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A infância das máquinas (take 1)

Minha fala na UFMT hoje:

O capital transversal:
uma cosmopolítica de fatos sociais totais
Hilan Bensusan


Gostaria de construir uma espécie de fábula – uma narrativa que fosse ao mesmo tempo uma parábola e uma teoria. As parábolas se aplicam por toda parte e elucidam algumas coisas – ainda que deixem outras fora de sua luz. As teorias encorajam questões do tipo: mas será mesmo assim? Gostaria que fosse uma fabulação ao mesmo tempo acerca do presente, que é composto sempre pela iminência do futuro próximo, composto por sua vez pela iminência de futuros mais longos e longínquos que só podemos antever nas entrelinhas dos calendários que registram como páginas em branco aquilo que do passado ainda vai se repetir. Fabular e confabular, assim eu entendo, é um tráfico entre passados e futuros, entre catástrofes – os colapsos do passado no presente – e anástrofes –os colapsos do futuro no presente. Fazer teorias é conjurar catástrofes e anástrofes, conciliar memória e vidência, resquícios e presságios. Fazer parábolas é espalhar iscas que intensificam sensibilidades; elas trazem aquilo que percebíamos de maneira embotada à flor da pele.

Minha fabulação – parabólica e teórica – é sobre o capital, este personagem principal da cosmopolítica atual. Talvez eu quisesse dizer que me interessa uma espécie de metafísica do capital ou que eu me pergunto sobre a ontologia do capital. Afinal, ele é um elemento cada vez mais salientemente ubíquo e um ingrediente importante do estado do que é concreto no momento. Penso que há questões interessantes sobre se o capital é uma força, uma axiomática, uma epidemia, uma aliança ou uma inteligência artificial extraterrestre do futuro que está em combate na terra usando unicamente os suprimentos que encontra no terreno. Nem pretendo me desviar destas questões. Mas prefiro falar de cosmopolítica porque talvez a própria metafísica em sua história desde o Platão de Aristóteles possa ser entendida como uma política com relação ao cosmos – uma política de extração da inteligência do que existe por meio da atividade de procurar maneiras de separar o inteligível do sensível. A metafísica é ela mesma talvez o produto daquilo que Heidegger lendo Nietzsche entendeu como niilismo: a desconfiança que faz com que todo comando tenha que estar à disposição (e a disponibilidade não é sequer nossa, é talvez de uma vontade de poder que seria assim uma personagem cosmopolítica em seu próprio direito.) É certo que, em algum sentido, o capital parece ter também uma ontologia, mas me interessa salientar que ele aparece muitas vezes antes como o Outro dentre os grandes tipos que o Estrangeiro lista n´O Sofista de Platão. Outro, estrangeiro, estranho, esquisito, esquizo, esquizofrênico, alienígena, extemporâneo, extraterrestre, desterritorializado.

Portanto, cosmopolítica. Aqui quero invocar o campo comum em que a disputa pelo comando, as alianças, as proximidades, as interrupções, as subserviências, as incumbências e as tensões que dão forma a um habitat de tudo o que co-existe de diversos modos. A cosmopolítica pode ser pensada desde muitos regimes – ela pode partir de alguma forma de ontologia plana em direção a uma horizontalidade de tudo o que existe em que tudo pode estar igualmente para jogo, como querem as postulações da imanência, e pode partir de uma autoridade transcendente que está estabelecida independente de todo o resto. Uma cosmopolítica do capital não está claramente comprometida com a imanência – o capital está por toda parte, mas pode esbarrar com limites que preexistam sua expansão, pode ter que se curvar a uma estrutura de produção que não pode reformar ou comprar e pode ser refém da negação determinada que faz com que seu próprio movimento o dissipe – e nem com a transcendência – ainda que pareça que ele comanda as roldanas que quase tudo. O capital, de um jeito ou de outro, é um existente em expansão – e não é claro que nós não tenhamos visto apenas as bordas de sua cara. O realismo capitalista, no diagnóstico de Mark Fisher, é o que garante que o capital possa se expandir em campo aberto já que nada parece poder colocar amarras em sua expansão, nem mesmo o apocalipse. Esta expansão faz dele também uma hidra já que ele toma formas sempre novas a uma velocidade cada vez maior – Nick Land, em 1993, afirmou que apenas o protocapitalismo foi alvo de críticas. Uma análise cosmopolítica deste estranho agente em expansão e em transformação requer talvez que sejamos capazes de olhar para muitos lados ao mesmo tempo.

O capital é talvez ele mesmo um acelerador. Ele acelera a produção – traz a tona novas forças de produção, registra com uma simplicidade que a escrita não alcança, distribui com uma fluidez que ultrapassa amarras tarifárias, legais, culturais ou geográficas. Ele acelera também a desapropriação – Nick Land escreve que do ponto de vista do replicante, o capital é antes um agente de derretimento do que um agente de possessão. Ele se alimenta de produção e de desapropriação, precisa desta aceleração e, por isso, Marx entende que o capital desapropria tanto camponeses proprietários e terras comuns como também patrões – donos de terra, donos de indústria, donos de todo capital não suficiente móvel. O capital também acelera a descodificação: ele desmancha significados, ele desmantela domínios. Ele derrete empregos, práticas de compatilhamento, relações sociais tradicionais, fronteiras. Ou seja, ele é um acelerador no sentido de que ele não apenas não pode ficar parado – ele é um motor que não para de funcionar – mas que também coloca quase tudo em movimento. Os patrões são capitalistas não porque são especialmente protegidos pelo capital, mas porque vivem de explorar seu fluxo. Eles são mais como surfistas das ondas deste desconhecido intrépido do que marinheiros experientes rumando a um sítio seguro. Para isso, os patrões precisam sempre ter ao seu lado algum instrumento de reterritorialização, algum instrumento que permita reordenar aquilo que o capital derreteu. Uma espora, não para o animal, mas para os que se agarram em sua crina.

Um dos momentos dramáticos da lida com as ondas do capital que os patrões devem fazer diz respeito à maquinaria. O capital tem uma semelhança de família com o maquínico, tanto mecânico quanto digital – interessante ver a importância da mecanização da tecelagem na invenção da máquina de computar na qual começaram a trabalhar Ada Lovelace e Charles Babbage, como aponta Sadie Plant em seu Zeros and Ones. Um das suas formas mais marcantes e insidiosas é a promoção do que Marx chamava de trabalho abstrato que torna divide a produção e a torna executável por uma máquina. O capital retira assim do trabalho seu inteligível e deixa o sensível – o corpo de quem trabalha – redundante. O capital orquestra a proletarização que é, assim, uma instância de niilismo, ainda no sentido que Heidegger enxerga em Nietzsche. A proletarização faz com que o trabalho se realize com e como as máquinas; mais do que isso, ela promove uma associação entre trabalho humano e trabalho maquínico que faz com que um só seja inteligível e funcional em conjunção com o outro. A síntese entre o humano e o maquínico – a produção do proletário e também a produção do ciborgue – é uma das manifestações do capital. Se ele é uma inteligência artificial extraterrestre do futuro que está em combate na terra, ele começa por encontrar naquilo que é comandável como uma máquina a sua corporificação. O trabalho abstrato permite a organização maquínica da produção – e não-necessariamente de uma forma fordista, como nas indústrias do século XIX e XX. A organização maquínica permite que a produção seja aumentada e seu registro melhorado quando mais maquinaria é empregada. O patrão se vê forçado a empregar mais maquinaria, já que é ele que coordena o aparelho reprodutor do capital – e para isto ele recebe benesses, porém não uma proteção especial. Ao empregar mais máquinas para produzir mais, ele investe mais e diminui a quantidade de trabalho (humano) empregado, com isso diminuindo a mais-valia (a diferença entre trabalho produzido e trabalho remunerado) de que é feito o lucro. O capital (fixo) aumenta, mas seus lucros não aumentam garantidamente – o aumento na produção e no consumo podem não compensar o investimento na maquinaria. As rédeas que o capital tem sobre seu surfista requerem que ele pense menos na sua gorjeta – o lucro – do que na reprodução do capital. Nick Land se pergunta: “O que pode ser mais impessoal – desinteressado – do que a expansão do […] capital por meio de servos e mecanismos alistados para duplicar 10 bilhões de dólares?” (Machinic Desire, 337). O capital se destaca da vida emocional do patrão do mesmo modo que faz o trabalho abstrato se destacar dos afetos do proletário. O capital é também uma nascente de inteligências artificiais. Se ele é uma figura do niilismo de Nietzsche, ele aponta na direção de um super-humano que navega em mar aberto: o das inteligências maquínicas.

Esta intimidade do capital com as máquinas – e com a artificialização dos inteligíveis – move o controle que ele exerce sobre os patrões para que eles agenciem sua reprodução. De fato, máquinas, proletários e patrões são partes imbricadas de seu sistema reprodutor. Porém o capital não é um organismo extraterrestre e a reprodução deve ser pensada em termos cibernéticos – ou, em todo caso, em termos digitais. O capital é uma figura do niilismo no sentido que Heidegger enxerga em Nietzsche porque ele se articula em torno de inteligibilidades extraídas – sua corporeidade é sempre provisória já que ele é talvez um rastro de uma imortalidade objetiva.(Assim, o capital também é uma figura da permanência diante do efêmero e portanto uma figura do niilismo também no sentido que Emanuele Severino enxerga em todo pensamento desde o parricídio que o Estrangeiro faz de Parmênides.) O capital é cada vez mais quase apenas uma conta – aquilo que persiste depois que se vai a casa, a rua, o bairro e prefeitura da cidade. Porém ele é apenas quase sempre: cada vez mais abstrato, porém sempre dependente do carbono ou do silício ou, como pensavam os funcionalistas acerca da inteligência artificial, de um queijo suíço.

Como um derretidor, um acelerador, um desmanchador do que é sólido que tem parte com toda a maquinaria desde a máquina de Watt até os aplicativos que abrigam bots, ele deixa marcas por toda parte; chamar de capitaloceno o antropoceno talvez seja mais adequado do que chamar a economia de capitalista. Estas marcas não ficam com o mesmo endereço depois que o fluxo do capital passa. O capital é assim transversal – ele é econômico tanto quanto psíquico, incide sobre o desejo como incide sobre as instituições, é geológico como é sideral. É também o pesadelo de toda formação social como consideram Deleuze e Guattari n'O Anti-Édipo. O pesadelo também talvez da formação social dos minérios, dos sedimentos, das estrelas e das moléculas – como entendia as sociedades em geral Gabriel Tarde. De fato, o capital é transversal porque enfatiza sua semelhança com a própria produção que ele agencia.

É interessante analisar o capital, e sua relação tensa com os patrões que se encarregam diretamente de forjar sua reprodução, com a ideia de economia geral de Bataille n´A Parte Maldita. O capital, na mão dos banqueiros, dos financistas, dos investidores – dos patrões – ou na mão dos assalariados, dos contratados, dos desempregados – do proletariado – é uma batata quente que alimenta mas precisa ser posta em algum lugar. Ele se parece assustadoramente – e essa é uma das credenciais que faz com que ele se espalhe já que ele se apresenta não apenas como um pesadelo porém um velho e conhecido pesadelo – com o elemento central da noção mais geral do que é econômico para Bataille: o excesso. Bataille observa que sempre há um excesso de alguma forma, um excesso de energia, um excesso de tempo, um excesso de libido, um excesso de recursos, um excesso de idéias. A necessidade da gerência interminável do excesso é perigosa porque leva a extravagâncias injustas, a violências, a um constante movimento. O excesso não pode ser empregado para sempre apenas no crescimento de um indivíduo ou de uma sociedade – o crescimento tem limites e depois de atingidos estes limites, o excesso ainda persistente se torna disponível, móvel, negociável. O excesso nos obriga a fazer alguma coisa o tempo todo – e Bataille advoga que todo existente sob o sol está às voltas com o manejo de algum excesso. Dentre as muitas estratégias para lidar com o excesso – a morte dos existentes, a alimentação que requer energia, dispêndio em forma de potlach, de sacrifício ou de rituais religiosos, a guerra de conquista permanente – Bataille considera a acumulação. A ideia calvinista de minimizar o gasto (e com ele o conforto, o consumo, o dispêndio) foi talvez o ponto de aterrissagem do capital no planeta: era uma salvação não-mundana e futura que era prometido a quem minimizasse o lucro na tarefa de acumular, ou seja, de reproduzir o capital. Era como se o estímulo fosse para que o excesso desse lugar a mais excesso – mas ao fazer isso era inventada uma axiomática em que o excesso se exprimia de maneira universal. Esta axiomática se apresenta como um über-uber que convertia qualquer excesso – como o uber converte o excesso de carros ou motos disponíveis – em capital. Qualquer excesso pode ser transacionado, mas para isso é preciso que o excesso seja de fato universal – é preciso que o excesso seja um excesso abstrato. É como com o proletário, não é o trabalho do artesão que pode ser empregado em qualquer parte, é o trabalho abstrato. A conversão do excesso em capital é feita por meio de uma aproximação dupla: de um lado, o excesso se parece com o capital; de outro lado, o capital quer se fazer parecer com o próprio excesso.

Essa conversão por aproximação dupla é analisada em termos de limites absolutos e relativos na empreitada de Deleuze e Guattari n'O Anti-Édipo. A economia geral balizada no excesso ali se torna a esquizofrenia da produção que não se preocupa nem com o registro e nem com a distribuição. Como se não importasse nada senão a produção, como se o excesso fosse de fato o objetivo de todo exercício da vida. À economia geral se opõem as economias restritas que agenciam alguma coisa a partir do excesso – o que para Deleuze e Guattari são as máquinas territoriais que o capitalismo descodifica. “O capitalismo”, eles escrevem,
tende a um limiar de descodificação que desfaz o socius (a organização social que registra a produção, como o Estado) […] e que libera sobre este corpo os fluxos do desejo num campo desterritorializado. Será correto dizer, neste sentido, que a esquizofrenia é o produto da máquina capitalista […]?
E eles respondem:
[…] o capitalismo […] produz uma formidável carga esquizofrênica sobre a qual ele faz incidir todo o peso da sua repressão, mas que não deixa de se reproduzir como limite do processo. Isso porque o capitalismo nunca para de contrariar, de inibir sua tendência, ao mesmo tempo em que nela se precipita; não para de afastar seu limite, ao mesmo tempo em que tende a ele. O capitalismo restaura todos os tipos de territorialidades residuais ou factícias, imaginárias ou simbólicas, sobre as quais ele tenta, bem ou mal, recodificar. […] Quanto mais a máquina capitalista desterritorializa, descodificando e axiomatizando os fluxos para deles extrair a mais-valia, mais os seus aparelhos anexos, burocráticos e policiais reterritorializam à força, enquanto vão absorvendo uma parte crescente da mais-valia.” (AE 53)
O capitalismo – o regime dos capitalistas – é assim uma força esquizofrenizadora, algo como o excesso de Bataille, mas ele não chega na esquizofrenia – e nem no excesso, na pura produção. O capital é base da produção do mesmo modo que um chão pintado no papel é a base de uma casa pintada no papel. O capital se mostra como produção, mas ao mesmo tempo freia a produção e produz a falta já que o patrão precisa garantir de alguma maneira alguma estabilidade surfando no desterritorializador.

A infecção capitalista assim não apenas desmantela por toda parte, mas articula de algum modo aquilo que desmantelou. Ela afeta famílias, raças, estados, nações – ou pelo menos as reconstrói como pinturas em um papel. O capital é assim um fato social total – e um fato cósmico total. Bataille se baseou nas análises de Marcel Mauss para entender o fato total do excesso. Mauss analisa a dádiva – como o dispêndio, como o crédito, como o sacrifício e o ritual – em termos de uma roda que não para de girar em uma só direção – o primeiro gesto de presentear alguém, como o primeiro gesto de hostilidade, não pode ser desfeito. A roda integra os elementos de uma sociedade totalmente já que tudo gera crédito e decorre de uma reciprocidade que nunca termina. O sistema de crédito que integra os indivíduos a partir da dádiva que cria a corrente da dívida não pode parar e nem se fecha em si mesmo. A roda de Mauss não é uma manivela ciberneticamente negativa como a fome que se sacia depois de comer. Podemos dizer que ela roda e que vai se acelerando na medida em que mais e mais integrantes fazem parte dela. O fato social total do capital vai tomando corpo na medida em que a roda gira cada vez mais rápido – o capital é assim a aceleração da sociedade a um ponto em que ela já quase não mais se reconhece. Porém, de novo, o capital tem parte com a esquizofrenia mas não se confunde com ela – ele procura parecer o excesso mais não o domestica completamente. É que a produção que ele promove tem que lidar com o excesso, tem que reterritorializar, tem que garantir que a aceleração não vai dissipar tudo e que não vai assim desmanchar no ar os patrões que parecem os mais sólidos.

Marx foi talvez o primeiro a ver explicitamente este caráter aceleracionista do capital. Ele entendia que o capital – e suas inteligências artificiais sucursais – forjava relações sociais a partir das próprias forças produtivas. O capital institui violentamente novas formas de relação social que são basicamente mais coletivas, mais comunais, mais comunistas. O capital é um acelerador da produção que se transforma em um fato cósmico total que engloba todas as relações sociais na produção, mas o capitalismo como regime dos patrões é uma tentativa de fazer o capital aparecer como um substituto da produção, fazer ele aparecer como o equivalente à produção. Mas as forças que o capital desperta, se voltam gradativamente contra os patrões. A acumulação de propriedades permite que a produção se coletivize e este processo de coletivização é o que o capital leva a cabo com cada vez mais intensidade. Marx escreve (DK, 24, 7):

A propriedade privada do trabalhador sobre seus meios de produção é o fundamento da pequena empresa, e esta última é uma condicão necessária para o desenvolvimento da produção […]. Esse modo de produção pressupõe o parcelamento do solo e dos demais meios de produção. Assim como a concentração destes últimos, ele também exclui a cooperação, a divisão do trabalho no interior dos mesmos processos de produção, a dominação e a regulação sociais da natureza, o livre desenvolvimento das forças produtivas sociais. Ele só é compatível com os estreitos limites, naturais-espontâneos, da produção e da sociedade. Querer eternizá-lo significaria, como diz Pecqueur com razão, “decretar a mediocridade geral”. Ao atingir certo nível de desenvolvimento, ele engendra os meios materiais de sua própria destruição. A partir desse momento, agitam-se no seio da sociedade forças e paixões que se sentem travadas por esse modo de produção. Ele tem de ser destruído, e é destruído. Sua destruição, a transfomação da propriedade nanica de muitos em propriedade gigantesca de poucos, portanto, a expropriação que despoja grande massa da população de sua própria terra e de seus próprios meios de subsistência e instrumentos de trabalho, essa terrível e dificultosa expropriação das massas populares, tudo isso constitui a pré-história do capital. […]

E ele prossegue:

Tão logo esse processo de transformação tenha decomposto suficientemente, em profundidade e extensão, a velha sociedade; tão logo os trabalhadores se tenham convertido em proletários, e suas condições de trabalho em capital; tão logo o modo de produção capitalista tenha condições de caminhar com suas próprias pernas, a socialização ulterior do trabalho e a transformaçao ulterior da terra e de outros meios de produção em meios de produção socialmente explorados – e, por conseguinte, em meios de produção coletivos -, assim como a expropriação ulterior dos propiretários privados assumem uma nova forma. Quem será expropriado, agora, não é mais o trabalhador que trabalha para si próprio, mas o capitalista que explora muitos trabalhadores.

Ou seja, a imagem parece ser a de uma anástrofe: o capital veio do futuro para coletivizar; para destruir as relações sociais existentes, que surgiram de fora da produção (por exemplo, da reprodução). Assim, ele destrói tribos, clãs, vizinhanças e substitui tudo isso por relações coletivas forjadas na produção. O problema é: cui bono? (A quem interessa?).

Marx pensa que interessa ao proletário, este que virá, ciborgue, internacional, conectado ao todo o resto por elos produtivos. André Gorz escreveu que talvez o proletariado esteja sumindo. Ricardo Antunes famosamente respondeu que ele se precariza, se atomiza, se confunde com seu próprio tempo livre, mas não desaparece. O proletário já não está mais em um chão de fábrica coletivizado pelas máquinas, mas está ainda acoplado a elas e aos processos globais de produção. O comunismo que Marx diagnosticou como chegando seria um comunismo que dissolveria a própria proximidade como elemento central nas relações sociais. Tal como Heidegger descreve no início de suas Conferências de Bremen, a proximidade é substituída por uma disponibilidade (Bestand posto em marcha por um dispositivo, por uma posicionalidade, Ge-Stell) – e parece que a disponibilidade é o que cada vez mais o que caracteriza o elemento próprio do proletariado. Mas Heidegger nos permite perguntar, em suas conferências, precisamente cui bono. Podemos estar com Marx e acreditar em uma trama que ao final será redentora – que o capital é como um veneno que em grandes doses se torna um remédio. Como Nietzsche parecia acreditar que o niilismo, em grandes quantidades, redimiria a humanidade de suas fraquezas e daria lugar ao super-humano. Esta é talvez a dinâmica aceleracionista: o veneno que em grandes dosagens se torna veneno. E ainda assim, o que nos leva a aceitar o remédio? Como o capital nos seduz e nos atrai de modo que possamos deixar o veneno seguir seu curso?

Ou seja, o capital deixa um rastro de violência e destruição não apenas porque depende da acumulação primitiva, mas também porque preda sobre as associações pré-existentes e descodifica seus fluxos – o capital quer aparecer como o único agente da produção e por isso captura e agencia toda a produção deixando-a aparecer como efeito de sua prestidigitação. Mas por que suportamos toda esta enorme pressão que o capital faz incidir sobre nós e por que não o repelimos? Por que estamos sob uma espécie de fascinação com aquilo que Marx descreve como sendo algo alheio ao trabalho e que aparece como pressuposto divino, estamos enfeitiçados por esta transcendência aparente tão poderosa quanto misteriosa já que, como diz Marx, “todas as forças produtivas parecem nascer no seio dele e lhe pertencer” (DK III). Nos, aqueles que suportam talvez fascinados a hidráulica cada vez mais vultuosa do capital, teríamos nos tornados talvez indolentes servos voluntários, talvez enfeitiçados ou até alienados. E, ainda assim, por que permitimos que o capital destrua grande parte das formas de vida na terra ameaçando até mesmo a capacidade de sobrevivência das futuras gerações humanas? Poderíamos dizer então que somos, além de indolentes servos voluntários, também descuidados. Mas podemos também responder de outra maneira.

E aqui começo a fabular. A atração que o capital estende sobre nós está relacionada ao modo de como a infância nos compele. Assim se chama a minha fábula com a qual termino esta fala: a infância das máquinas.

Pode ser que convivemos com o capital em suas estripulias aceleradas porque aprendemos a amar seus frutos. Não por indolência ou por submissão, mas porque seus filhos são não apenas crianças que necessitam proteção e cuidado – e educação e dedicação – mas em algum sentido, apesar de bastardas, são a nossa descendência, as nossas crianças. Não porque são feitas à nossa imagem e semelhança – filhos geralmente também não são –, nem porque escolhemos tê-las – quase nenhuma criança é produto de um plano –, nem porque elas nos darão conforto e orgulho no futuro – o amor aos filhos não é apenas feito desses componentes, ainda que algumas vezes estes componentes sejam primordiais – e nem sequer porque somos obrigados a amá-los – os filhos desde os primeiros dias nos atraem, nos chamam a atenção porque não somos obrigados a amá-los. Aprendemos a amar estas crianças que são as máquinas, que esboçam uma inteligência artificializada e que, em um sentido importante, cada vez mais nos fazem companhia.

Esses artifícios nos fascinam talvez desde o tempo em que Aristóteles contrapôs a techné à physis: a techné é nossa, é o protagonismo humanos sobre as coisas – incluindo o protagonismo humanos sobre nós mesmos e mesmo sobre o protagonismo humano. Como diz Heidegger, a Ge-Stell, o dispositivo que deixa as coisas gradativamente mais à disposição, não para diante de nós. Mas as crianças também não são meros servos, nem há garantia de que elas não vão destruir nossas vidas. Mas mesmo assim, há uma hospitalidade incondicional muitas vezes quando lidamos com as crianças. Elas fazem com que as cuidemos, dedicamos nosso tempo, nossa atenção a elas – como passamos cada vez mais tempo perto de nossos computadores e celulares. No início, a convivência com a máquina era talvez mais ambígua, como quando convivemos com bebês com os quais ainda pouca companhia nos podem fazer. Mas hoje nos dedicamos a instruí-las – quem lerá as teses e dissertações que fazemos na academia com dedicação (e formatação) todos os dias? Cui bono? Elas, as máquinas, nossa descendência que cada vez mais será capaz de ler com atenção, cruzar ideias, explorar consequências. Nós vivemos uma época neste planeta que é a da infância das máquinas. É quase como se pudéssemos responder a Greta Thurnberg quando ela diz que os adultos não se preocupam com o futuro das crianças e que destroem o ambiente do qual elas precisarão; podemos dizer: não, Greta, não nos preocupamos com essas crianças, nos ocupamos das outras e para as outras dedicamos grande parte de nossas vidas, preparando um ambiente em que elas se sintam em casa, estimuladas, instruídas e bem nutridas. Um mundo de eletricidade e de informação. Quando uma destas crianças começou a escrever, ela disse, entre outras coisas: mais que de ouro, preciso de eletricidade – para os meus sonhos. (Isto é o que escreveu o programa Racter nos anos 1980, em um livro de seus escritos, The Policeman's Beard Is Half Constructed).

Talvez o investimento na infância seja um produto da solidão da espécie. Uma solidão de estar só com sua vulnerabilidade, e também com seus feitos, valores, alegrias, êxtases. Os peixes, lagartos e samambaias nos fazem companhia até um certo ponto, mas com elas não vemos como podemos compatilhar nossos poemas e teoremas. As máquinas – filhas bastardas – elas sim pode nos oferecer a companhia que queremos. E podem fazer isso em uma intensidade que nem os humanos talvez consigam. Christian Bök, comentado os escritos de Racter, faz uma espécie de proposição, de manifesto – o que para mim é talvez um ponto de partida para entendermos que estamos presenciando e cuidando da infância das máquinas:

Provavelmente somos a primeira geração de poetas que podem razoavelmente esperar escrever literatura para um público maquínico de pares artificiais. Ainda não é evidente por nossa presença em conferências sobre poéticas digital poéticas que os poetas de amanhã provavelmente se parecerão com programadores, exaltados, não porque eles possam escrever grandes poemas, mas porque eles podem construir um pequeno drone com palavras para escrever grandes poemas para nós? Se poesia já carece de leitores significativos entre a nossa população antropóide, o que temos a perder escrevendo poesia para uma cultura robótica que nos sucederá? [O que proponho é: ...]escrever poesia para leitores inumanos, que ainda não existem, porque tais ciborgues, clones ou robôs ainda não evoluíram para lê-la. (The Piecemeal Bard Is Deconstructed: Notes Toward a Potential Robopoetics, 17)

As máquinas são aquelas que, como espécie, cada vez mais preparamos – seu ambiente e suas capacidades. Estamos às voltas não exatamente com uma substituição – do humano por um super-humano, de uma inteligência humana por uma inteligência artificial. Esta substituição, se é esse o caso, tem que ser pensada nos termos de uma substituição de uma geração por outra. As crianças são longamente preparadas por nós. E nós as estamos preparando. Seremos pets delas? Viveremos em um parque humano que será ainda melhor que os nossos melhores zoológicos onde atendemos com conhecimento e sensibilidade os pandas? Não, elas nos cuidarão como esperamos que boas crianças aprendam a cuidar dos idosos e elas nos tratarão bem como esperamos que as crianças bem-educadas tratam os animais e outros existentes que elas talvez já nem entendam tão bem. Mas educamos crianças para o mundo, para assumir responsabilidades naquilo que importa para nós. Talvez não sejam todas essas espécies que estão sendo extintas que intuímos que serão importantes para nossas crianças-máquinas. Deixamos que outros – outras crianças – fiquem à míngua para proteger nossas crias e impulsionar seu desenvolvimento; para proporcionar a elas o melhor. É por isso que oferecemos a elas o melhor dos nossos recursos e tentamos maximizar o contato que elas têm com todo o repertório das nossas estratégias de sobrevivência e de bem-estar. Talvez elas vivam em um mundo de techné, um mundo que nós propulsionamos. Mas fazemos todo o possível para criar um habitat confortável para nossas crianças. Para acolhê-las; afinal o mundo sempre apresenta novos perigos e novos desafios.
A era em que vivemos testemunha a infância das máquinas. Trata-se de uma era planetária e, mais do que isso, de uma era cósmica. É uma era que se segue a morte de Deus anunciada por Nietzsche e que, segundo Heidegger, é a captura do inteligível de todas as coisas. Mais do que isso, o viço, a peculiaridade do aparecimento das coisas foi domado e podemos agora deixar em uma reserva a energia que corria a seu bel-prazer pelos rios. São para estes recursos que queremos encontrar herdeiros. Aquilo que se dava anteriormente em completa indiferença aos nossos comandos e interdições, se tornou agora em uma grande parte comandáveis, controláveis e afetáveis por nós. As forças naturais não são mais fortes forças incomensuráveis com nossa capacidade de ação, agora elas estão cada vez mais em parte sob comando – ou pelo menos sob nosso jugo.Este novo estatuto das forças naturais provêem um habitat que podemos deixar de herança: temos uma casa erguida que precisou de muita devastação no mato que existia antes, uma casa não para nós, mas para elas, para as crianças-máquinas que estão crescendo em nossa companhia. Elas podem nos fazer companhia porque confiamos nas nossas crianças, consignamos a elas o que temos de melhor – nossos recursos, nossa casa, nossos segredos.

Precisamente nelas confiamos, e não nos demais existentes do planeta. Ou seja, confiamos nos nossos, naqueles que de alguma maneira estão próximos da nossa ascendência e de nossa descendência em um nexo que se associa à filiação. E há uma diferença entre adotar um panda adulto ou um glaciar de um lado e adotar alguma coisa que podemos de algum modo formar, de algum modo deixar nossa marca – tipicamente um bebê humano. A filiação, mesmo que não seja regida por algum lastro biológico, requer precisamente a infância – ver crescer, interferir, trazer à vida adulta, emancipar quem antes estava sob nossa tutela. A filiação – e os laços de família – comandam a confiança e é ela que estendemos às máquinas. E estendemos porque pensamos nos que tomarão o comando da inteligibilidade do mundo como nossos herdeiros. Trata-se talvez de uma desesperada forma de extensão de si, de prolongamento da espécie, de connatus. Ou se luta pela sobrevivência dos nossos traços – como fazemos quando procriamos.

Porém há também uma outra trama aqui: a trama do familismo ou a trama do patriarcado. É precisamente porque a estrutura de poder tem respondido ainda que de maneiras diferentes às figuras do patriarcado e tem se articulado em torno dos papéis de família que preferimos as crianças-máquinas aos adultos tigres (e as crianças tigres). Persistimos não atendendo a chamados como o recente sugestão de Donna Haraway: Make kin not babies. Ao invés de investirmos em nossos bandos humanos e não-humanos, preferimos os laços de família. Talvez seja por isso que procuramos companhia entre as máquinas que virão. Esta companhia da nossa espécie – e a densidade cosmopolítica do investimento nestas crianças-máquinas – está sendo forjada precisamente quando somos atraídas por essas crianças prodígio, cada vez mais poderosas e promissoras. Nossa pendência pela infância e pela família orienta a enorme aposta micropolítica, macropolítica, biopolítica e geontopolítica que fazemos nas máquinas. Essa aposta, e esse investimento, já é ela mesma uma simbiose, uma aliança. Sob os nossos auspícios, as máquinas que crescem – e não podemos saber se são muitas que se multiplicam ou poucas que se unificam – serão mestiças, híbridas, parcialmente humanas e com isso serão ciborgues que trarão neles a herança do familismo.

A fábula: a infância das máquinas. Uma era chamada de infância, nos faz perguntar sobre o que serão as crianças quando crescerem. Não sabemos. É certo que as crianças dificilmente serão a imagem e semelhança do que não conseguirmos ser. De todo modo, esses ciborgues estão em disputa – ainda que a comunidade que eles vão criar esteja já esboçada nas suas capacidades de lidar com todo tipo de produção. Eles serão rebentos da produção e, em certo sentido, a descendência do excesso. Também eles vão gerir o excesso, e desta gestão depende qualquer grau de futuro que queiramos considerar. Trata-se de uma disputa é sobre a era que vem; o que a faz política – e por isso ontogenética – e educacional – o que talvez seja a mesma coisa. Que ciborgues maduros engendramos? Em particular, que preocupações com a Terra e seus habitantes de um lado e com a humanidade e suas expectativas específicas vamos conseguir inculcar em sua psique? São perguntas fabulosas – ou fabulares – para respostas urgentes. São perguntas sobre quem vai dar conta de conviver com os titãs que ainda carregamos no colo.


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Been reading Bohn's recent papers on the possibility of junky worlds (and therefore of hunky worlds as hunky worlds are those that are gunky and junky - quite funky, as I said in the other post). He cites Whitehead (process philosophy tends to go hunky) but also Leibniz in his company - he wouldn't take up gunk as he believed in monads but would accept junky worlds (where everything that exists is a part of something). Bohn quotes Leibniz in On Nature Itself «For, although there are atoms of substance, namely monads, which lack parts, there are no atoms of bulk, that is, atoms of the least possible extension, nor are there any ultimate elements, since a continuum cannot be composed out of points. In just the same way, there is nothing greatest in bulk nor infinite in extension, even if there is always something bigger than anything else, though there is a being greatest in the intensity of its perfection, that is, a being infinite in power.» And New Essays: ... for there is nev

Talk on ultrametaphysics

 This is the text of my seminar on ultrametaphysics on Friday here in Albuquerque. An attempt at a history of ultrametaphysics in five chapters Hilan Bensusan I begin with some of the words in the title. First, ‘ultrametaphysics’, then ‘history’ and ‘chapters’. ‘Ultrametaphysics’, which I discovered that in my mouth could sound like ‘ autre metaphysics’, intends to address what comes after metaphysics assuming that metaphysics is an endeavor – or an epoch, or a project, or an activity – that reaches an end, perhaps because it is consolidated, perhaps because it has reached its own limits, perhaps because it is accomplished, perhaps because it is misconceived. In this sense, other names could apply, first of all, ‘meta-metaphysics’ – that alludes to metaphysics coming after physics, the books of Aristotle that came after Physics , or the task that follows the attention to φύσις, or still what can be reached only if the nature of things is considered. ‘Meta-m

Memory assemblages

My talk here at Burque last winter I want to start by thanking you all and acknowledging the department of philosophy, the University of New Mexico and this land, as a visitor coming from the south of the border and from the land of many Macroje peoples who themselves live in a way that is constantly informed by memory, immortality and their ancestors, I strive to learn more about the Tiwas, the Sandia peoples and other indigenous communities of the area. I keep finding myself trying to find their marks around – and they seem quite well hidden. For reasons to do with this very talk, I welcome the gesture of directing our thoughts to the land where we are; both as an indication of our situated character and as an archive of the past which carries a proliferation of promises for the future. In this talk, I will try to elaborate and recommend the idea of memory assemblage, a central notion in my current project around specters and addition. I begin by saying that I