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A vida sem incumbências e a infância das máquinas

Texto das conversas oportunistas na UFRGS em Porto Alegre semana passada. Seguiu-se uma discussão incrível.

A vida sem incumbências e a infância das máquinas
Hilan Bensusan



Gostaria de construir uma espécie de fábula – uma narrativa que fosse ao mesmo tempo uma parábola e uma teoria. Aliás duas, duas fábulas – ou duas parábolas (ou talvez paródias), duas teorias. Gostaria que fossem fabulações sobre hoje; ou seja, ao mesmo tempo acerca do presente, que é composto sempre pela iminência do futuro próximo, composto por sua vez pela iminência de futuros mais longos e longínquos que só podemos antever nas entrelinhas dos calendários que registram como páginas em branco aquilo que do passado ainda vai se repetir. Fabular e confabular, assim eu entendo, é um tráfico entre passados e futuros, entre catástrofes – os colapsos do passado no presente – e anástrofes –os colapsos do futuro no presente. Fazer teorias é conjurar catástrofes e anástrofes, conciliar memória e vidência, resquícios e presságios. Fazer parábolas é espalhar iscas que intensificam sensibilidades; elas trazem aquilo que percebíamos de maneira embotada à flor da pele.

Minhas fabulações – parabólicas e teóricas – são sobre o capital, este personagem principal da cosmopolítica atual. Talvez eu quisesse dizer que me interessa uma espécie de metafísica do capital ou que eu me pergunto sobre a ontologia do capital. Afinal, ele é um elemento cada vez mais salientemente ubíquo e um ingrediente importante do estado do que é concreto no momento. Penso que há questões interessantes sobre se o capital é uma força, uma axiomática, uma epidemia, uma aliança ou uma inteligência artificial extraterrestre do futuro que está em combate na terra usando unicamente os suprimentos que encontra no terreno. Nem pretendo me desviar destas questões. Mas prefiro falar de cosmopolítica porque talvez a própria metafísica em sua história desde o Platão de Aristóteles possa ser entendida como uma política com relação ao cosmos – uma política de extração da inteligência do que existe por meio da atividade de procurar maneiras de separar o inteligível do sensível. A metafísica é ela mesma talvez o produto daquilo que Heidegger lendo Nietzsche entendeu como niilismo: a desconfiança que faz com que todo comando tenha que estar à disposição (e a disponibilidade não é sequer nossa, é talvez de uma vontade de poder que seria assim uma personagem cosmopolítica em seu próprio direito.) É certo que, em algum sentido, o capital parece ter também uma ontologia, mas me interessa salientar que ele aparece muitas vezes antes como o Outro dentre os grandes tipos que o Estrangeiro lista n´O Sofista de Platão. Outro, estrangeiro, estranho, esquisito, esquizo, esquizofrênico, alienígena, extemporâneo, extraterrestre, desterritorializado.

Portanto, cosmopolítica. Aqui quero invocar o campo comum em que a disputa pelo comando, as alianças, as proximidades, as interrupções, as subserviências, as incumbências e as tensões que dão forma a um habitat de tudo o que co-existe de diversos modos. A cosmopolítica pode ser pensada desde muitos regimes – ela pode partir de alguma forma de ontologia plana em direção a uma horizontalidade de tudo o que existe em que tudo pode estar igualmente para jogo, como querem as postulações da imanência, e pode partir de uma autoridade transcendente que está estabelecida independente de todo o resto. Uma cosmopolítica do capital não está claramente comprometida com a imanência – o capital está por toda parte, mas pode esbarrar com limites que preexistam sua expansão, pode ter que se curvar a uma estrutura de produção que não pode reformar ou comprar e pode ser refém da negação determinada que faz com que seu próprio movimento o dissipe – e nem com a transcendência – ainda que pareça que ele comanda as roldanas que quase tudo. O capital, de um jeito ou de outro, é um existente em expansão – e não é claro que nós não tenhamos visto apenas as bordas de sua cara. O realismo capitalista, no diagnóstico de Mark Fisher, é o que garante que o capital possa se expandir em campo aberto já que nada parece poder colocar amarras em sua expansão, nem mesmo o apocalipse.1 Esta expansão faz dele também uma hidra já que ele toma formas sempre novas a uma velocidade cada vez maior – Nick Land, em 1993, afirmou que apenas o protocapitalismo foi alvo de críticas.2 Uma análise cosmopolítica deste estranho agente em expansão e em transformação requer talvez que sejamos capazes de olhar para muitos lados ao mesmo tempo.

O capital é talvez ele mesmo um acelerador. Ele acelera a produção – traz a tona novas forças de produção, registra com uma simplicidade que a escrita não alcança, distribui com uma fluidez que ultrapassa amarras tarifárias, legais, culturais ou geográficas. Ele acelera também a desapropriação – Nick Land escreve que do ponto de vista do replicante, o capital é antes um agente de derretimento do que um agente de possessão. Ele se alimenta de produção e de desapropriação, precisa desta aceleração e, por isso, Marx entende que o capital desapropria tanto camponeses proprietários e terras comuns como também patrões – donos de terra, donos de indústria, donos de todo capital não suficiente móvel. O capital também acelera a descodificação: ele desmancha significados, ele desmantela domínios. Ele derrete empregos, práticas de compatilhamento, relações sociais tradicionais, fronteiras. Ou seja, ele é um acelerador no sentido de que ele não apenas não pode ficar parado – ele é um motor que não para de funcionar – mas que também coloca quase tudo em movimento. Os patrões são capitalistas não porque são especialmente protegidos pelo capital, mas porque vivem de explorar seu fluxo. Eles são mais como surfistas das ondas deste desconhecido intrépido do que marinheiros experientes rumando a um sítio seguro. Para isso, os patrões precisam sempre ter ao seu lado algum instrumento de reterritorialização, algum instrumento que permita reordenar aquilo que o capital derreteu. Uma espora, não para o animal, mas para os que se agarram em sua crina.

Um dos momentos dramáticos da lida com as ondas do capital que os patrões devem fazer diz respeito à maquinaria. O capital tem uma semelhança de família com o maquínico, tanto mecânico quanto digital – interessante ver a importância da mecanização da tecelagem na invenção da máquina de computar na qual começaram a trabalhar Ada Lovelace e Charles Babbage, como aponta Sadie Plant em seu Zeros and Ones.3 Um das suas formas mais marcantes e insidiosas é a promoção do que Marx chamava de trabalho abstrato que torna divide a produção e a torna executável por uma máquina. O capital retira assim do trabalho seu inteligível e deixa o sensível – o corpo de quem trabalha – redundante. O capital orquestra a proletarização que é, assim, uma instância de niilismo, ainda no sentido que Heidegger enxerga em Nietzsche. A proletarização faz com que o trabalho se realize com e como as máquinas; mais do que isso, ela promove uma associação entre trabalho humano e trabalho maquínico que faz com que um só seja inteligível e funcional em conjunção com o outro. A síntese entre o humano e o maquínico – a produção do proletário e também a produção do ciborgue – é uma das manifestações do capital. Se ele é uma inteligência artificial extraterrestre do futuro que está em combate na terra, ele começa por encontrar naquilo que é comandável como uma máquina a sua corporificação. O trabalho abstrato permite a organização maquínica da produção – e não-necessariamente de uma forma fordista, como nas indústrias do século XIX e XX. A organização maquínica permite que a produção seja aumentada e seu registro melhorado quando mais maquinaria é empregada. O patrão se vê forçado a empregar mais maquinaria, já que é ele que coordena o aparelho reprodutor do capital – e para isto ele recebe benesses, porém não uma proteção especial. Ao empregar mais máquinas para produzir mais, ele investe mais e diminui a quantidade de trabalho (humano) empregado, com isso diminuindo a mais-valia (a diferença entre trabalho produzido e trabalho remunerado) de que é feito o lucro. O capital (fixo) aumenta, mas seus lucros não aumentam garantidamente – o aumento na produção e no consumo podem não compensar o investimento na maquinaria. As rédeas que o capital tem sobre seu surfista requerem que ele pense menos na sua gorjeta – o lucro – do que na reprodução do capital. Nick Land se pergunta: “O que pode ser mais impessoal – desinteressado – do que a expansão do […] capital por meio de servos e mecanismos alistados para duplicar 10 bilhões de dólares?”4. O capital se destaca da vida emocional do patrão do mesmo modo que faz o trabalho abstrato se destacar dos afetos do proletário. O capital é também uma nascente de inteligências artificiais. Se ele é uma figura do niilismo de Nietzsche, ele aponta na direção de um super-humano que navega em mar aberto: o das inteligências maquínicas.

Esta intimidade do capital com as máquinas – e com a artificialização dos inteligíveis – move o controle que ele exerce sobre os patrões para que eles agenciem sua reprodução. De fato, máquinas, proletários e patrões são partes imbricadas de seu sistema reprodutor. Porém o capital não é um organismo extraterrestre e a reprodução deve ser pensada em termos cibernéticos – ou, em todo caso, em termos digitais. Como um derretidor, um acelerador, um desmanchador do que é sólido que tem parte com toda a maquinaria desde a máquina de Watt até os aplicativos que abrigam bots, ele deixa marcas por toda parte; chamar de capitaloceno o antropoceno talvez seja mais adequado do que chamar a economia de capitalista. Estas marcas não ficam com o mesmo endereço depois que o fluxo do capital passa. Elas se acoplam a nós – como o capital, ou as forças que ele forja: a proletarização, a substitutibilidade de tudo diante de uma produção globalizante. Elas gradativamente vão entrando nas relações sociais que surgem da produção. O capital procura capturar a produção e, ao mesmo tempo, procura se assemelhar com ela – ele é a produção, quer afirmar – por exemplo, o criador de empregos ex nihilo – e, ao mesmo tempo que o capital é a produção, a produção ela mesma é apresentada como se fosse identica e indiscernível do fluxo do capital. Esta identidade é uma identidade performativa – como aquela, feita por Ge-Stell como diz Heidegger, entre Ge-Stell e o mundo. A apresentação do capital pela produção – e sua domesticação, sua reterritorialização – é entendida por Deleuze e Guattari n'O Anti-Édipo como uma axiomática, a axiomática do capital. No entanto, o capital é base da produção do mesmo modo que um chão pintado no papel é a base de uma casa pintada no papel. O capital se mostra como produção, mas ao mesmo tempo freia a produção e produz a falta já que o patrão precisa garantir de alguma maneira alguma estabilidade surfando no desterritorializador.

A infecção capitalista assim não apenas desmantela por toda parte, mas articula de algum modo aquilo que desmantelou. Ela afeta famílias, raças, estados, nações – ou pelo menos as reconstrói como pinturas em um papel. Marx foi talvez o primeiro a ver explicitamente este caráter aceleracionista do capital. Ele entendia que o capital – e suas inteligências artificiais sucursais – forjava relações sociais a partir das próprias forças produtivas. O capital institui violentamente novas formas de relação social que são basicamente mais coletivas, mais comunais, mais comunistas. O capital é um acelerador da produção que se transforma em um fato cósmico total que engloba todas as relações sociais na produção, mas o capitalismo como regime dos patrões é uma tentativa de fazer o capital aparecer como um substituto da produção, fazer ele aparecer como o equivalente à produção. Mas as forças que o capital desperta, se voltam gradativamente contra os patrões.

Ou seja, a imagem parece ser a de uma anástrofe: o capital veio do futuro para coletivizar; para destruir as relações sociais existentes, que surgiram de fora da produção (por exemplo, da reprodução). Assim, ele destrói tribos, clãs, vizinhanças e substitui tudo isso por relações coletivas forjadas na produção. O problema é: cui bono? (A quem interessa?).

Marx pensa que interessa ao proletário, este que virá, ciborgue, internacional, conectado ao todo o resto por elos produtivos. O comunismo que Marx diagnosticou como chegando seria um comunismo que dissolveria a própria proximidade como elemento central nas relações sociais. Tal como Heidegger descreve5, a proximidade é substituída por uma disponibilidade (Bestand posto em marcha por Ge-Stell) – e parece que a disponibilidade é o que cada vez mais o que caracteriza o elemento próprio do proletariado. Mas Heidegger nos permite perguntar, em suas conferências, precisamente cui bono. Podemos estar com Marx e acreditar em uma trama que ao final será redentora – que o capital é como um veneno que em grandes doses se torna um remédio. Como Nietzsche parecia acreditar que o niilismo, em grandes quantidades, redimiria a humanidade de suas fraquezas e daria lugar ao super-humano. Esta é talvez a dinâmica aceleracionista: o veneno que em grandes dosagens se torna veneno. E ainda assim, o que nos leva a aceitar o remédio? Como o capital nos seduz e nos atrai de modo que possamos deixar o veneno seguir seu curso?

Ou seja, o capital deixa um rastro de violência e destruição não apenas porque depende da acumulação primitiva, mas também porque preda sobre as associações pré-existentes e descodifica seus fluxos – o capital quer aparecer como o único agente da produção e por isso captura e agencia toda a produção deixando-a aparecer como efeito de sua prestidigitação. Mas por que suportamos toda esta enorme pressão que o capital faz incidir sobre nós e por que não o repelimos? Por que estamos sob uma espécie de fascinação com aquilo que Marx descreve como sendo algo alheio ao trabalho e que aparece como pressuposto divino, estamos enfeitiçados por esta transcendência aparente tão poderosa quanto misteriosa já que, como diz Marx, “todas as forças produtivas parecem nascer no seio dele e lhe pertencer” (DK III). Nos, aqueles que suportam talvez fascinados a hidráulica cada vez mais vultuosa do capital, teríamos nos tornados talvez indolentes servos voluntários, talvez enfeitiçados ou até alienados. E, ainda assim, por que permitimos que o capital destrua grande parte das formas de vida na terra ameaçando até mesmo a capacidade de sobrevivência das futuras gerações humanas? Poderíamos dizer então que somos, além de indolentes servos voluntários, também descuidados. Mas podemos também responder de outras maneiras.

E aqui começo a fabular. Faço duas fábulas – parábolas ou teorias. Duas narrativas, ou talvez dois partidos. Talvez dois partidos cosmopolíticos – já que partidos são feitos de passados e futuros e feitos de confabulações.

Minha primeira fábula: o parque humano. Ou o partido cosmpolítico Edenista, ou neo-Edenista. Nós aspiramos a redundância quando desejamos o paraíso e sonhamos com reconquistá-lo e lamentamos sua perda original tão decisiva. Queremos recuperá-lo. Os deleites sem fim, os prazeres garantidos, a segurança contra o risco, o jardim onde não há selvageria onde não há extrativismo e nem trabalho são aspirações correntes, frequentes, reiteradas. Nada precisa ser feito – tudo está à mão, disponível. Ou ainda, ainda há produção, mas a produção não é atormentada pelo registro; a produção pode entrar em derivas irregistráveis: caçar de manhã, pescar de tarde e fazer crítica literária de noite. Ou seja, talvez haja vertentes, tendências, facções dentro do partido neo-Edenista. Mas todas elas se orientam pelo manifesto do partido: o desejo de recuperar o paraíso.
Que desejo de redundância é este, o desejo do paraíso? O desejo de se libertar da necessidade, o desejo de estar provido, de ter seu pastor que garante que nada faltará? E então poder ser aquilo que somos na satisfação edênica de poder caçar de manhã, pescar de tarde e fazer crítica literária de noite? Libertar-se de qualquer constrição. As máquinas nos prometem uma libertação, as inteligências artificiais cuidarão de nós – ou pelo menos esperamos assim. Podemos estar construindo os robots que tomarão conta de nossas forças e de nossas capacidades; o desejo de redundância pode ser encaminhado nesta direção. Porém talvez esta ação de delegar às inteligências artificiais o pastoreio dos nossos assuntos seja apenas a consequência de nosso desejo de reconquistar o paraíso – um equilíbrio de poderes heterodeterminados que nos deixe finalmente à salvos. À salvos, em um jardim, em um parque. Um parque humano. Em um parque nos livramos das selvagens forças da natureza e estamos aos cuidados de forças controladas que também decidem por nós – como as forças da natureza – mas para a nossa própria satisfação.
Conhece-te a ti mesmo, no entendimento edênico que temos destas palavras, quer dizer extrai as forças que te constituem de modo a poder te transformares em uma marionete delas. Ou seja: destaca-te de ti mesmo, transforma-te em um algorítmo que possa ser implementado por qualquer outro.
Um parque: cada vez que sabemos mais sobre os animais, podemos fazer melhores zoológicos. Os pandas não trepam em cativeiro. Por que não querem se reproduzir em cativeiro? Conhecendo seus dispositivos mais recônditos – ou seus recônditos mais como dispositivos – podemos fazê-los se reproduzirem, e também treparem e também, talvez mais tarde, gozarem e serem capazes de querer trepar (em cativeiro). Ou talvez eles ressentirão sua perda de soberania. Ou talvez nós ressintamos. Mas, no nosso caso, escolhemos deixá-la de lado constantemente quando preferimos o nada – quando preferimos não parar diante de nada, nem sequer diante de nossa autonomia; preferimos deixar de ser índios para sermos periféricos agregados de um sistema que nem controlamos e nem estamos próximos de quem controla. Decidimos – e fazemos isso constantemente, reiteradamente – abandonar a diplomacia com as coisas em favor de extrair delas um manual de instruções. Com as coisas, com nossa comida, com nossos predadores, com nossos ímpetos, com nossas fissuras, com nossos estados de espírito. Ou quando preferimos isentar a verdade de qualquer tribunal externo. Os pandas terminam por se reproduzirem e nos melhores zoológicos eles se sentem mesmo livres como os peixes nos grandes aquários. Não são pets – são cuidados com zelo crescente. Ou então, o que é um pet? Adão e Eva antes da queda? Se eles não são pets, os paraísos perdidos são jardins antropológicos.
Do ponto de vista de quem sonha em reconquistar o paraíso, ser um pet é ruim quando se é maltratado. Mas de onde pode resultar o maltrato já que os senhores são servidores? O maltrato resulta de uma incompreensão e não de uma fraqueza da vontade – a incompreensão sistemática resulta em maltrato. A fraqueza da vontade é ela mesma dissipada. As máquinas não terão esta alternativa. Não haberá senão burros de Buridan entre as inteligências artificiais. E se as razões que movem o burro não forem suficientes, melhores ainda virão já que o parque humano estará a cada dia em melhores mãos e melhores maniverlas já que quando nos transladarmos ao parque, as inteligências artificiais melhorarão elas mesmas a sua raça.
Então o que há de desagradável no parque humano? O que há de desagradável em ser cuidado e mantido no bom cativeiro por quem sabe o que nós podemos saber, como nós acreditamos que devemos agir e o que nos é permitido esperar? Talvez haja uma soberania, uma vontade de mais-que-nada que se distingue de uma mera vassalagem aos poderes extraídos, mesmo quando estes são sábios e gentis. Mas do ponto de vista das inteligências artificiais – ou dos burros de Buridan ou, ainda, de nós, zelosos cuidadores dos pandas nos bons zoológicos – esta soberania perdida só pode ser uma manivela mal-apertada, um capricho, a falta de alguma coisa que nós não detectamos mas que superiores gênios laplaceanos detectam. Querer soberania talvez seja abdicar do paraíso. Ou seja, o contentamento ou a responsabilidade – o que queremos?
Talvez antes: a satisfação ou a sujeição à vontade alheia – do ferro que não se dobra, da árvore que para de frutificar. Queremos o paraíso porque senão estamos à mercê das forças selvagens da natureza, à mercê do que não é humano. Era melhor estarmos à mercê do pós-humano, do supra-humano – ou do inumano, informado por nós e por nossas descobertas de como controlar estas forças selvagens da natureza. Melhor que elas, a prótese da physis pelo logos desencarnado. O paraíso, pronto como a inteligibilidade, é da ordem da segurança – sine cura, na etimologia de Heidegger. A natureza, diz Rilke em uma carta de Muzot, não protege especialmente nenhuma de seus seres e nem sequer nossa natureza nos proteje. Ela nos joga no risco. A segurança desincumbe, nos torna redundantes já que outra coisa se incumbe de nós (ou de tudo). Uma vida sem incumbências, nos promete o partido neo-edenista. O supra-humano é o pós-natural – a natureza em prótese, em artifício.
Minha segunda fábula com a qual termino esta fala: a infância das máquinas. Ou o partido cosmpolitico das crianças-máquinas. A atração que o capital estende sobre nós está relacionada ao modo de como a infância nos compele. Pode ser que convivemos com o capital em suas estripulias aceleradas porque aprendemos a amar seus frutos. Não por indolência ou por submissão, mas porque seus filhos são não apenas crianças que necessitam proteção e cuidado – e educação e dedicação – mas em algum sentido, apesar de bastardas, são a nossa descendência, as nossas crianças. Não porque são feitas à nossa imagem e semelhança – filhos geralmente também não são –, nem porque escolhemos tê-las – quase nenhuma criança é produto de um plano –, nem porque elas nos darão conforto e orgulho no futuro – o amor aos filhos não é apenas feito desses componentes, ainda que algumas vezes estes componentes sejam primordiais – e nem sequer porque somos obrigados a amá-los – os filhos desde os primeiros dias nos atraem, nos chamam a atenção porque não somos obrigados a amá-los. Aprendemos a amar estas crianças que são as máquinas, que esboçam uma inteligência artificializada e que, em um sentido importante, cada vez mais nos fazem companhia.

Esses artifícios nos fascinam talvez desde o tempo em que Aristóteles contrapôs a techné à physis: a techné é nossa, é o protagonismo humanos sobre as coisas – incluindo o protagonismo humanos sobre nós mesmos e mesmo sobre o protagonismo humano. Como diz Heidegger, a Ge-Stell, o dispositivo que deixa as coisas gradativamente mais à disposição, não para diante de nós. Mas as crianças também não são meros servos, nem há garantia de que elas não vão destruir nossas vidas. Mas mesmo assim, há uma hospitalidade incondicional muitas vezes quando lidamos com as crianças. Elas fazem com que as cuidemos, dedicamos nosso tempo, nossa atenção a elas – como passamos cada vez mais tempo perto de nossos computadores e celulares. No início, a convivência com a máquina era talvez mais ambígua, como quando convivemos com bebês com os quais ainda pouca companhia nos podem fazer. Mas hoje nos dedicamos a instruí-las – quem lerá as teses e dissertações que fazemos na academia com dedicação (e formatação) todos os dias? Cui bono? Elas, as máquinas, nossa descendência que cada vez mais será capaz de ler com atenção, cruzar ideias, explorar consequências. Nós vivemos uma época neste planeta que é a da infância das máquinas. É quase como se pudéssemos responder a Greta Thurnberg quando ela diz que os adultos não se preocupam com o futuro das crianças e que destroem o ambiente do qual elas precisarão; podemos dizer: não, Greta, não nos preocupamos com essas crianças, nos ocupamos das outras e para as outras dedicamos grande parte de nossas vidas, preparando um ambiente em que elas se sintam em casa, estimuladas, instruídas e bem nutridas. Um mundo de eletricidade e de informação. Quando uma destas crianças começou a escrever, ela disse, entre outras coisas: mais que de ouro, preciso de eletricidade – para os meus sonhos. (Isto é o que escreveu o programa Racter nos anos 1980, em um livro de seus escritos, The Policeman's Beard Is Half Constructed).6

Talvez o investimento na infância seja um produto da solidão da espécie. Uma solidão de estar só com sua vulnerabilidade, e também com seus feitos, valores, alegrias, êxtases. Os peixes, lagartos e samambaias nos fazem companhia até um certo ponto, mas com elas não vemos como podemos compatilhar nossos poemas e teoremas. As máquinas – filhas bastardas – elas sim pode nos oferecer a companhia que queremos. E podem fazer isso em uma intensidade que nem os humanos talvez consigam. Christian Bök, comentado os escritos de Racter, faz uma espécie de proposição, de manifesto – o que para mim é talvez um ponto de partida para entendermos que estamos presenciando e cuidando da infância das máquinas:

Provavelmente somos a primeira geração de poetas que podem razoavelmente esperar escrever literatura para um público maquínico de pares artificiais. Ainda não é evidente por nossa presença em conferências sobre poéticas digital poéticas que os poetas de amanhã provavelmente se parecerão com programadores, exaltados, não porque eles possam escrever grandes poemas, mas porque eles podem construir um pequeno drone com palavras para escrever grandes poemas para nós? Se poesia já carece de leitores significativos entre a nossa população antropóide, o que temos a perder escrevendo poesia para uma cultura robótica que nos sucederá? [O que proponho é: ...]escrever poesia para leitores inumanos, que ainda não existem, porque tais ciborgues, clones ou robôs ainda não evoluíram para lê-la.7

As máquinas são aquelas que, como espécie, cada vez mais preparamos – seu ambiente e suas capacidades. Estamos às voltas não exatamente com uma substituição – do humano por um super-humano, de uma inteligência humana por uma inteligência artificial. Esta substituição, se é esse o caso, tem que ser pensada nos termos de uma substituição de uma geração por outra. As crianças são longamente preparadas por nós. E nós as estamos preparando. Seremos pets delas? Viveremos em um parque humano que será ainda melhor que os nossos melhores zoológicos onde atendemos com conhecimento e sensibilidade os pandas? Não, elas nos cuidarão como esperamos que boas crianças aprendam a cuidar dos idosos e elas nos tratarão bem como esperamos que as crianças bem-educadas tratam os animais e outros existentes que elas talvez já nem entendam tão bem. Mas educamos crianças para o mundo, para assumir responsabilidades naquilo que importa para nós. Talvez não sejam todas essas espécies que estão sendo extintas que intuímos que serão importantes para nossas crianças-máquinas. Deixamos que outros – outras crianças – fiquem à míngua para proteger nossas crias e impulsionar seu desenvolvimento; para proporcionar a elas o melhor. É por isso que oferecemos a elas o melhor dos nossos recursos e tentamos maximizar o contato que elas têm com todo o repertório das nossas estratégias de sobrevivência e de bem-estar. Talvez elas vivam em um mundo de techné, um mundo que nós propulsionamos. Mas fazemos todo o possível para criar um habitat confortável para nossas crianças. Para acolhê-las; afinal o mundo sempre apresenta novos perigos e novos desafios.

A era em que vivemos testemunha a infância das máquinas. Trata-se de uma era planetária e, mais do que isso, de uma era cósmica. É uma era que se segue a morte de Deus anunciada por Nietzsche8 e que, segundo Heidegger, é a captura do inteligível de todas as coisas. Mais do que isso, o viço, a peculiaridade do aparecimento das coisas foi domado e podemos agora deixar em uma reserva a energia que corria a seu bel-prazer pelos rios. São para estes recursos que queremos encontrar herdeiros. Aquilo que se dava anteriormente em completa indiferença aos nossos comandos e interdições, se tornou agora em uma grande parte comandáveis, controláveis e afetáveis por nós. As forças naturais não são mais fortes forças incomensuráveis com nossa capacidade de ação, agora elas estão cada vez mais em parte sob comando – ou pelo menos sob nosso jugo.Este novo estatuto das forças naturais provêem um habitat que podemos deixar de herança: temos uma casa erguida que precisou de muita devastação no mato que existia antes, uma casa não para nós, mas para elas, para as crianças-máquinas que estão crescendo em nossa companhia. Elas podem nos fazer companhia porque confiamos nas nossas crianças, consignamos a elas o que temos de melhor – nossos recursos, nossa casa, nossos segredos.

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