um saco – e o que está de fora é o mundo, é o seu mundo; portanto o mundo de uma maneira formal. Garcia entende o mundo como sendo todo o resto de uma coisa, como um demonstrativo a partir da coisa. Nem o mundo e nem a coisa podem ser entendidos senão em referência um ao outro. É a fronteira que faz a coisa – a coisa é uma delimitação com respeito ao mundo, com respeito a todo o resto. Ainda que predicados determinem o que é um objeto – sem qualquer apelo a um recôndito objeto real e, assim, a qualquer substrato – eles o fazem distinguindo o que faz o objeto a coisa que ele é e todo o resto.
O processo de passagem do objetivo ao formal – do objeto em meio a muitos objetos em direção à coisa que se distingue do seu mundo – é através da operação de de-determinação. A de-determinação é a ênfase na borda que faz a coisa ser distinta. Em outros termos, é a de-determinação que fixa a referência. É como se Garcia alcançasse a orientação a objetos por um caminho que leva do que os predicados descrevem para o que os predicados designam, como eles fixam a referência. É um caminho semelhante ao que faz Saul Kripke ao argumentar que não é o significado que fixa a referência, mas os predicados podem determinar o que está sendo designado.10 Assim, “gato é um animal” fixa uma referência e faz com que estejamos apontando para o gato mesmo ao dizer que o gato não é um animal – o predicado pode introduzir um lugar para um termo, sem defini-lo, sem determiná-lo. Assim, se descobrirmos que os gatos são robôs inseridos por extra-terrestres para espiar a vida doméstica humana, entenderemos não que não há gatos já que nada satisfaz os predicados que usamos para definir 'gato', mas que os mesmos gatos que pensávamos que eram animais são robôs. Kripke considera que fixar referência não é dar o significado ou definir e, vice-versa, que fixar a referência não é necessariamente definir. Garcia considera que um objeto pode ser de-determinado de modo que aquilo que faz a borda seja desconsiderado e a borda ela mesma – aquilo que a borda faz – seja posto em foco. A atenção formal de Garcia é para o mundo em que a coisa é compreendida, para o seu exterior que posiciona a coisa (de-determinada).
A ontologia orientada a objetos de Tristan Garcia é assim bem menos comprometida com a especulação. Objetos são entendidos em termos de suas qualidades, suas sucessões de estado e suas relações com outros objetos determinados por predicações e, de uma maneira formal, são coisas caracterizadas apenas por uma borda que as separa do resto do (seu) mundo. Aquilo que distingue um objeto de todo o resto é precisamente que ele tenha uma borda enquanto coisa – mas essa borda, essa distinção do resto do mundo apenas pode ser entendida a partir da coisa. Ou seja, as coisas só podem ser entendidas desde dentro, a partir de um mundo específico que contrasta com ela e cujo contraste não pode ser entendido desde descrições. Garcia aponta para a possibilidade de que uma coisa seja de-determinada, e assim vista sob um ponto de vista que a distingue de todo o resto independentemente das determinações que as predicações do objeto promovem. A de-determinação é um procedimento que contrasta com a especulação: ela parte de um objeto e o considera nele mesmo com sua borda, sem usá-lo como exemplo de coisa alguma. Afastada da especulação, a ontologia orientada a objetos de Garcia parece estar mais próxima da exterioridade até porque pensa a partir da borda, da fronteira. Garcia entende uma coisa em contraste com seu exterior – e não inserida em uma totalidade.
4. A metafísica dos outros
O contraste entre totalidade e exterioridade aponta para uma dificuldade da especulação. A especulação procede por meio da postulação, como através de um espelho, de mais do mesmo, de mais do que já é conhecido. A especulação tem um parentesco com a totalidade. Há um sentido em que ela também tem uma relação com a transparência – a transparência dos espelhos, do que é refletido neles. Mesmo nos casos de Meillassoux que critica as metafísicas da subjetividade por serem prisioneiras da transparência da realidade ao entenderem a correlação com absoluta e de Harman que assume a ocultação como constitutiva dos objetos, a especulação conduz a uma dose de transparência da realidade na forma de uma totalidade que abrange tudo e exorciza a inteligibilidade mesma de um exterior. A especulação avança para além de cada caso particular porque procura o conteúdo especular em tudo o que considera – toma tudo o que vê como um exemplo, como um exemplar, e não como algo que pode ser singular. Mesmo a ocultação – na forma de facticidade ou de objeto real – é tomada como um exemplo e espelhada por toda parte. O realismo especulativo coloca assim a questão de como o secreto se reflete no espelho. Trata-se de uma questão acerca do especular: como aquilo que se retira vê sua imagem refletida por toda parte. A vida secreta que o realismo em certo sentido torna explícita é refletida por um espelho e se torna visível através de uma imagem total que espelha o segredo e o cartografa. A imagem especular inclui assim os pontos cegos, os pontos que não podem ser vistos já que não se mostram mas que em sua retirada deixam marcas em espelhos. A retirada para além da luz é um exemplo e assim um espelho que reflete por toda parte.
Contraponho o procedimento especulativo como o que chamo de metafísica dos outros. Comprometida com a exterioridade, a metafísica dos outros entende que há um elemento de fora de qualquer concepção do mundo. O elemento que fica de fora não é um ponto de fuga em uma imagem que apresenta uma cartografia de tudo, mas é um outro, um além, uma transcendência inevitável. A metafísica dos outros considera que o Outro – o fora, o exterior – é um componente da realidade que faz com que todo mapa dela seja incompleto diante de elemento que não cabe na finitude, que é da ordem do infinito que Levinas vê em Descartes. Ou seja, o Outro é um elemento completamente diferente que coloca em questão qualquer descrição. A metafísica dos outros começou talvez com o gesto do Estrangeiro d'O Sofista de Platão ao introduzir a possibilidade de um discurso acerca do que é completamente outro – inclusive completamente outro com respeito ao que é. O Estrangeiro lista então os cinco grandes tipos μέγιστα γένη que compõem a realidade: Movimento, Repouso, Ser, Mesmo e Outro. O Ser aparece rodeado por tipos não-substantivos que o afetam desde fora e que tornam possível o nada como o ser completamente outro, o produto de Outro aplicado a Ser. Como Mesmo e Outro são indexicais e apontam para uma relatividade já que o outro é outro para um mesmo e como movimento e repouso são também interdependentes e relativos ao que é mesmo e ao que é outro, é como se o Ser estivesse rodeado por outros tipos que o colocam em um endereço: é apenas em relação com o que é outro que o ser é o que é. Em contraste com a especulação, a metafísica dos outros apresenta a realidade como dotada de suplementos, como não apenas incompleta como impossível de ser completada. Os outros oferecem um elemento externo que torna a empreitada da metafísica circunscrita senão impossível.
A metafísica dos outros é uma metafísica de horizontes abertos e, por isso mesmo, ao mesmo tempo uma crítica à metafísica. A atenção ao suplemento, e o exorcismo do especular, leva a metafísica dos outros a um foco ao que vem de fora não como um prolongamento especular, mas como uma exterioridade que não sucumbe a nenhuma totalidade mas a transcende. O Grande Fora não é alcançado por procedimentos de complementação e nem pela reflexão através de espelhos, mas precisamente por ser exterior e assim inesgotável. O realismo da metafísica dos outros é também o realismo que reside na crítica à metafísica – na sua impossibilidade. Trata-se do realismo de uma realidade aberta, de uma realidade que pode ser suplementada. Como se trata de uma metafísica que é também uma crítica à metafísica – como se trata de uma metafísica auto-destrutiva – a metafísica dos outros lida com o desconforto do realismo especulativo de um modo muito diferente: ela postula o exterior como sempre presente e inesgotável. Seu caminho vai na direção do paradoxo: ela é uma metafísica que, postulando os outros como ingredientes, apresenta uma caracterização maximamente geral da realidade que coloca limites em qualquer caracterização maximamente geral da realidade. Jon Cogburn entende que se há um fenómeno (no caso da metafísica dos outros a presença de outros transcendentes) que torna a metafísica impossível, a tarefa da metafísica e oferecer uma abordagem da realidade que mostre o que é preciso ser o caso para que a metafísica seja impossível.11
Cogburn denomina que empreitadas assim de paradoxico-metafísicas.12 Podemos enxergar um contraste entre a especulação e a metafísica dos outros nestes termos. A metafísica dos outros de uma lado contrasta com o realismo especulativo e de outro lado o exacerba na direção de um paradoxo: o oculto não pode aparecer no espelho e se aparece é apenas para mostrar que o espelho não espelha, que a reflexão encontra um ponto cego. Ao contrário do realismo especulativo, a suposição é de que o ponto cego está fora do escopo do espelho. Não há imagem refletida do segredo, ele está de fora; o espelho não reflete o que está do campo de visão ainda que o campo seja ampliado pelo espelho. O espelho, no entanto, deixa ver seu fim – aquilo que não reflete mais. Seu fim não coincide com o fim do campo de visão; é antes como o fim marcado pelo horizonte. Aquilo que está mais além não é mostrado, mas é apontado.
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