As muitas curvas da virada animista
Hilan Bensusan
Para Nurit
Pela janela da cozinha, durante a quarentena, aparecem os micos todas as manhãs. Eles são de toda a vizinhança, e passam de casa em casa pelos fios elétricos, pontes urbanas entre as árvores altas onde eles moram e que atravessam a rua como se ela fosse um rio. Na beira da rua, eles aparecem grudados na esquadria e, se a janela está aberta, entram e pegam e comem as bananas, muito grandes para eles carregarem sozinhos. Fecho a janela e eles seguem olhando para dentro, sentindo o cheiro de alguma fruta que eles sabem que está do outro lado. Eles olham, olhos que se misturam com o lado de dentro da cozinha, com suas caras e também com elas soltam pequenos sons que não consigo escutar a não ser se olho também para a cara deles e meus olhos se misturam com o pedido deles. O encontro, através do vidro da janela, é entre eu e o rosto deles, um rosto que pede – lembro de um trecho de diálogo de Coetze. O filho de Elizabeth Costello fala dos gatos e aponta para um deles em que há uma marca branca no rosto, “"Estritamente falando", diz a mãe, "os gatos não têm rostos". E em seguida ela diz: "Os pássaros não têm rostos, […] [o] peixe não tem rosto. Por que os gatos deveriam? As únicas criaturas com rostos propriamente ditos são seres humanos. Nossos rostos são o que prova que somos humanos.” O filho então se pergunta: o termo certo qual seria? Talvez 'características anteriores', mas se os animais não tem cara, como eles encaram o mundo?
"Um gato tem uma aparência, uma aparência corporal, mas não um rosto", diz sua mãe. “Mesmo não nascemos com rostos. Um rosto precisa ser incutido em nós, como um fogo é incutido do em carvão. Eu persuadi um rosto em você, de suas profundezas. Lembro-me de como me inclinei sobre você e soprei em você, dia após dia, até que finalmente você, o ser que te chamei de meu filho, começou a surgir. Foi como invocar uma alma.”1 Elizabeth Costello não encontra nos gatos uma cara ou talvez nem sequer uma palavra, mas está engajada no partido deles. No partido dos gatos que se proliferam na pequena cidade esvaziada de humanos se de alguma forma eles encontram o alimento que ela assídua e incondicionalmente lhes oferece.
Lembro também de Carlos Segóvia falando do que entende por animismo: trata-se de uma ênfase nos corpos, e não nas almas. As características anteriores estão ali e, com elas, olhos, boca e fome. Falta o sopro – ou melhor, eu não sei se falta o sopro. Os micos tem mães que lhes sopram nas características anteriores. Mais que isso, eles pedem, e o pedido é uma relação com o mundo. Não uma relação que está prestes a escrever um tratado sobre ele e nem sequer uma relação que caberia em um tratado acerca do mundo. Como eu escrevi uma vez, ele é do âmbito daquilo que torna possível fazer tratados, fazer tratos, entrar em tratativas. Quando fazemos tratados, temos que aprender a desconsiderar aquilo que achamos que sabemos – todo conhecimento é apenas aquilo com o qual sentamos à mesa. Se não abrimos as cartas dele na mesa, não há tratado, não há trato; há apenas a insistência em fazer não atrapalhar o tratado já escrito. Também outras pessoas fazem pedidos, e as vezes nem sequer fazem isso com a linguagem pública sancionada como a via expressa onde passam as razões legítimas. E quando pedem, também podemos invocar tratados já escritos ou esboçados. Sempre senti um desconforto quando me diziam, ou ainda me dizem, “é melhor que os pedintes aprendam a não mais pedir na rua, a ir trabalhar – ou a ir protestar, ou a ir encontrar uma maneira de não mais precisar pedir”. É melhor que o problema, que é eles nos interromperem requerendo uma resposta, seja resolvido de alguma maneira – uma revolução ou, bem pior, um aprendizado de quem pede a entrar na ordem social e existencial estabelecida. É melhor que a responsabilidade que eles invocam seja dissolvida ou exorcizada. Talvez ela pudesse ser resolvida de uma vez por todas – e eu pensava que esta não seria uma ideia de todo má; todo pedido é político e se requer uma revolução (macro-)política. Mas se uma revolução tomar conta de todas as nossas responsabilidades, do que mais trataríamos na vida ou como mais poderíamos esperar que ela nos tratasse? Eu acho que os tratados tem uma dimensão local que gosto de pensar da seguinte maneira: da justiça nunca se esquiva ainda que a justiça nunca se faça por completo. Os corpos são locais – as almas é que são inteligíveis. E aqui volto ao Carlos Segóvia: é um encontro de corpos de que se trata, um encontro que, com os corpos, traz as coragens, as compulsões, as agendas – e um encontro é uma interrupção.
Há teorias sobre os micos – sociológicas ou etológicas ou antropológicas ou neurológicas – como há teorias sobre todos os pedintes que cruzam alguma fronteira e interrompem. E bem mais do que sobre os pedintes, há teorias sobre os encontros. Essas teorias satisfazem uma vontade de verdade e há uma maneira de pensar no ocidente – niilista, moderna, naturalista – segundo a qual a verdade oferece uma espécie de licença especial para a injustiça. E uma dispensa do trabalho do encontro, do esforço do tratado (quando é trato), da atividade da hospitalidade. Talvez os micos não merecessem as bananas, talvez eles comendo bananas vão passar a ser mais preguiçosos, se tornem vadios, pedintes e abandonem a vida saudável convencidos de que sua alma é um abismo. Por outro lado, aos encontros comparecemos com medo, com curiosidade e determinaçao talvez, mas com medo. Nós e os micos. E também com o encontro não vamos deixar a responsabilidade saciada – ela é interminável. Saio até a porta de casa e compatilho com eles algumas bananas; de longe, sem tocar em nenhuma mandíbula, sem deixar mesmo que eles se aproximem muito. Os micos ainda mais assustados. Os corpos são o lugar da diferença. Os animistas do baixo Amazonas, descritos por Philippe Descola, pensariam que a fome, o medo, a coragem e a responsabilidade são comuns entre a minha alma e a do mico pendurando na esquadria. Nossos corpos são diferentes – e diferentes ao ponto em que nossas almas (e a fome, o medo, a coragem e a responsabilidade) não podem saber tudo o que precisam sobre os corpos dos outros. Descola entende o animismo em contraste com o naturalismo – e com outras duas disposições de co-existência com o não-humano – em um âmbito que ele chama, em parte ironicamente, de antropologia da natureza. A ideia de natureza, bem como sua ancestral na distinção aristotélica entre physis e techné, é concebida como aquilo que cabe em um livro, em um tratado; ela surge da empreitada metafísica ocidental de capturar a inteligibilidade das coisas e de expor e dispor de suas capacidades e de seu viço. A natureza é o centro da teologia política e o guia da vontade de verdade dos Modernos – os naturalistas. Em contraste, o animismo toma como ponto de partida a animação da maioria das coisas, humanas e não-humanas. É a interioridade comum que pretende ser o ponto de triangulação entre corpos diferentes – entre eu e o mico da janela, há a fome (e o medo) em comum.
O animismo descrito por Descola foi o que primeiro me convenceu; ainda que sabia que ele era já muitos.2 Achava que o animismo era uma força de desnaturalização, e a desnaturalização era onde começava o trabalho crítico e a intervenção política – os animismos roíam a separação constitucional moderna, segundo Bruno Latour, que separa a política da natureza.3 Eles mostravam que a multiplicidade estava nos corpos, e não no que fazíamos com eles – e assim demoliam de uma só vez o multiculturalismo e o excepcionalismo humano. Além disso, permitiam entender o conhecimento como uma aliança, como parte de um gesto de negociação, de uma diplomacia que abria o caminho da desnaturalização à política. Os animismos apontavam para agentes capazes por sua própria estrutura a negociar por sua agenda e nenhuma verdade sobre o mundo era indiferente a esta negociação que não pode ser substituída por uma imagem conhecida de como se comportam os outros. Esses animismos ofereciam uma imagem em que o conhecimento, trazendo a verdade no seu bojo, não estabelecia determinações que eram alheias a qualquer agente e exorcizavam uma visão vinda de agente algum que poderia se estabelecer independentemente de qualquer par de olhos. Era como se tudo o que eu soubesse sobre a neurologia, a antropologia, a etologia ou a sociologia dos meus vizinhos ou dos micos na minha janela fossem vistos como o estado das coisas no presente estágio das minhas negociações com eles. Os animismos destituem a imagem (naturalista) de natureza e com ela a ideia de que o não-humano é um recurso em reserva para o proveito da agência humana jamais interrompida.
A noção de naturalização é de fato vista como problematicamente a-política em outros âmbitos – a naturalização da dominação masculina esvazia o conteúdo político dos feminismos, a naturalização das lutas raciais alça a supremacia branca a um ponto acima de qualquer luta política, a naturalizaçao da economia anuncia um pensamento único acerca de como as comunidades devem se organizar. A operação animista está então em continuidade com as lutas feministas, anti-racistas e por alternativas ao pensamento econômico neo-liberal – trata-se agora, ele proclamaria, de desnaturalizar a natureza; ou, se quisermos, desnaturalizarmos o não-humano e nossas relações com ele. Descola descreve grupos humanos no baixo Amazonas em que as transações com não humanos são orientadas pela equidade ou pela dádiva mas também outros em que estas transações são guiadas pela rapina seguida de fuga da parte de humanos na intenção de observar que há transações com o não-humano muito distintas entre si ainda que em contraste com as relações modernas de assumir uma subordinação completa do que é natural. Ao invés, por exemplo, de permanecer em uma relação supostamente natural de depredação do não-humano, é possível desnaturalizar esta relação abusiva do mesmo modo como os feminismos ensinam a desnaturalizar o patriarcado. A naturalização da natureza é uma herança ancestral que talvez tenha gradualmente tomado corpo até parecer inegável aos naturalistas. Carlos Segóvia entende os relatos bíblicos como sendo a mais imponente e persistente máquina de guerra contra a atitude animista: eles relatam tudo o que não é humano como parte da herança (politicamente conflituosa) que Deus preparou para os humanos. 4 De fato, a ideia mesma de natureza surja desta herança- uma vez que tudo o que é natural foi feito para o nosso deleite, podemos então dispor dele, expor ele, torná-lo transparente. Os animismos se posicionam contra este procedimento que termina transformando também os humanos em naturalizados e disponíveis, em administráveis. Em contraste, o naturalismo – que Descola entende que chega na Europa algumas décadas depois de Montaigne – é precisamente a disposição que se aventura na colonização do resto do mundo, humano e não-humano. Também o humano – lembremos da origem da etnologia e dos parques etnográficos onde humanos eram exibidos em suas formas de vida agora transparentes nas exposições universais com milhões de visitantes no século XIX e início do XX – pode ser naturalizado, administrado, transformado em recurso já que a herança de Deus inclui todos aqueles que não foram tocados pela palavra (anti-animista) da fé. A insígnia 'o não-humano é político' é também insígnia que trata de partes da nossa vida corporal – o sono, a sanidade, o sexo, a amizade – e que se transformam em recursos à disposição controláveis por dispositivos, aplicativos ou comprimidos. Como Heidegger diagnosticou, capturar a inteligibilidade das coisas e colocá-las em reserva pronta para uso não é um serviço em benefício dos humanos – e nem sequer de alguns humanos. Ge-Stell, esta transformação do mundo em alguma coisa que pode ser comandada, transforma também tudo o que é humano em alguma coisa que pode ser comandada.5
Esta primeira curva da virada animista, contudo, não me pareceu suficiente. Parecia bem que o naturalismo pudesse ser criticado em suas bases, em suas pressuposições que muitas vezes passam despercebidos. Eu entendia esses animismos, contudo, como tendo uma teoria da interioridade – comum a mim, aos meus vizinhos e aos micos – que constituía uma estrutura que ela mesma não podia ser negociada. Todos nós seríamos agentes políticos e éramos assim, por assim dizer, por natureza. Os animismos apontavam para uma forma de pan-psiquismo que entendia a experiência ou a agência, ou ambos, como espalhadas por toda parte – há uma interioridade comum a humanos e não-humanos. Um esquema de argumento em favor do pan-psiquismo é que se nós temos experiência e agência (uma premissa cartesiana que é o ponto de partida) é razoável projetar essas propriedades para tudo o que é físico – apesar de que a física ela mesma, mesmo a física do futuro, não pode descrever estas propriedades já que elas eludem a medição.6 O pan-psiquismo é uma trincheira contra o excepcionalismo humano. Porém os animismos parecem se comprometer com a ideia de que as unidades de ação são em última instância movidos por uma agência interna, os agentes são pautados por suas agendas. Essas agendas, por sua vez, podem ser também elas completamente expostas, ainda que esta visão de drone não possa ser alcançada por ninguém em particular. Trata-se de uma transparência cubista, talvez, mas de uma transparência.7 Essa transparência se projeta na simetria entre o sistema econômico que me separa da banana do supermercado e a janela que separa o mico da banana na cozinha – ou, se quisermos, o cauim que eu bebo e o sangue que o jaguar bebe, que é cauim para o jaguar.8 A transparência que resta aqui tem a seguinte fórmula: o mico é para mim o que eu sou para ele. Somos simétricos, somos como instâncias de uma (mesma) interioridade paradigmática. Meu encontro com o mico pode não ser exorcizado pelo conhecimento que eu tenho de sua sociologia, etologia, antropologia ou neurologia, mas tampouco é um mergulho em uma transcendência em que as dinâmica da negociação é desconhecida. Aliás, um encontro não é exatamente uma negociação – é antes uma ampliação de horizontes, uma interrupção da parte de alguma coisa externa. Se não há outro capaz de interromper minha ação e minha agenda, não há encontro. Um encontro talvez só possa ser descrito desde dentro – ou seja em primeira pessoa e com assimetria, onde o outro é outro antes de ser jaguar, pedinte ou mico.
Essa curva em direção a uma noção de exterioridade mais forte me levou a abandonar os animismos em que unidades de ação eram simetricamente regidas por suas agendas. O percurso, para mim, se refletia na fértil crítica de Levinas a Husserl – centrado na ideia de que o outro não pode ser um outro eu, mas é aquilo que eu não sou.9 Uma vez abandonados aqueles animismos, a curva me levou a um projeto que juntava a importância da exterioridade com o abandono da bifurcação da natureza – entre a experiência e seu conteúdo, entre a ordem natural e a ordem dos sentimentos, entre o não-humano e o político. A bifurcação da natureza, que Whitehead queria exorcizar com sua imagem do mundo composta a partir de gotas de experiência, era precisamente o que impediria que a preocupação com a exterioridade fosse um alibi para que o excepcionalismo humano e a naturalização do não-humano fossem reinstaurados. Era preciso que a postura de Levinas acerca da exterioridade incorrigível do outro fosse combinada com a doutrina de Whitehead de que a experiência é ubíqua, uma espécie de pan-psiquismo que se aproxima de alguma forma de animismo. Este projeto – que constrói uma metafísica situada dos outros – procura conciliar dois requisitos uma vez apresentados por Anna Tsing: narrar o mundo com as melhores habilidades e deixar espaço para a narrativa dos outros. A segunda parte da recomendação não deve significar incluir a narrativa dos outros como parte da narrativa escolhida, mas considerar os outros enquanto exterioridade absoluta no seio mesmo de qualquer narrativa. Trata-se talvez de um animismo judaico, se pensarmos em Levinas, mas também em Franz Rosenzweig.10 A animação de tudo é movida não por uma agenda interna que pode ser exposta em uma imagem completa, mas pelo impacto da interrupção provocada por um outro exterior e portanto transcendente. A narrativa, e a negociação com os micos, aparecem então como situada e assimétrica; ela só pode ser experimentada como um encontro com algo distinto, com alguma coisa que eu não sou. Se a metafísica dos outros é uma forma de animismo, é um animismo em que é a exterioridade e não as relações simétricas com o não-humano que garantem encontros desnaturalizados.
Porém também a metafísica dos outros parece ter seus problemas, muitos dos quais são também problemas para os animismos antes da curva judaica. Se por um lado a naturalização é um elemento comum de diversas pautas emancipatórias – que procuram intensificar a política em detrimento da administração – há um conflito dificilmente reconciliável entre a emancipação humana, pelo menos pensada em certos termos, e a desnaturalização do não-humano. Ou seja, nas lutas cosmopolíticas, em que bem mais do que as decisões humanas e suas implicações apenas para os humanos eles mesmos estão em jogo, não parece ser sempre fácil hastear a bandeira verde ao lado da vermelha (ou mesmo da preta) como eu escrevi uma vez. Se não-humanos são aqueles que não são humanos e nem criações humanas – como (pelo menos grande parte da) techné, da artificialidade – pode parecer que a fidelidade a eles é uma retrógrada nostalgia de um tempo em que a humanidade estava à serviço de forças alheias a ela. De fato, a virada de Heidegger (a Kehre) em direção a um esquecimento do inteligível posto em arquivo em favor de um insight rápido mas passageiro (Einblick) é frequentemente vista como uma posição reacionária frente à modernidade e suas prendas – autonomia, anonimato, conforto, previsibilidade. Os animistas então são vistos como variedades de ludismo, a pregação pela destruição das máquinas opressoras. Há um esquema de argumentação que combate o ludismo através da capacidade de reinvenção da humanidade por meio do engajamento nas forças produtivas que requerem cada vez mais automação e integração das unidades de trabalho. Esta foi uma linha central dos argumentos de Marx em favor da classe operária industrial – e não do campesinato repleto de conhecimento tradicional e de integração com não-humanos, por exemplo através da prática da bruxaria que, como mostra Silvia Federici entre outras, teve que ser destruída por um genocídio para que o capitalismo tomasse forma – como uma classe especial na luta pela emancipação de quem trabalha. A produção é o que reinventa constantemente as relações sociais já que estas são forjadas por meio das forças produtivas que a própria produção transforma. O marxismo entende que não é a captura da inteligibilidade das coisas do mundo que produz uma emancipação das amarras extra-humanas, mas é a produção que reinventa formas de co-existir. A produção é criativa e integrativa e nenhuma forma económica anterior ao capital for capaz de oferecer tamanha flexibilidade, mobilidade e capacidade transformadora à produção.
O marxismo tomou muitas formas ao longo do século XX e algumas particularmente interessantes nas últimas décadas. A capacidade da produção de libertar e a capacidade do capital de soltar as amarras da produção produziram a ideia de que o capitalismo é um passo adiante que não admite retrocesso. A emancipação requer uma intensificação do capital e não seu desmantelamento – uma intensificação da capacidade de derreter as estruturas opressivas, de integrar quem trabalha em cadeias produtivas que formam elas mesmas novas relações sociais, de gerir com eficiência a distribuição e o registro da produção humana. Para falar de apenas um desenvolvimento, o marxismo recebeu uma roupagem cosmopolítica nos trabalhos de Deleuze e Guattari, Lyotard, Baudrillard e Firestone. Esta roupagem foi ainda mais intensificada pelo CCRU (Culture and Cybernetics Research Unit da Universidade de Warwick) na virada do século. A imagem que surge é que a abstração do trabalho e da distribuição da produção permitiu uma desterritorialização e uma descodificação de fluxos sem precedentes e, ainda que o capitalismo promova sempre uma importante reterritorialização estimulando as relações sociais anteriores à produção – mas próprias da reprodução (família, pátria, raça) – seu nomadismo não pode ser descartado de um projeto de emancipação, qualquer que seja a forma que ela assuma. Os aceleracionistas de esquerda que se reuniram na última década em torno de um projeto de transformação da sociedade que faz uso das forças trazidas a tona no processo de emergência da governança do capital entendem que a decodificação dos fluxos e a automação dos processos pode ser reorientada mas não abandonada sob pena de que qualquer projeto de emancipação humana escorra com ele pelo ralo. (Penso aqui no manifesto de 2013/14, de Alex Williams e Nick Srnicek, nos inumanismo de Ray Brassier e Reza Negarestani, no xenofeminismo de Helen Hester mas também no comunismo ácido de Mark Fisher.)
Há duas mensagens deste marxismo cibernético para os animismos que merecem ser consideradas. Primeira, os micos, jaguares, porcos selvagens, plantas de mandioca e Gaia não são os únicos agentes não-humanos a demandarem um protagonismo nas comunidades políticas humanas. Há também os inumanos desterrados, nômades, desterritorializantes, extra-terrestres como os fluxos cibernéticos incluindo sobretudo o capital que talvez seja a mínima matéria alienígena que ataca e conquista o planeta apenas com os recursos do inimigo, na imagem de alto impacto de Nick Land.11 Talvez frente à irrupção de Gaia, nos termos de Stengers, haja uma extrusão do capital e os dois possam ser vistos como ação e reação em uma física cósmica de muitos intermediários. O capital, e seus rebentos: as máquinas ainda em sua infância, como eu passei a enxergar,12 formam uma população de não-humanos (ou quase-humanos, ou pós-humanos ou de rebentos dos humanos com o capital alienígena) que formam uma paisagem que ela também não pode ser desprezada. Talvez estes não-humanos devam apenas ser combatidos em nome de uma humanidade pura e ancestral, primitiva e original de difícil acesso. As forças não humanas talvez puxem a humanidade para duas direções opostas, para a pedra e para a correnteza, como na imagem de Rilke na segunda Elegia de Duíno. Talvez se tratem de dois partidos cosmopolíticos irreconciliáveis que puxam a humanidade ou em direção aos seus ancestrais ou em direção aos seus descendentes.13
A segunda mensagem diz respeito à dificuldade de produzir uma emancipação humana que tenha que levar com ela tudo o que é terrano. Os inumanistas, em sua ênfase acerca da capacidade do espírito (de Geist) de atuar em uma cibernética positiva em que a inteligência se alimenta dela mesma – e dos inteligíveis capturados – em direção a uma reinvenção constante de normas e procedimentos, entendem que o que há de digno na humanidade a ser preservado é precisamente a revisibilidade da inteligência, uma desterritorializaçao que é mais implacável que o próprio capital. Talvez a inteligência seja o vírus extra-terrestre que nos seduz e toma conta de nossos gestos mesmo quando negociamos uma convivência com os demais viventes do planeta. Quando trato com os micos, a inteligência ronda e é ela que pode descobrir alternativas, revisar o conhecimento que tenho no início das negociações, reinventar a co-existência – como a produção pode fazer na análise marxista. Diante da acusação de que a luta pela preservação da espécie humana mesmo desterrada de seu planeta é uma defesa da excepcionalidade humana, o inumanismo responde com o caráter sui generis, desterrado, nômade – singular – da inteligência. A inteligência está nos humanos mas não é necessariamente humana, é a herança que pretendemos deixar à artificialidade. O inumanismo é um dos polos que puxa a humanidade na direção oposta à dos animismos, e faz isso abraçando o naturalismo ainda mais intensamente – e rejeitando como conservador qualquer forma de pan-psiquismo. O naturalismo inumanista não é uma defesa do domínio da inteligência humana sobre o mundo, mas uma defesa da inteligência (Geist é Ge-Stell) ela mesma contra todo o resto.
Chego, para terminar rapidamente, na última curva da virada animista. É nesta curva que eu me encontro agora. A produção e a inteligência são forças nômades de decodificação já que sua aplicação é sempre uma instância de sua instituição. Porém elas só adquirem esta força espiral ciberpositiva que nos afasta dos outros na Terra se elas são tidas como convergentes. Ou seja, os inumanistas pensam que Geist (como Ge-Stell) é uma só e tende a um único lugar – e por isso não há plural de inteligência. Porém a inteligência também sofre de cissiparidade – e é isso que a assombra a cada passo, a cada aplicação de regra, a cada seguimento de um princípio. A alteridade assombra a inteligência – a cada passo, ela contempla como em um diálogo já que o discurso é sempre direcionado a alguém. Há uma voz que reinterpreta a inteligência e seus inteligíveis – que a suplementa, que a questiona a partir da situação mesma em que ela se encontra. A inteligência se aterra e, em uma metafísica situada dos outros, ela é precisamente aquilo que se multiplica, aquilo que se pluraliza, aquilo que se fertiliza pela exterioridade, pelo fora, pelo inconcebível a priori do encontro. A inteligência não é independente da circunstância do encontro – por exemplo, na negociação com os micos; ela se desprende da atividade mas nunca conclui o que está alheio à sua vizinhança, à sua proximidade. Argumento que a inteligência está sempre também alhures, ela é de fora no sentido de que há sempre, para humanos e não-humanos, um aberto, já que não há existência sem co-existência e esta tem lugar em um horizonte em que há um outrora, um longe e um exterior. Assim como a inteligência, também a produção diverge. É possível entender, por exemplo o final do capítulo 24 de O Capital, como sendo uma recomendação em favor da globalização e da socialização que as máquinas e as forças produtivas transformadoras que o capital forja não como uma convergência em direção a um único socialismo que aparece como uma anástrofe no advento mesmo do capital na Terra, mas como uma contínua transformação por meio de relações sociais cada vez mais reinventadas a partir de novas forças produtivas. (A imagem de Deleuze e Guattari é a da deriva em direção ao esquizo que é aquele que produz desterritorializado de qualquer instrumento de distribuição e registro – a distribuição e o registro são eles mesmos também produção, e também transformação das relações sociais.) Se a inteligência e a produção são transformadoras em divergência, uma aplicação apropriada da metafísica dos outros permite que elas sejam entendidas como elas mesmas situadas, indexadas, circunstanciadas. Ao contrário do postulação de um espírito absoluto, estaríamos diante de uma multiplicidade que não para diante de nenhum inteligível. Com essa multiplicidade, a inteligência, que não se naturaliza jamais segunda a imagem inumanista, também não unifica, não inclui todas as demais mas deixa espaço para que inteligências dos outros. As máquinas, educadas e treinadas por humanos, não poderão ser para sempre fiéis a eles, mas isso não é um desencaminhamento, é uma proliferação. E é a proliferação de relações sociais que a produção fertiliza, não um outro modo de produção, mas uma constante aventura para além da manutenção da ordem social vigente que as forças produtivas constantemente róem.
Por fim, se a inteligência e a produção podem ser entendidas de acordo com uma metafísica dos outros e distantes de uma suposição de unificação e convergência, a desnaturalização animista pode ajudar a pensá-las. A metafísica dos outros é uma forma de animismo, talvez não um animismo da floresta, mas um animismo dos cenários pós-urbanos onde as árvores altas, as casas, os fios elétricos e as ruas margeiam os micos e humanos. A virada animista é ela mesma uma montanha russa selvagem de muitas curvas – e eu nem imagino que cheguei ao fim da sua corrida. Mas se Descola está certo acerca da oposição direta entre animismos e a ideia moderna de natureza, os animismos aparecem como a força que faz o encontro ser reconquistado como um estado em que estamos à beira do que está do outro lado da (nossa) inteligibilidade. A realidade tem parte com esta exterioridade; como escreveu Jabès, a realidade está do outro lado do muro.
Nurit Bensusan investiga o fenómeno do encontro em seu “Do que é feito o encontro”.14 O encontro não pode ser feito senão de tudo o que temos para trazer à margem de um outro – inclusive os limites do que tomamos como inteligível. O encontro é situado e então só aparece na primeira pessoa; ele não pode ser exorcizado pelo conhecimento, pela verdade ou pela empáfia. Mas o encontro requer um outro que não está incluído em si e que nos abre, nos reposiciona, retira nossos corpos da agenda de um organismo. Michel Serres tinha esta imagem das junções improváveis mas possíveis: há um custo no transporte como aquele da passagem por água do Ártico ao Pacífico, a passagem norte-oeste através do Canadá; é preciso esperar lagos descongelarem, esperar a correnteza dos rios, encontrar os córregos navegáveis, mas as duas massas de água podem se encontrar.15 Os animismos, mais do que posturas políticas ou disposições acerca do mundo, são não mais que uma afirmação de confiança nos encontros, por mais tortuosos que eles pareçam. Essa confiança é o que pode nos desviar dos caminhos que parecem atalhos mas que não terminam sem encontrar coisa alguma.
Hilan Bensusan
Para Nurit
Pela janela da cozinha, durante a quarentena, aparecem os micos todas as manhãs. Eles são de toda a vizinhança, e passam de casa em casa pelos fios elétricos, pontes urbanas entre as árvores altas onde eles moram e que atravessam a rua como se ela fosse um rio. Na beira da rua, eles aparecem grudados na esquadria e, se a janela está aberta, entram e pegam e comem as bananas, muito grandes para eles carregarem sozinhos. Fecho a janela e eles seguem olhando para dentro, sentindo o cheiro de alguma fruta que eles sabem que está do outro lado. Eles olham, olhos que se misturam com o lado de dentro da cozinha, com suas caras e também com elas soltam pequenos sons que não consigo escutar a não ser se olho também para a cara deles e meus olhos se misturam com o pedido deles. O encontro, através do vidro da janela, é entre eu e o rosto deles, um rosto que pede – lembro de um trecho de diálogo de Coetze. O filho de Elizabeth Costello fala dos gatos e aponta para um deles em que há uma marca branca no rosto, “"Estritamente falando", diz a mãe, "os gatos não têm rostos". E em seguida ela diz: "Os pássaros não têm rostos, […] [o] peixe não tem rosto. Por que os gatos deveriam? As únicas criaturas com rostos propriamente ditos são seres humanos. Nossos rostos são o que prova que somos humanos.” O filho então se pergunta: o termo certo qual seria? Talvez 'características anteriores', mas se os animais não tem cara, como eles encaram o mundo?
"Um gato tem uma aparência, uma aparência corporal, mas não um rosto", diz sua mãe. “Mesmo não nascemos com rostos. Um rosto precisa ser incutido em nós, como um fogo é incutido do em carvão. Eu persuadi um rosto em você, de suas profundezas. Lembro-me de como me inclinei sobre você e soprei em você, dia após dia, até que finalmente você, o ser que te chamei de meu filho, começou a surgir. Foi como invocar uma alma.”1 Elizabeth Costello não encontra nos gatos uma cara ou talvez nem sequer uma palavra, mas está engajada no partido deles. No partido dos gatos que se proliferam na pequena cidade esvaziada de humanos se de alguma forma eles encontram o alimento que ela assídua e incondicionalmente lhes oferece.
Lembro também de Carlos Segóvia falando do que entende por animismo: trata-se de uma ênfase nos corpos, e não nas almas. As características anteriores estão ali e, com elas, olhos, boca e fome. Falta o sopro – ou melhor, eu não sei se falta o sopro. Os micos tem mães que lhes sopram nas características anteriores. Mais que isso, eles pedem, e o pedido é uma relação com o mundo. Não uma relação que está prestes a escrever um tratado sobre ele e nem sequer uma relação que caberia em um tratado acerca do mundo. Como eu escrevi uma vez, ele é do âmbito daquilo que torna possível fazer tratados, fazer tratos, entrar em tratativas. Quando fazemos tratados, temos que aprender a desconsiderar aquilo que achamos que sabemos – todo conhecimento é apenas aquilo com o qual sentamos à mesa. Se não abrimos as cartas dele na mesa, não há tratado, não há trato; há apenas a insistência em fazer não atrapalhar o tratado já escrito. Também outras pessoas fazem pedidos, e as vezes nem sequer fazem isso com a linguagem pública sancionada como a via expressa onde passam as razões legítimas. E quando pedem, também podemos invocar tratados já escritos ou esboçados. Sempre senti um desconforto quando me diziam, ou ainda me dizem, “é melhor que os pedintes aprendam a não mais pedir na rua, a ir trabalhar – ou a ir protestar, ou a ir encontrar uma maneira de não mais precisar pedir”. É melhor que o problema, que é eles nos interromperem requerendo uma resposta, seja resolvido de alguma maneira – uma revolução ou, bem pior, um aprendizado de quem pede a entrar na ordem social e existencial estabelecida. É melhor que a responsabilidade que eles invocam seja dissolvida ou exorcizada. Talvez ela pudesse ser resolvida de uma vez por todas – e eu pensava que esta não seria uma ideia de todo má; todo pedido é político e se requer uma revolução (macro-)política. Mas se uma revolução tomar conta de todas as nossas responsabilidades, do que mais trataríamos na vida ou como mais poderíamos esperar que ela nos tratasse? Eu acho que os tratados tem uma dimensão local que gosto de pensar da seguinte maneira: da justiça nunca se esquiva ainda que a justiça nunca se faça por completo. Os corpos são locais – as almas é que são inteligíveis. E aqui volto ao Carlos Segóvia: é um encontro de corpos de que se trata, um encontro que, com os corpos, traz as coragens, as compulsões, as agendas – e um encontro é uma interrupção.
Há teorias sobre os micos – sociológicas ou etológicas ou antropológicas ou neurológicas – como há teorias sobre todos os pedintes que cruzam alguma fronteira e interrompem. E bem mais do que sobre os pedintes, há teorias sobre os encontros. Essas teorias satisfazem uma vontade de verdade e há uma maneira de pensar no ocidente – niilista, moderna, naturalista – segundo a qual a verdade oferece uma espécie de licença especial para a injustiça. E uma dispensa do trabalho do encontro, do esforço do tratado (quando é trato), da atividade da hospitalidade. Talvez os micos não merecessem as bananas, talvez eles comendo bananas vão passar a ser mais preguiçosos, se tornem vadios, pedintes e abandonem a vida saudável convencidos de que sua alma é um abismo. Por outro lado, aos encontros comparecemos com medo, com curiosidade e determinaçao talvez, mas com medo. Nós e os micos. E também com o encontro não vamos deixar a responsabilidade saciada – ela é interminável. Saio até a porta de casa e compatilho com eles algumas bananas; de longe, sem tocar em nenhuma mandíbula, sem deixar mesmo que eles se aproximem muito. Os micos ainda mais assustados. Os corpos são o lugar da diferença. Os animistas do baixo Amazonas, descritos por Philippe Descola, pensariam que a fome, o medo, a coragem e a responsabilidade são comuns entre a minha alma e a do mico pendurando na esquadria. Nossos corpos são diferentes – e diferentes ao ponto em que nossas almas (e a fome, o medo, a coragem e a responsabilidade) não podem saber tudo o que precisam sobre os corpos dos outros. Descola entende o animismo em contraste com o naturalismo – e com outras duas disposições de co-existência com o não-humano – em um âmbito que ele chama, em parte ironicamente, de antropologia da natureza. A ideia de natureza, bem como sua ancestral na distinção aristotélica entre physis e techné, é concebida como aquilo que cabe em um livro, em um tratado; ela surge da empreitada metafísica ocidental de capturar a inteligibilidade das coisas e de expor e dispor de suas capacidades e de seu viço. A natureza é o centro da teologia política e o guia da vontade de verdade dos Modernos – os naturalistas. Em contraste, o animismo toma como ponto de partida a animação da maioria das coisas, humanas e não-humanas. É a interioridade comum que pretende ser o ponto de triangulação entre corpos diferentes – entre eu e o mico da janela, há a fome (e o medo) em comum.
O animismo descrito por Descola foi o que primeiro me convenceu; ainda que sabia que ele era já muitos.2 Achava que o animismo era uma força de desnaturalização, e a desnaturalização era onde começava o trabalho crítico e a intervenção política – os animismos roíam a separação constitucional moderna, segundo Bruno Latour, que separa a política da natureza.3 Eles mostravam que a multiplicidade estava nos corpos, e não no que fazíamos com eles – e assim demoliam de uma só vez o multiculturalismo e o excepcionalismo humano. Além disso, permitiam entender o conhecimento como uma aliança, como parte de um gesto de negociação, de uma diplomacia que abria o caminho da desnaturalização à política. Os animismos apontavam para agentes capazes por sua própria estrutura a negociar por sua agenda e nenhuma verdade sobre o mundo era indiferente a esta negociação que não pode ser substituída por uma imagem conhecida de como se comportam os outros. Esses animismos ofereciam uma imagem em que o conhecimento, trazendo a verdade no seu bojo, não estabelecia determinações que eram alheias a qualquer agente e exorcizavam uma visão vinda de agente algum que poderia se estabelecer independentemente de qualquer par de olhos. Era como se tudo o que eu soubesse sobre a neurologia, a antropologia, a etologia ou a sociologia dos meus vizinhos ou dos micos na minha janela fossem vistos como o estado das coisas no presente estágio das minhas negociações com eles. Os animismos destituem a imagem (naturalista) de natureza e com ela a ideia de que o não-humano é um recurso em reserva para o proveito da agência humana jamais interrompida.
A noção de naturalização é de fato vista como problematicamente a-política em outros âmbitos – a naturalização da dominação masculina esvazia o conteúdo político dos feminismos, a naturalização das lutas raciais alça a supremacia branca a um ponto acima de qualquer luta política, a naturalizaçao da economia anuncia um pensamento único acerca de como as comunidades devem se organizar. A operação animista está então em continuidade com as lutas feministas, anti-racistas e por alternativas ao pensamento econômico neo-liberal – trata-se agora, ele proclamaria, de desnaturalizar a natureza; ou, se quisermos, desnaturalizarmos o não-humano e nossas relações com ele. Descola descreve grupos humanos no baixo Amazonas em que as transações com não humanos são orientadas pela equidade ou pela dádiva mas também outros em que estas transações são guiadas pela rapina seguida de fuga da parte de humanos na intenção de observar que há transações com o não-humano muito distintas entre si ainda que em contraste com as relações modernas de assumir uma subordinação completa do que é natural. Ao invés, por exemplo, de permanecer em uma relação supostamente natural de depredação do não-humano, é possível desnaturalizar esta relação abusiva do mesmo modo como os feminismos ensinam a desnaturalizar o patriarcado. A naturalização da natureza é uma herança ancestral que talvez tenha gradualmente tomado corpo até parecer inegável aos naturalistas. Carlos Segóvia entende os relatos bíblicos como sendo a mais imponente e persistente máquina de guerra contra a atitude animista: eles relatam tudo o que não é humano como parte da herança (politicamente conflituosa) que Deus preparou para os humanos. 4 De fato, a ideia mesma de natureza surja desta herança- uma vez que tudo o que é natural foi feito para o nosso deleite, podemos então dispor dele, expor ele, torná-lo transparente. Os animismos se posicionam contra este procedimento que termina transformando também os humanos em naturalizados e disponíveis, em administráveis. Em contraste, o naturalismo – que Descola entende que chega na Europa algumas décadas depois de Montaigne – é precisamente a disposição que se aventura na colonização do resto do mundo, humano e não-humano. Também o humano – lembremos da origem da etnologia e dos parques etnográficos onde humanos eram exibidos em suas formas de vida agora transparentes nas exposições universais com milhões de visitantes no século XIX e início do XX – pode ser naturalizado, administrado, transformado em recurso já que a herança de Deus inclui todos aqueles que não foram tocados pela palavra (anti-animista) da fé. A insígnia 'o não-humano é político' é também insígnia que trata de partes da nossa vida corporal – o sono, a sanidade, o sexo, a amizade – e que se transformam em recursos à disposição controláveis por dispositivos, aplicativos ou comprimidos. Como Heidegger diagnosticou, capturar a inteligibilidade das coisas e colocá-las em reserva pronta para uso não é um serviço em benefício dos humanos – e nem sequer de alguns humanos. Ge-Stell, esta transformação do mundo em alguma coisa que pode ser comandada, transforma também tudo o que é humano em alguma coisa que pode ser comandada.5
Esta primeira curva da virada animista, contudo, não me pareceu suficiente. Parecia bem que o naturalismo pudesse ser criticado em suas bases, em suas pressuposições que muitas vezes passam despercebidos. Eu entendia esses animismos, contudo, como tendo uma teoria da interioridade – comum a mim, aos meus vizinhos e aos micos – que constituía uma estrutura que ela mesma não podia ser negociada. Todos nós seríamos agentes políticos e éramos assim, por assim dizer, por natureza. Os animismos apontavam para uma forma de pan-psiquismo que entendia a experiência ou a agência, ou ambos, como espalhadas por toda parte – há uma interioridade comum a humanos e não-humanos. Um esquema de argumento em favor do pan-psiquismo é que se nós temos experiência e agência (uma premissa cartesiana que é o ponto de partida) é razoável projetar essas propriedades para tudo o que é físico – apesar de que a física ela mesma, mesmo a física do futuro, não pode descrever estas propriedades já que elas eludem a medição.6 O pan-psiquismo é uma trincheira contra o excepcionalismo humano. Porém os animismos parecem se comprometer com a ideia de que as unidades de ação são em última instância movidos por uma agência interna, os agentes são pautados por suas agendas. Essas agendas, por sua vez, podem ser também elas completamente expostas, ainda que esta visão de drone não possa ser alcançada por ninguém em particular. Trata-se de uma transparência cubista, talvez, mas de uma transparência.7 Essa transparência se projeta na simetria entre o sistema econômico que me separa da banana do supermercado e a janela que separa o mico da banana na cozinha – ou, se quisermos, o cauim que eu bebo e o sangue que o jaguar bebe, que é cauim para o jaguar.8 A transparência que resta aqui tem a seguinte fórmula: o mico é para mim o que eu sou para ele. Somos simétricos, somos como instâncias de uma (mesma) interioridade paradigmática. Meu encontro com o mico pode não ser exorcizado pelo conhecimento que eu tenho de sua sociologia, etologia, antropologia ou neurologia, mas tampouco é um mergulho em uma transcendência em que as dinâmica da negociação é desconhecida. Aliás, um encontro não é exatamente uma negociação – é antes uma ampliação de horizontes, uma interrupção da parte de alguma coisa externa. Se não há outro capaz de interromper minha ação e minha agenda, não há encontro. Um encontro talvez só possa ser descrito desde dentro – ou seja em primeira pessoa e com assimetria, onde o outro é outro antes de ser jaguar, pedinte ou mico.
Essa curva em direção a uma noção de exterioridade mais forte me levou a abandonar os animismos em que unidades de ação eram simetricamente regidas por suas agendas. O percurso, para mim, se refletia na fértil crítica de Levinas a Husserl – centrado na ideia de que o outro não pode ser um outro eu, mas é aquilo que eu não sou.9 Uma vez abandonados aqueles animismos, a curva me levou a um projeto que juntava a importância da exterioridade com o abandono da bifurcação da natureza – entre a experiência e seu conteúdo, entre a ordem natural e a ordem dos sentimentos, entre o não-humano e o político. A bifurcação da natureza, que Whitehead queria exorcizar com sua imagem do mundo composta a partir de gotas de experiência, era precisamente o que impediria que a preocupação com a exterioridade fosse um alibi para que o excepcionalismo humano e a naturalização do não-humano fossem reinstaurados. Era preciso que a postura de Levinas acerca da exterioridade incorrigível do outro fosse combinada com a doutrina de Whitehead de que a experiência é ubíqua, uma espécie de pan-psiquismo que se aproxima de alguma forma de animismo. Este projeto – que constrói uma metafísica situada dos outros – procura conciliar dois requisitos uma vez apresentados por Anna Tsing: narrar o mundo com as melhores habilidades e deixar espaço para a narrativa dos outros. A segunda parte da recomendação não deve significar incluir a narrativa dos outros como parte da narrativa escolhida, mas considerar os outros enquanto exterioridade absoluta no seio mesmo de qualquer narrativa. Trata-se talvez de um animismo judaico, se pensarmos em Levinas, mas também em Franz Rosenzweig.10 A animação de tudo é movida não por uma agenda interna que pode ser exposta em uma imagem completa, mas pelo impacto da interrupção provocada por um outro exterior e portanto transcendente. A narrativa, e a negociação com os micos, aparecem então como situada e assimétrica; ela só pode ser experimentada como um encontro com algo distinto, com alguma coisa que eu não sou. Se a metafísica dos outros é uma forma de animismo, é um animismo em que é a exterioridade e não as relações simétricas com o não-humano que garantem encontros desnaturalizados.
Porém também a metafísica dos outros parece ter seus problemas, muitos dos quais são também problemas para os animismos antes da curva judaica. Se por um lado a naturalização é um elemento comum de diversas pautas emancipatórias – que procuram intensificar a política em detrimento da administração – há um conflito dificilmente reconciliável entre a emancipação humana, pelo menos pensada em certos termos, e a desnaturalização do não-humano. Ou seja, nas lutas cosmopolíticas, em que bem mais do que as decisões humanas e suas implicações apenas para os humanos eles mesmos estão em jogo, não parece ser sempre fácil hastear a bandeira verde ao lado da vermelha (ou mesmo da preta) como eu escrevi uma vez. Se não-humanos são aqueles que não são humanos e nem criações humanas – como (pelo menos grande parte da) techné, da artificialidade – pode parecer que a fidelidade a eles é uma retrógrada nostalgia de um tempo em que a humanidade estava à serviço de forças alheias a ela. De fato, a virada de Heidegger (a Kehre) em direção a um esquecimento do inteligível posto em arquivo em favor de um insight rápido mas passageiro (Einblick) é frequentemente vista como uma posição reacionária frente à modernidade e suas prendas – autonomia, anonimato, conforto, previsibilidade. Os animistas então são vistos como variedades de ludismo, a pregação pela destruição das máquinas opressoras. Há um esquema de argumentação que combate o ludismo através da capacidade de reinvenção da humanidade por meio do engajamento nas forças produtivas que requerem cada vez mais automação e integração das unidades de trabalho. Esta foi uma linha central dos argumentos de Marx em favor da classe operária industrial – e não do campesinato repleto de conhecimento tradicional e de integração com não-humanos, por exemplo através da prática da bruxaria que, como mostra Silvia Federici entre outras, teve que ser destruída por um genocídio para que o capitalismo tomasse forma – como uma classe especial na luta pela emancipação de quem trabalha. A produção é o que reinventa constantemente as relações sociais já que estas são forjadas por meio das forças produtivas que a própria produção transforma. O marxismo entende que não é a captura da inteligibilidade das coisas do mundo que produz uma emancipação das amarras extra-humanas, mas é a produção que reinventa formas de co-existir. A produção é criativa e integrativa e nenhuma forma económica anterior ao capital for capaz de oferecer tamanha flexibilidade, mobilidade e capacidade transformadora à produção.
O marxismo tomou muitas formas ao longo do século XX e algumas particularmente interessantes nas últimas décadas. A capacidade da produção de libertar e a capacidade do capital de soltar as amarras da produção produziram a ideia de que o capitalismo é um passo adiante que não admite retrocesso. A emancipação requer uma intensificação do capital e não seu desmantelamento – uma intensificação da capacidade de derreter as estruturas opressivas, de integrar quem trabalha em cadeias produtivas que formam elas mesmas novas relações sociais, de gerir com eficiência a distribuição e o registro da produção humana. Para falar de apenas um desenvolvimento, o marxismo recebeu uma roupagem cosmopolítica nos trabalhos de Deleuze e Guattari, Lyotard, Baudrillard e Firestone. Esta roupagem foi ainda mais intensificada pelo CCRU (Culture and Cybernetics Research Unit da Universidade de Warwick) na virada do século. A imagem que surge é que a abstração do trabalho e da distribuição da produção permitiu uma desterritorialização e uma descodificação de fluxos sem precedentes e, ainda que o capitalismo promova sempre uma importante reterritorialização estimulando as relações sociais anteriores à produção – mas próprias da reprodução (família, pátria, raça) – seu nomadismo não pode ser descartado de um projeto de emancipação, qualquer que seja a forma que ela assuma. Os aceleracionistas de esquerda que se reuniram na última década em torno de um projeto de transformação da sociedade que faz uso das forças trazidas a tona no processo de emergência da governança do capital entendem que a decodificação dos fluxos e a automação dos processos pode ser reorientada mas não abandonada sob pena de que qualquer projeto de emancipação humana escorra com ele pelo ralo. (Penso aqui no manifesto de 2013/14, de Alex Williams e Nick Srnicek, nos inumanismo de Ray Brassier e Reza Negarestani, no xenofeminismo de Helen Hester mas também no comunismo ácido de Mark Fisher.)
Há duas mensagens deste marxismo cibernético para os animismos que merecem ser consideradas. Primeira, os micos, jaguares, porcos selvagens, plantas de mandioca e Gaia não são os únicos agentes não-humanos a demandarem um protagonismo nas comunidades políticas humanas. Há também os inumanos desterrados, nômades, desterritorializantes, extra-terrestres como os fluxos cibernéticos incluindo sobretudo o capital que talvez seja a mínima matéria alienígena que ataca e conquista o planeta apenas com os recursos do inimigo, na imagem de alto impacto de Nick Land.11 Talvez frente à irrupção de Gaia, nos termos de Stengers, haja uma extrusão do capital e os dois possam ser vistos como ação e reação em uma física cósmica de muitos intermediários. O capital, e seus rebentos: as máquinas ainda em sua infância, como eu passei a enxergar,12 formam uma população de não-humanos (ou quase-humanos, ou pós-humanos ou de rebentos dos humanos com o capital alienígena) que formam uma paisagem que ela também não pode ser desprezada. Talvez estes não-humanos devam apenas ser combatidos em nome de uma humanidade pura e ancestral, primitiva e original de difícil acesso. As forças não humanas talvez puxem a humanidade para duas direções opostas, para a pedra e para a correnteza, como na imagem de Rilke na segunda Elegia de Duíno. Talvez se tratem de dois partidos cosmopolíticos irreconciliáveis que puxam a humanidade ou em direção aos seus ancestrais ou em direção aos seus descendentes.13
A segunda mensagem diz respeito à dificuldade de produzir uma emancipação humana que tenha que levar com ela tudo o que é terrano. Os inumanistas, em sua ênfase acerca da capacidade do espírito (de Geist) de atuar em uma cibernética positiva em que a inteligência se alimenta dela mesma – e dos inteligíveis capturados – em direção a uma reinvenção constante de normas e procedimentos, entendem que o que há de digno na humanidade a ser preservado é precisamente a revisibilidade da inteligência, uma desterritorializaçao que é mais implacável que o próprio capital. Talvez a inteligência seja o vírus extra-terrestre que nos seduz e toma conta de nossos gestos mesmo quando negociamos uma convivência com os demais viventes do planeta. Quando trato com os micos, a inteligência ronda e é ela que pode descobrir alternativas, revisar o conhecimento que tenho no início das negociações, reinventar a co-existência – como a produção pode fazer na análise marxista. Diante da acusação de que a luta pela preservação da espécie humana mesmo desterrada de seu planeta é uma defesa da excepcionalidade humana, o inumanismo responde com o caráter sui generis, desterrado, nômade – singular – da inteligência. A inteligência está nos humanos mas não é necessariamente humana, é a herança que pretendemos deixar à artificialidade. O inumanismo é um dos polos que puxa a humanidade na direção oposta à dos animismos, e faz isso abraçando o naturalismo ainda mais intensamente – e rejeitando como conservador qualquer forma de pan-psiquismo. O naturalismo inumanista não é uma defesa do domínio da inteligência humana sobre o mundo, mas uma defesa da inteligência (Geist é Ge-Stell) ela mesma contra todo o resto.
Chego, para terminar rapidamente, na última curva da virada animista. É nesta curva que eu me encontro agora. A produção e a inteligência são forças nômades de decodificação já que sua aplicação é sempre uma instância de sua instituição. Porém elas só adquirem esta força espiral ciberpositiva que nos afasta dos outros na Terra se elas são tidas como convergentes. Ou seja, os inumanistas pensam que Geist (como Ge-Stell) é uma só e tende a um único lugar – e por isso não há plural de inteligência. Porém a inteligência também sofre de cissiparidade – e é isso que a assombra a cada passo, a cada aplicação de regra, a cada seguimento de um princípio. A alteridade assombra a inteligência – a cada passo, ela contempla como em um diálogo já que o discurso é sempre direcionado a alguém. Há uma voz que reinterpreta a inteligência e seus inteligíveis – que a suplementa, que a questiona a partir da situação mesma em que ela se encontra. A inteligência se aterra e, em uma metafísica situada dos outros, ela é precisamente aquilo que se multiplica, aquilo que se pluraliza, aquilo que se fertiliza pela exterioridade, pelo fora, pelo inconcebível a priori do encontro. A inteligência não é independente da circunstância do encontro – por exemplo, na negociação com os micos; ela se desprende da atividade mas nunca conclui o que está alheio à sua vizinhança, à sua proximidade. Argumento que a inteligência está sempre também alhures, ela é de fora no sentido de que há sempre, para humanos e não-humanos, um aberto, já que não há existência sem co-existência e esta tem lugar em um horizonte em que há um outrora, um longe e um exterior. Assim como a inteligência, também a produção diverge. É possível entender, por exemplo o final do capítulo 24 de O Capital, como sendo uma recomendação em favor da globalização e da socialização que as máquinas e as forças produtivas transformadoras que o capital forja não como uma convergência em direção a um único socialismo que aparece como uma anástrofe no advento mesmo do capital na Terra, mas como uma contínua transformação por meio de relações sociais cada vez mais reinventadas a partir de novas forças produtivas. (A imagem de Deleuze e Guattari é a da deriva em direção ao esquizo que é aquele que produz desterritorializado de qualquer instrumento de distribuição e registro – a distribuição e o registro são eles mesmos também produção, e também transformação das relações sociais.) Se a inteligência e a produção são transformadoras em divergência, uma aplicação apropriada da metafísica dos outros permite que elas sejam entendidas como elas mesmas situadas, indexadas, circunstanciadas. Ao contrário do postulação de um espírito absoluto, estaríamos diante de uma multiplicidade que não para diante de nenhum inteligível. Com essa multiplicidade, a inteligência, que não se naturaliza jamais segunda a imagem inumanista, também não unifica, não inclui todas as demais mas deixa espaço para que inteligências dos outros. As máquinas, educadas e treinadas por humanos, não poderão ser para sempre fiéis a eles, mas isso não é um desencaminhamento, é uma proliferação. E é a proliferação de relações sociais que a produção fertiliza, não um outro modo de produção, mas uma constante aventura para além da manutenção da ordem social vigente que as forças produtivas constantemente róem.
Por fim, se a inteligência e a produção podem ser entendidas de acordo com uma metafísica dos outros e distantes de uma suposição de unificação e convergência, a desnaturalização animista pode ajudar a pensá-las. A metafísica dos outros é uma forma de animismo, talvez não um animismo da floresta, mas um animismo dos cenários pós-urbanos onde as árvores altas, as casas, os fios elétricos e as ruas margeiam os micos e humanos. A virada animista é ela mesma uma montanha russa selvagem de muitas curvas – e eu nem imagino que cheguei ao fim da sua corrida. Mas se Descola está certo acerca da oposição direta entre animismos e a ideia moderna de natureza, os animismos aparecem como a força que faz o encontro ser reconquistado como um estado em que estamos à beira do que está do outro lado da (nossa) inteligibilidade. A realidade tem parte com esta exterioridade; como escreveu Jabès, a realidade está do outro lado do muro.
Nurit Bensusan investiga o fenómeno do encontro em seu “Do que é feito o encontro”.14 O encontro não pode ser feito senão de tudo o que temos para trazer à margem de um outro – inclusive os limites do que tomamos como inteligível. O encontro é situado e então só aparece na primeira pessoa; ele não pode ser exorcizado pelo conhecimento, pela verdade ou pela empáfia. Mas o encontro requer um outro que não está incluído em si e que nos abre, nos reposiciona, retira nossos corpos da agenda de um organismo. Michel Serres tinha esta imagem das junções improváveis mas possíveis: há um custo no transporte como aquele da passagem por água do Ártico ao Pacífico, a passagem norte-oeste através do Canadá; é preciso esperar lagos descongelarem, esperar a correnteza dos rios, encontrar os córregos navegáveis, mas as duas massas de água podem se encontrar.15 Os animismos, mais do que posturas políticas ou disposições acerca do mundo, são não mais que uma afirmação de confiança nos encontros, por mais tortuosos que eles pareçam. Essa confiança é o que pode nos desviar dos caminhos que parecem atalhos mas que não terminam sem encontrar coisa alguma.
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