A moral do começo é uma investigação do poder, da determinação, da facticidade, do salto no escuro, do efeito cósmico e, principalmente, da justiça (e da injustiça) de fazer nascer. O nascimento é um acontecimento que tem ficado espantosamente banalizado em uma sociedade enamorada de si mesma – e que por isso não consegue sonhar para além de si mesma. Há um sentido cosmopolítico em que a reprodução das formas de vida, longe de ser trivial, é violenta e onerosa. E a mobilização dos nascimentos para esta reprodução não pode ser feita sem um enorme esforço de manipulação, cerceamento, contenção, domesticação e disciplinamento. E o que seria o nascimento sem o empenho de uma sociedade em persistir? Pierre Clastres, em sua elegante etnografia de um povo já desaparecido, os Guayaki, conta que para estas pessoas do passado “todo nascimento era experimentado dramaticamente por todo o grupo; não se trata simplesmente da adição de um indivíduo a uma família, mas uma causa de desequilíbrio entre o mundo de humanos e o universo das forças invisíveis”.
A moral do começo está as voltas com as inconveniências de ter nascido. E então as voltas com o desacerto moral de fazer nascer. Este desacerto orienta o antinatalismo de Julio Cabrera – entre outros. E, assim, dá vazão ao que ele chamou de ética negativa. O caráter inteiramente dialógico do livro fez com que a ética negativa ela mesma se mostrasse mais do que uma – ainda que esta pluralidade não esteja no marco do reconhecimento mútuo.
Gostaria de focar brevemente nessa multiplicação, em particular na alternativa de ética negativa que proponho. Com o intuito de tentar oferecer uma ideia do que consistiria esta outra ética negativa, me refiro a uma das minhas cartas, H3:
"A ética negativa sistematicamente rejeita que caiamos de amores pelo ser. É certo que estamos no ser se existimos e não podemos deixá-lo de lado quando pensamos e nem sequer podemos deixar de pensar no ser; porém não é ele, mas sua negação, que orienta a ética. A atitude da ética negativa é a de que o apego ao ser não conduz a ética – ainda que a situação de ser seja a condição de possibilidade de qualquer ética. Uma pergunta que surge do caráter negativo da ética é talvez de cunho lógico (ou talvez mesmo a única pergunta de cunho lógico): que é a negação ou, antes, o que se faz quando se nega? Como há muitos procedimentos lógicos – formais ou não, formalizáveis ou não, sistemáticos ou não, sistematizáveis ou não – a pergunta geral sobre a negação se esvai. Não podemos tratá-la senão por meio de um certo ar de família em cada um desses procedimentos, e talvez esse ar de família dê origem – para usar outra imagem emaranhada com essa por Wittgenstein – a um espaço lógico: como as cores ocupam o mesmo espaço lógico, e também as razões, assim é com as negações. O espaço lógico das negações aponta para o espaço lógico das éticas negativas.
Ainda que eu não possa encontrar uma maneira de contemplar esse espaço lógico, creio que haja um modo de começar a explorá-lo contrapondo a negação de que faz uso Cabrera em seu sistema de ética negativa – e que descrevo como uma decisão de abstenção – com uma outra negação – que chamo de interrupção. Na primeira negação, ao existente se contrapõe o não-existente; decidimos pelo não-existente ao nos abster […] da geração de existentes. Trata-se de negar o ser através da abstenção de ontogênese (de heterogênese, como eu chamei em um texto [da] controvérsia, ou de procriação, como Cabrera chama usando um termo mais habitual). Na segunda negação, em contraste, […] o ser do existente é rachado, cindido e invadido – é outro que, por seu intermédio, se aloja no seu ser. A desistência de ser, para compor uma ética negativa, é uma decisão. Se, em uma negação, o escopo está no outro existente, na outra está no que sou quando existo; é o que sou quando existo que é atravessado pelo outro existente, interrompido, destituído. Em ambos os casos, a negação e a ética negativa se enredam com o outro existente, aquele personagem em torno do qual gira a ética se ela se distingue de um exercício renitente de cuidado de si.
Para entender a interrupção como negação – e a hospitalidade radical como ética negativa –, talvez possamos começar com a noção de terminalidade, sobre a qual Cabrera insiste. A insuficiência do ser, que se traduz na alterabilidade do que é e na natureza rarefeita do pensamento, torna-o refém da terminalidade: não porque o ser termine, mas porque ele é feito de terminalidade. É como se o ser não fosse mais do que becos sem saída, fronteiras muradas, cercas de arame farpado e grades. A ontologia é um exercício de limitação, de acabamento, de terminação, ela mesma produz um mal-estar, uma náusea de estar preso, já que o ser é grilhão. […] A náusea de estar preso não é, ela mesma, a angústia de um nada, é um horror ao ser – o não-ser não é aquilo que merece esforços para evitar, mas é onde notamos um fora do que somos, um ponto de fuga.
Os outros […] compartem o confinamento ainda que em outras celas – mais que isso, carregar o ónus de existir é carregar o ónus de coexistir, já que não existe senão uma colónia prisional com diversas formas de recinto, de grade e de limitação. Ser-esse-aqui é estar entre os outros sob uma forma, em uma situação, submetido a uma condição. […] O outro existente está nos meandros de outro confinamento. Ele está nas maresias do ser, é certo, porém em outras maresias e a náusea de existir lhes chega às bordas de outras maneiras. Sobretudo, o confinamento do outro não é o meu confinamento: eu não sou o outro, eu não posso ser o outro, ainda que seja no espaço onde há o outro que eu fico confinado [...]. Uma ética negativa considera a condição ética com respeito aos códigos das prisões; é por isso que as observações de Primo Levi (em Os afogados e os sobreviventes)1 sobre a zona cinzenta onde algozes são também vítimas não são notas sobre ética aplicada ou sobre a biopolítica do lager, mas elas surgem como prolegômenos a toda ética negativa. Os dilemas aparecem no contexto prisional e podemos pensar a negação através dessa imagem: há o fora, o grande fora, alheio a todo confinamento (e, portanto, a todo ser) e que nega cada uma das celas, cada uma das jaulas; há também os outros prisioneiros em outros recintos que são (confinados) também, mas não se confinam pelo que me confina, já que não são o que eu sou. Os outros não negam a terminalidade; eles negam a terminalidade que me encontra, que se apega a mim. Já o fora não é terminal; é o ponto de fuga, para onde o prisioneiro escapa se se evade […] para lá dirijamos nossos planos de fuga, lá [vislumbro ainda sem entender] um ser que não sou; é de lá que aparecem as forças dos desejos. Os desejos nos conduzem para [fora …,] o desejo aponta para fora, para fora de si, para fora do que eu sou. O desejo aponta para uma alteração, para onde eu não estou.
Se pensamos a negação como interrupção, pensamos na negação como aquilo que ocorre dentro do complexo prisional mesmo que haja muros e um [fora] para além dos muros. O ser – o confinamento – é ele mesmo cindido, rachado, feito de caquinhos. É o meu ser que é interrompido, já que o confinamento em geral não tem soleira; é ao pé do meu quinhão de ser que batem à porta – ao ser não se telefona, não se manda mensagem de texto. O que ocorre na interrupção é que a coexistência deixa de ser o pano de fundo que me traz à cela [...] e passa a ser um outro prisioneiro à minha grade, um outro prisioneiro que irrompe na minha cela e que me apresenta um pedido que não é mais do meu mesmo, mas que requer uma resposta e me impinge uma decisão. […] Nenhuma das colagens grandiosas que eu fiz na minha cela para que eu suporte o confinamento, nenhuma das artimanhas que permitem que da minha parede eu enxergue linhas de fuga e contemple, com olhos engajados, vãos pelos quais tudo me parece mais suportável, já que surgem avenidas que parecem saídas, nenhuma dessas minhas decorações de cela – nem meus sistemas metafísicos, nem o enfileiramento das conquistas das ciências e nem sequer meu sistema moral acabado e retocado – está à prova de interrupção. É esse o caráter cindido sobre ele mesmo, traiçoeiro, incompleto e repleto de outro que confere ao ser uma ética negativa baseada na interrupção. O outro que bate à minha cela não está previsto no sistema das coisas que ocupa minhas paredes – não está antecipado, não cabe na minha imagem e nem na minha semelhança. E o outro ao pé da cela pode ser um qualquer, e seus pedidos podem me colocar em uma situação de responsabilidade. Essa responsabilidade, ela sim, pode ter um caráter que contrasta com a terminalidade, com o confinamento de tudo o que existe – a responsabilidade é ilimitada, não termina e nem sequer termina quando […] deixo de ser existente.
Essa responsabilidade interminável diante do confinamento é a cena em que aparece a inabilitação moral – e é talvez, ela mesma, a responsabilidade interminável, que nos coloca no confinamento, já que existir é estar à mercê do que conosco coexiste. À mercê não porque nos podem ferir ou nos podem impedir o caminho – e é certo que podem – mas à mercê porque nos pedem e nos obrigam a decidir como responder. É essa interrupção que importa de um ponto de vista negativo: somos responsabilizáveis, somos postos a dar respostas que criam uma cisão dentro de qualquer das nossas celas mesmo aquelas com as melhores decorações metafísicas ou morais. A ética negativa aqui é uma espécie de impossibilidade que se associa ao esquálido que é o ser, à náusea grudada na existência. É aqui que se conecta a terminalidade – o confinamento compresso na responsabilidade interminável – com o pluralismo. [...]
É certo que podemos fechar os buracos da cela e nos contentar com nosso confinamento, com nossa própria jaula – não precisamos responder a nada. Podemos apenas cuidar de nossas paredes – de nossos sistemas metafísicos e morais. Se agimos assim, estamos agindo de um modo afirmativo, estamos celebrando o ser, afirmando nosso ser e não desistindo dele; a atitude afirmativa é a de não se deixar interromper, já que vale muito o que estamos fazendo, vale muito nosso quinhão de ser, vale muito nossa existência. A atitude [alternativa] é a de alojar a interrupção, abrir a porta e considerar que a interrupção é o que, por um instante e na coexistência, me arranca da náusea de mim, da náusea de ser o que sou: é assim que a hospitalidade é negativa. Vale notar que a hospitalidade não é a desistência de pintar as paredes da cela. Antes ela requer que estejam pintadas (e ainda sempre sendo pintadas) as paredes da cela. Não se trata de desistir de ser, mas de abrigar quem interrompe no ser. Podemos assim contrastar a hospitalidade – como base da ética negativa – com o suicídio. […] No suicídio, que não é uma atitude condenável sem ser uma atitude recomendável, não abrimos as entranhas do ser no ser-esse-aqui, não deixamos que o outro entre no espaço do existente, mas nos retiramos da existência como um todo[...]. Na hospitalidade, abrimos as portas para o outro, para aquilo que não é o que somos – para aquilo que nem sequer está nos cálculos que fizemos para suportar o confinamento e que preencheram nossas paredes, dando-nos conforto e dia seguinte. Uma interrupção é uma negação, porque ela nos responsabiliza por um outro que não está nos planos, que não está no nosso horizonte. Ela nos traz um outro sol quadrado, e com outros ângulos, com outros vértices, que nem traçamos com nossa régua e compasso. O sol do outro é ainda quadrado, e o confinamento também lhe traz a náusea, e é a náusea do outro que bate a nossa cela […]. Porém, a náusea do outro interrompe e assim nega aquilo que sou. A negação da interrupção não é prelúdio de uma salvação pelo outro – a responsabilidade é interminável. A negação da interrupção não traz um prenúncio de superação nem de redenção. Ela traz apenas interrupção.
Em contraste, Cabrera propõe uma ética negativa da abstenção. Trata-se de se recusar a ampliar a prisão. Não colocar mais ninguém na condição miserável e sem saída da existência. A negação vem não de me retirar do confinamento, mas de não pôr mais ninguém nele. E importa que não seja mais ninguém em particular; ou seja, um outrinho qualquer […] que não merece o confinamento da existência. Que não entre mais ninguém nessa colônia penal, é o que diz a divisa ética (negativa) que Cabrera favorece. Não se poderia desejar a ninguém o confinamento – só fazemos isso por um engano moral que termina por manipular o outrinho-que-vem (ou o outrinho-que-pode-vir). [...] Se a negação por interrupção faz parar o existente de ser o que é, a negação por abstenção proíbe a multiplicação de existentes. O existente não pode ser negado – mas o existente-que-vem pode ser evitado.
Quero ver duas formas de negação aqui – o suicídio, a autoeliminação, é uma terceira forma – e assim três pontos no espaço lógico das éticas negativas. Porém essa diversidade de éticas negativas esbarra com uma tese que penso que Cabrera gostaria de manter: o que faz uma ética ser negativa é ter como corolário a imoralidade da procriação. Esta seria a pedra de toque de toda ética negativa; condição necessária para uma genuína negatividade em ética. Talvez haja espaço para que outras coisas sejam distintas em uma ética negativa não cabrereana, mas ela não seria negativa se não condenasse moralmente a procriação. E mais, parece-me que Cabrera se comprometeria com uma tese ainda mais forte: o corolário da imoralidade da procriação se aplica em todos os casos, implica uma proibição tout court. [...]
Do ponto de vista da interrupção, como podemos pensar na procriação? Diante da minha afirmação de que, se a ética se ocupa de responder aos outros, não há outro a ser respondido quando se trata de um não-existente, refém de uma descrição que pode ser circunstancial ou estrutural, Cabrera argumenta que o outrinho
não é simplesmente um não-existente; ou, melhor, ele é um não existente muito peculiar. Penso que o outrinho não deve ser levado em especial consideração ética por ser não existente, mas por ser um não-existente que está sendo planejado como existente dentro de projetos alheios, sem qualquer chance de escolher. É um não existente injustiçado, manipulado, e é isso o que me importa. Você escreve: “[...] o outrinho que não existe torna irrelevante qualquer outro outro que passa a não precisar (eticamente) ser respondido”. E sim, assim é realmente. Mas o outrinho não tira esse imenso privilégio do longínquo fato ontológico de ser um mero não existente; a sua vantagem não é sobre os existentes por meramente ser um não existente, mas por ser um não existente sendo manipulado por existentes. É a manipulação o que lhe dá direitos especiais, e não o fato de ser um não-existente. Não há aqui, pois, nenhum privilégio geral, ontológico, do nada sobre o ser, mas um privilégio ético de um manipulado se salvar da manipulação, de um prejudicado se salvar do prejuízo […]. (J2)
A defesa do prejudicado (está a ponto de receber uma ordem de prisão) é mais importante que tudo o mais e torna irrelevante qualquer resposta a outro outro. Todo outro outro é considerado iníquo, imoral se acata o prejuízo do outrinho. Trata-se de uma escolha pelo manipulado em detrimento dos manipuladores – com respeito a estes últimos, nenhuma responsabilidade cabe; eles podem ser ignorados. É certo que o não-existente que é objeto da manipulação (com consequências futuras) dos existentes e que está sendo prejudicado por ele (no futuro) confere ao projeto de outro um estatuto especial. No entanto, não o transforma em mais do que aquilo que satisfaz uma descrição, estrutural em termos de um nascituro, e específica em termos das manipulações particulares em torno do qual se trama a vinda ao mundo de um nascituro em particular – as descrições que inauguram as tramas de famílias nas quais o nascituro é pensando como um movimento no jogo do familismo. A manipulação e o prejuízo o fazem especial, mas ainda não fazem dele um outro. A observação de Cabrera faz pensar em tudo o que há no que não há. De um ponto de vista da negação como interrupção, o nada é parte da paisagem de quem carrega o fardo de ser – eu posso ver distintamente, quando pinto a janela na parede da minha cela, o outrinho manipulado, e os manipuladores e o prejuízo de quem sai dos campos livres para carregar pedras em uma colônia penal. E nego esse ser que eu vejo da minha janela pintada – abstenho-me, e até impeço-o se me couber fazer algo a seu respeito. Se a procriação aparece como um projeto em minha agenda, posso tomá-la como uma imoralidade em minha cela – e mesmo afirmar ou celebrar minha cela, já que dela me salvo de uma imoralidade. Porém, se a procriação aparece como um projeto de outra agenda, eu tenho que responder a um outro existente. Aqui, e talvez só aqui, as negações se oponham: guiado pela interrupção, eu cindo minha agenda e abrigo a escolha alheia; guiado pela abstenção, eu mantenho minha agenda e descarto a escolha alheia.
Há um sentido em que, ao me orientar pela interrupção, eu permito que a colônia penal se expanda; há um sentido em que, ao me orientar pela abstenção, eu afirmativamente sustento o edifício moral que pintei dentro da minha cela. A aposta [de uma] se coloca interminavelmente responsável pelos outros e assim se desvia do caráter usurpador da afirmação do ser. A aposta da abstenção é a daqueles que procuram se livrar de todo ônus em fabricar mais um prisioneiro e, assim, impedem a prisão de se expandir. Do ponto de vista da [interrupção], abrimos as portas para os outros mesmo quando eles estão às voltas com manipulações, porque é a resposta que interrompe e é a interrupção que cinde o fardo de um existente. É dos outros, e não da minha cela, que surge a justiça – uma ética da interrupção é a posteriori, ela surge a partir da resposta e, portanto, depois do outro ao qual se endereça a resposta não antes dela – a interrupção é uma experiência. E a resposta é dada a quem está ao pé da [porta]. […] A interrupção, porque vem de fora do meu fardo e da minha cela, fraciona o ser-esse-aqui. Ela é uma negação da terminalidade, porque sobre a existência ela incide um interminável, uma disponibilidade e uma desproteção. A ética da interrupção recomenda que não protejamos aquilo que somos, que nos deixemos ser atravessados, já que, ao desistir da afirmação da existência, desistimos sobretudo das cercas que protegem aquilo que somos do apelo de todos os outros. Diante do confinamento, a ética da interrupção responde: não serei eu mais um porteiro da minha própria cela.
A moral do começo está as voltas com as inconveniências de ter nascido. E então as voltas com o desacerto moral de fazer nascer. Este desacerto orienta o antinatalismo de Julio Cabrera – entre outros. E, assim, dá vazão ao que ele chamou de ética negativa. O caráter inteiramente dialógico do livro fez com que a ética negativa ela mesma se mostrasse mais do que uma – ainda que esta pluralidade não esteja no marco do reconhecimento mútuo.
Gostaria de focar brevemente nessa multiplicação, em particular na alternativa de ética negativa que proponho. Com o intuito de tentar oferecer uma ideia do que consistiria esta outra ética negativa, me refiro a uma das minhas cartas, H3:
"A ética negativa sistematicamente rejeita que caiamos de amores pelo ser. É certo que estamos no ser se existimos e não podemos deixá-lo de lado quando pensamos e nem sequer podemos deixar de pensar no ser; porém não é ele, mas sua negação, que orienta a ética. A atitude da ética negativa é a de que o apego ao ser não conduz a ética – ainda que a situação de ser seja a condição de possibilidade de qualquer ética. Uma pergunta que surge do caráter negativo da ética é talvez de cunho lógico (ou talvez mesmo a única pergunta de cunho lógico): que é a negação ou, antes, o que se faz quando se nega? Como há muitos procedimentos lógicos – formais ou não, formalizáveis ou não, sistemáticos ou não, sistematizáveis ou não – a pergunta geral sobre a negação se esvai. Não podemos tratá-la senão por meio de um certo ar de família em cada um desses procedimentos, e talvez esse ar de família dê origem – para usar outra imagem emaranhada com essa por Wittgenstein – a um espaço lógico: como as cores ocupam o mesmo espaço lógico, e também as razões, assim é com as negações. O espaço lógico das negações aponta para o espaço lógico das éticas negativas.
Ainda que eu não possa encontrar uma maneira de contemplar esse espaço lógico, creio que haja um modo de começar a explorá-lo contrapondo a negação de que faz uso Cabrera em seu sistema de ética negativa – e que descrevo como uma decisão de abstenção – com uma outra negação – que chamo de interrupção. Na primeira negação, ao existente se contrapõe o não-existente; decidimos pelo não-existente ao nos abster […] da geração de existentes. Trata-se de negar o ser através da abstenção de ontogênese (de heterogênese, como eu chamei em um texto [da] controvérsia, ou de procriação, como Cabrera chama usando um termo mais habitual). Na segunda negação, em contraste, […] o ser do existente é rachado, cindido e invadido – é outro que, por seu intermédio, se aloja no seu ser. A desistência de ser, para compor uma ética negativa, é uma decisão. Se, em uma negação, o escopo está no outro existente, na outra está no que sou quando existo; é o que sou quando existo que é atravessado pelo outro existente, interrompido, destituído. Em ambos os casos, a negação e a ética negativa se enredam com o outro existente, aquele personagem em torno do qual gira a ética se ela se distingue de um exercício renitente de cuidado de si.
Para entender a interrupção como negação – e a hospitalidade radical como ética negativa –, talvez possamos começar com a noção de terminalidade, sobre a qual Cabrera insiste. A insuficiência do ser, que se traduz na alterabilidade do que é e na natureza rarefeita do pensamento, torna-o refém da terminalidade: não porque o ser termine, mas porque ele é feito de terminalidade. É como se o ser não fosse mais do que becos sem saída, fronteiras muradas, cercas de arame farpado e grades. A ontologia é um exercício de limitação, de acabamento, de terminação, ela mesma produz um mal-estar, uma náusea de estar preso, já que o ser é grilhão. […] A náusea de estar preso não é, ela mesma, a angústia de um nada, é um horror ao ser – o não-ser não é aquilo que merece esforços para evitar, mas é onde notamos um fora do que somos, um ponto de fuga.
Os outros […] compartem o confinamento ainda que em outras celas – mais que isso, carregar o ónus de existir é carregar o ónus de coexistir, já que não existe senão uma colónia prisional com diversas formas de recinto, de grade e de limitação. Ser-esse-aqui é estar entre os outros sob uma forma, em uma situação, submetido a uma condição. […] O outro existente está nos meandros de outro confinamento. Ele está nas maresias do ser, é certo, porém em outras maresias e a náusea de existir lhes chega às bordas de outras maneiras. Sobretudo, o confinamento do outro não é o meu confinamento: eu não sou o outro, eu não posso ser o outro, ainda que seja no espaço onde há o outro que eu fico confinado [...]. Uma ética negativa considera a condição ética com respeito aos códigos das prisões; é por isso que as observações de Primo Levi (em Os afogados e os sobreviventes)1 sobre a zona cinzenta onde algozes são também vítimas não são notas sobre ética aplicada ou sobre a biopolítica do lager, mas elas surgem como prolegômenos a toda ética negativa. Os dilemas aparecem no contexto prisional e podemos pensar a negação através dessa imagem: há o fora, o grande fora, alheio a todo confinamento (e, portanto, a todo ser) e que nega cada uma das celas, cada uma das jaulas; há também os outros prisioneiros em outros recintos que são (confinados) também, mas não se confinam pelo que me confina, já que não são o que eu sou. Os outros não negam a terminalidade; eles negam a terminalidade que me encontra, que se apega a mim. Já o fora não é terminal; é o ponto de fuga, para onde o prisioneiro escapa se se evade […] para lá dirijamos nossos planos de fuga, lá [vislumbro ainda sem entender] um ser que não sou; é de lá que aparecem as forças dos desejos. Os desejos nos conduzem para [fora …,] o desejo aponta para fora, para fora de si, para fora do que eu sou. O desejo aponta para uma alteração, para onde eu não estou.
Se pensamos a negação como interrupção, pensamos na negação como aquilo que ocorre dentro do complexo prisional mesmo que haja muros e um [fora] para além dos muros. O ser – o confinamento – é ele mesmo cindido, rachado, feito de caquinhos. É o meu ser que é interrompido, já que o confinamento em geral não tem soleira; é ao pé do meu quinhão de ser que batem à porta – ao ser não se telefona, não se manda mensagem de texto. O que ocorre na interrupção é que a coexistência deixa de ser o pano de fundo que me traz à cela [...] e passa a ser um outro prisioneiro à minha grade, um outro prisioneiro que irrompe na minha cela e que me apresenta um pedido que não é mais do meu mesmo, mas que requer uma resposta e me impinge uma decisão. […] Nenhuma das colagens grandiosas que eu fiz na minha cela para que eu suporte o confinamento, nenhuma das artimanhas que permitem que da minha parede eu enxergue linhas de fuga e contemple, com olhos engajados, vãos pelos quais tudo me parece mais suportável, já que surgem avenidas que parecem saídas, nenhuma dessas minhas decorações de cela – nem meus sistemas metafísicos, nem o enfileiramento das conquistas das ciências e nem sequer meu sistema moral acabado e retocado – está à prova de interrupção. É esse o caráter cindido sobre ele mesmo, traiçoeiro, incompleto e repleto de outro que confere ao ser uma ética negativa baseada na interrupção. O outro que bate à minha cela não está previsto no sistema das coisas que ocupa minhas paredes – não está antecipado, não cabe na minha imagem e nem na minha semelhança. E o outro ao pé da cela pode ser um qualquer, e seus pedidos podem me colocar em uma situação de responsabilidade. Essa responsabilidade, ela sim, pode ter um caráter que contrasta com a terminalidade, com o confinamento de tudo o que existe – a responsabilidade é ilimitada, não termina e nem sequer termina quando […] deixo de ser existente.
Essa responsabilidade interminável diante do confinamento é a cena em que aparece a inabilitação moral – e é talvez, ela mesma, a responsabilidade interminável, que nos coloca no confinamento, já que existir é estar à mercê do que conosco coexiste. À mercê não porque nos podem ferir ou nos podem impedir o caminho – e é certo que podem – mas à mercê porque nos pedem e nos obrigam a decidir como responder. É essa interrupção que importa de um ponto de vista negativo: somos responsabilizáveis, somos postos a dar respostas que criam uma cisão dentro de qualquer das nossas celas mesmo aquelas com as melhores decorações metafísicas ou morais. A ética negativa aqui é uma espécie de impossibilidade que se associa ao esquálido que é o ser, à náusea grudada na existência. É aqui que se conecta a terminalidade – o confinamento compresso na responsabilidade interminável – com o pluralismo. [...]
É certo que podemos fechar os buracos da cela e nos contentar com nosso confinamento, com nossa própria jaula – não precisamos responder a nada. Podemos apenas cuidar de nossas paredes – de nossos sistemas metafísicos e morais. Se agimos assim, estamos agindo de um modo afirmativo, estamos celebrando o ser, afirmando nosso ser e não desistindo dele; a atitude afirmativa é a de não se deixar interromper, já que vale muito o que estamos fazendo, vale muito nosso quinhão de ser, vale muito nossa existência. A atitude [alternativa] é a de alojar a interrupção, abrir a porta e considerar que a interrupção é o que, por um instante e na coexistência, me arranca da náusea de mim, da náusea de ser o que sou: é assim que a hospitalidade é negativa. Vale notar que a hospitalidade não é a desistência de pintar as paredes da cela. Antes ela requer que estejam pintadas (e ainda sempre sendo pintadas) as paredes da cela. Não se trata de desistir de ser, mas de abrigar quem interrompe no ser. Podemos assim contrastar a hospitalidade – como base da ética negativa – com o suicídio. […] No suicídio, que não é uma atitude condenável sem ser uma atitude recomendável, não abrimos as entranhas do ser no ser-esse-aqui, não deixamos que o outro entre no espaço do existente, mas nos retiramos da existência como um todo[...]. Na hospitalidade, abrimos as portas para o outro, para aquilo que não é o que somos – para aquilo que nem sequer está nos cálculos que fizemos para suportar o confinamento e que preencheram nossas paredes, dando-nos conforto e dia seguinte. Uma interrupção é uma negação, porque ela nos responsabiliza por um outro que não está nos planos, que não está no nosso horizonte. Ela nos traz um outro sol quadrado, e com outros ângulos, com outros vértices, que nem traçamos com nossa régua e compasso. O sol do outro é ainda quadrado, e o confinamento também lhe traz a náusea, e é a náusea do outro que bate a nossa cela […]. Porém, a náusea do outro interrompe e assim nega aquilo que sou. A negação da interrupção não é prelúdio de uma salvação pelo outro – a responsabilidade é interminável. A negação da interrupção não traz um prenúncio de superação nem de redenção. Ela traz apenas interrupção.
Em contraste, Cabrera propõe uma ética negativa da abstenção. Trata-se de se recusar a ampliar a prisão. Não colocar mais ninguém na condição miserável e sem saída da existência. A negação vem não de me retirar do confinamento, mas de não pôr mais ninguém nele. E importa que não seja mais ninguém em particular; ou seja, um outrinho qualquer […] que não merece o confinamento da existência. Que não entre mais ninguém nessa colônia penal, é o que diz a divisa ética (negativa) que Cabrera favorece. Não se poderia desejar a ninguém o confinamento – só fazemos isso por um engano moral que termina por manipular o outrinho-que-vem (ou o outrinho-que-pode-vir). [...] Se a negação por interrupção faz parar o existente de ser o que é, a negação por abstenção proíbe a multiplicação de existentes. O existente não pode ser negado – mas o existente-que-vem pode ser evitado.
Quero ver duas formas de negação aqui – o suicídio, a autoeliminação, é uma terceira forma – e assim três pontos no espaço lógico das éticas negativas. Porém essa diversidade de éticas negativas esbarra com uma tese que penso que Cabrera gostaria de manter: o que faz uma ética ser negativa é ter como corolário a imoralidade da procriação. Esta seria a pedra de toque de toda ética negativa; condição necessária para uma genuína negatividade em ética. Talvez haja espaço para que outras coisas sejam distintas em uma ética negativa não cabrereana, mas ela não seria negativa se não condenasse moralmente a procriação. E mais, parece-me que Cabrera se comprometeria com uma tese ainda mais forte: o corolário da imoralidade da procriação se aplica em todos os casos, implica uma proibição tout court. [...]
Do ponto de vista da interrupção, como podemos pensar na procriação? Diante da minha afirmação de que, se a ética se ocupa de responder aos outros, não há outro a ser respondido quando se trata de um não-existente, refém de uma descrição que pode ser circunstancial ou estrutural, Cabrera argumenta que o outrinho
não é simplesmente um não-existente; ou, melhor, ele é um não existente muito peculiar. Penso que o outrinho não deve ser levado em especial consideração ética por ser não existente, mas por ser um não-existente que está sendo planejado como existente dentro de projetos alheios, sem qualquer chance de escolher. É um não existente injustiçado, manipulado, e é isso o que me importa. Você escreve: “[...] o outrinho que não existe torna irrelevante qualquer outro outro que passa a não precisar (eticamente) ser respondido”. E sim, assim é realmente. Mas o outrinho não tira esse imenso privilégio do longínquo fato ontológico de ser um mero não existente; a sua vantagem não é sobre os existentes por meramente ser um não existente, mas por ser um não existente sendo manipulado por existentes. É a manipulação o que lhe dá direitos especiais, e não o fato de ser um não-existente. Não há aqui, pois, nenhum privilégio geral, ontológico, do nada sobre o ser, mas um privilégio ético de um manipulado se salvar da manipulação, de um prejudicado se salvar do prejuízo […]. (J2)
A defesa do prejudicado (está a ponto de receber uma ordem de prisão) é mais importante que tudo o mais e torna irrelevante qualquer resposta a outro outro. Todo outro outro é considerado iníquo, imoral se acata o prejuízo do outrinho. Trata-se de uma escolha pelo manipulado em detrimento dos manipuladores – com respeito a estes últimos, nenhuma responsabilidade cabe; eles podem ser ignorados. É certo que o não-existente que é objeto da manipulação (com consequências futuras) dos existentes e que está sendo prejudicado por ele (no futuro) confere ao projeto de outro um estatuto especial. No entanto, não o transforma em mais do que aquilo que satisfaz uma descrição, estrutural em termos de um nascituro, e específica em termos das manipulações particulares em torno do qual se trama a vinda ao mundo de um nascituro em particular – as descrições que inauguram as tramas de famílias nas quais o nascituro é pensando como um movimento no jogo do familismo. A manipulação e o prejuízo o fazem especial, mas ainda não fazem dele um outro. A observação de Cabrera faz pensar em tudo o que há no que não há. De um ponto de vista da negação como interrupção, o nada é parte da paisagem de quem carrega o fardo de ser – eu posso ver distintamente, quando pinto a janela na parede da minha cela, o outrinho manipulado, e os manipuladores e o prejuízo de quem sai dos campos livres para carregar pedras em uma colônia penal. E nego esse ser que eu vejo da minha janela pintada – abstenho-me, e até impeço-o se me couber fazer algo a seu respeito. Se a procriação aparece como um projeto em minha agenda, posso tomá-la como uma imoralidade em minha cela – e mesmo afirmar ou celebrar minha cela, já que dela me salvo de uma imoralidade. Porém, se a procriação aparece como um projeto de outra agenda, eu tenho que responder a um outro existente. Aqui, e talvez só aqui, as negações se oponham: guiado pela interrupção, eu cindo minha agenda e abrigo a escolha alheia; guiado pela abstenção, eu mantenho minha agenda e descarto a escolha alheia.
Há um sentido em que, ao me orientar pela interrupção, eu permito que a colônia penal se expanda; há um sentido em que, ao me orientar pela abstenção, eu afirmativamente sustento o edifício moral que pintei dentro da minha cela. A aposta [de uma] se coloca interminavelmente responsável pelos outros e assim se desvia do caráter usurpador da afirmação do ser. A aposta da abstenção é a daqueles que procuram se livrar de todo ônus em fabricar mais um prisioneiro e, assim, impedem a prisão de se expandir. Do ponto de vista da [interrupção], abrimos as portas para os outros mesmo quando eles estão às voltas com manipulações, porque é a resposta que interrompe e é a interrupção que cinde o fardo de um existente. É dos outros, e não da minha cela, que surge a justiça – uma ética da interrupção é a posteriori, ela surge a partir da resposta e, portanto, depois do outro ao qual se endereça a resposta não antes dela – a interrupção é uma experiência. E a resposta é dada a quem está ao pé da [porta]. […] A interrupção, porque vem de fora do meu fardo e da minha cela, fraciona o ser-esse-aqui. Ela é uma negação da terminalidade, porque sobre a existência ela incide um interminável, uma disponibilidade e uma desproteção. A ética da interrupção recomenda que não protejamos aquilo que somos, que nos deixemos ser atravessados, já que, ao desistir da afirmação da existência, desistimos sobretudo das cercas que protegem aquilo que somos do apelo de todos os outros. Diante do confinamento, a ética da interrupção responde: não serei eu mais um porteiro da minha própria cela.
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