Skip to main content

Experience without cognitive contact

The paper I read in Porto Alegre earlier today. A non-metaphysical step towards a metaphysical indexicalism.

O de re e o empírico: uma noção indexical de experiência
Hilan Bensusan

1. Desde os gregos há uma interessante (e, eu diria, fértil) ambiguidade entre o sensível e o concreto. Aquilo que co-existe no espaço e no tempo com qualquer forma de sensibilia pode ser descrito como acessível à sensibilidade. Os gregos usavam αισθητ- para se referir ao que hoje entendemos como o concreto – aquilo que está posto no espaço e no tempo. Assim, Platão fala do mundo sensível – composto pelo que pode ser captado pelos sentidos, e não pelo que é de fato captado por uma sensibilia – e Aristóteles critica os heracliteanos defendendo que há substancialidade no sensível, naquilo que é concreto – ainda que a substância sensível não seja acessível aos nossos sentidos desprovidos de outras faculdades. De uma maneira ou de outra, o concreto sempre esteve entrelaçado no sensível. É comum que se entenda que não pode haver intuição sensível senão do que é concreto. É também bastante comum que se entenda o inteligível, que contrasta com o sensível, como sendo abstrato, o oposto ao que é concreto. Kant entendeu que a estética transcendental era o estudo das formas da sensibilidade, e estas formas eram espaço e tempo. O sensível é o que se posiciona no espaço e no tempo. Mas Kant entende o elo entre o espaço e o tempo de um lado e a sensibilidade de outro de uma forma transcendental: a sensibilidade é composta por noções independentes de qualquer experiência empírica, o empírico pressupõe as noções de espaço e de tempo. Ou seja, é o acesso ao concreto que forma o sensível. Kant entende quel ter uma genuína experiência sensível requer ser capaz de colocar o objeto da experiência no espaço e no tempo. Há uma operação reflexiva que associa aquilo que aparece na experiência ao espaço e ao tempo. A experiência sensível se dirige ao concreto e reporta – traz de volta – aquilo que lá encontra em forma de um relato acerca de uma posição no espaço e no tempo. Sem as noções de espaço e de tempo, não há reportagem.

Este afastamento do concreto e do sensível – o sensível requer algo mais do que o contato com o concreto, que de alguma forma torna algo (pelo menos parcialmente ou sob algum aspecto) concreto – é uma herança do empirismo cartesiano. Esse empirismo moderno procurou associar o sensível não ao que está em contato, mas ao que é sentido e trazido pela sensibilia sob a forma de ideias da mente. A herança cartesiana pode ser entendida em termos de dois dualismos acerca do concreto: aquele entre o que é capaz o que não é capaz de sentir (entre o sentiente e o não-sentiente) e aquele entre o que pode e o que não pode ser sentido, experimentado, observado (entre o observacional e o não-observacional). Nem tudo o que é concreto é sensível, o sensível fica restrito ao que sente ou é sentido. Uma vez que o empirismo é associado à ideia de que há itens concretos que são não-observacionais e não podem ser objeto de nenhuma intuição sensível, o concreto fica dividido entre aquilo que é observacional e aquilo que não é, que é possivelmente inteligível mas não sensível. Uma vez que o empirismo é associado à ideia de que apenas por meio de conceitos os sentidos podem fornecer genuínas reportagens acerca do que é concreto, a distinção entre o concreto sentiente e o concreto não-sentiente coincide com a distinção entre os que podem e os que não podem aplicar conceitos sensoriais – ou fazer juízos empíricos – e, pelo menos às vezes, entre animais racionais capazes de experiência e todo o resto. Quando Kant trata de intuições sensíveis – que são cegas sem conceitos – ele trata do que é trazido à mente pelos sentidos, daquilo que os sentidos oferecem. A experiência é pensada em termos do que ela traz à mente do sujeito que experimenta – a experiência é entendida como um exercício de receptividade da mente. De uma maneira geral, o empirismo cartesiano introduziu a ideia de que nem todo concreto é sensível, e que portanto há importantes restrições que determinam o que, dentre aquilo que é concreto, é sensível.

Algo interessante acontece se entendemos o sensível como o concreto e procuramos pensar a experiência sensível neste registro. Se o sensível é apenas o concreto, a noção de experiência (sensível) não é mais pensada em termos do que certos perceptores são capazes e a busca das condições de possibilidade da experiência será realizada em tudo aquilo que é concreto, e não apenas em uma estrutura perceptiva. Não associamos, assim, a experiência sensível a nenhuma sensibilia mínima – a nenhum órgão do sentido – e a nenhuma capacidade de captura, absorção ou acesso em particular. Nem sequer há um requisito acerca de algum acesso reflexivo às noções de espaço e de tempo, é preciso apenas que a experiência ocorra de fato no espaço e no tempo. Meu objetivo aqui é examinar um pouco o que acontece se considerarmos o sensível como sendo nada mais do que o concreto. Não poderei oferecer muitos detalhes das consequências de uma tal posição, mas me restringirei a considerar algumas de suas vantagens e a esboçar um empirismo alternativo, concreto, em que sensibilidade está pressuposta em todo contato. A experiência seria então entendida como um contato entre itens concretos, algo que em si mesmo envolve uma receptividade mas não necessariamente tem como consequência um conteúdo mental. O contato perceptual não é ele mesmo um contato cognitivo – o contato é algo que é definido em termos do que é concreto, uma interação no espaço e no tempo. Um empirismo do concreto seria parte de uma imagem metafísica do concreto; e é neste quadro que a epistemologia da experiência se inseriria.

2. Em “Quantifiers and propositional attitudes”, Quine introduziu uma distinção entre dois tipos de atribuição de crenças, as atribuições que requerem a presença de coisas com os quais quem crê está em relação e aquelas que são independentes de relação com coisa alguma. As atribuições de crença de dicto lidam com descrições, endossadas pelos sujeitos da crença. Assim, “S acredita que alguém é inteligente” está comprometida com um objeto da crença que é considerado inteligente, tal como “S acredita que Sócrates é inteligente”, em oposição à atribuição de crença de dicto de que “S acredita que há pessoas inteligentes”. As atribuições de crença de re dizem respeito a alguma coisa que se apresenta ao sujeito da crença, elas são feitas a partir da posição do sujeito da crença em relação a outros objetos; neste sentido ela é situada, ela requer que o sujeito da crença esteja em algum lugar – ela é feita no meio das coisas, in media res. Expressões de crenças que não requerem nenhum envolvimento de quem acredita com o objeto da crença são de dicto, como que expressas desde fora. Podemos contrapor o pensamento de dicto ao pensamento de re – isso fica claro se considerarmos, por exemplo, auto-atribuições de crenças. O pensamento de dicto é de alguma maneira um pensamento que não está situado em parte alguma, não está imerso em relações com as coisas. O pensamento de dicto de alguma maneira tem um conteúdo que está, por assim dizer, pairando no ar; ele está pensado a partir de parte alguma. Trata-se de um conteúdo de pensamento que não pressupõe um contato, uma relação com coisa alguma já que ele pode ser expresso independente de uma relação com um objeto presente.

Um elemento central no pensamento de re é a indexicalidade. No final do seu artigo de 1979 sobre indexicais essenciais, John Perry aventa a hipótese de que pensamentos de dicto se mostrarão “uma ilusão engendrada pela natureza implícita de muita indexicalidade”. Não apenas predicados como “é longe”, “é comida”, “é cedo”, “é sólido”, “é quente” ou “está cheio”, mas também “é liso”, “é reto”, “é um lugar em um espaço” são implícitamente dependentes de quem mede e, de uma maneira geral, de onde, em meio a que, os termos são aplicados. A medida, por exemplo, estabelece uma relação com coisas à nossa volta, uma relação que depende de um conjunto de circunstâncias concretas, de um ambiente em que estamos em uma posição no espaço e no tempo. A indexicalidade fornece ao conteúdo de um pensamento uma localização específica sem a qual o conteúdo desaparece. Assim, Perry argumenta que quando descubro que eu estou de deixando uma linha de açucar no chão do supermercado, eu é essencial e a descoberta não pode ser expressa de modo de dicto. Analogamente, por exemplo, pensar sobre o tempo em termos da série A de McTaggart – em termos de agora, de ontem, de amanhã, de ano passado – dificilmente pode ser equivalente a pensar em termos da série B – 10:00, 5 de fevereiro, 7 de fevereiro, 2017. A indexicalidade nos deixa no meio das coisas já que ela diz respeito ao que está de alguma maneira em contato deíctico conosco. Esse contato deíctico aparece precisamente nas expressões indexicais que fazem um acesso a objetos nos colocando em relação com eles – um acesso que não implica em si mesmo nenhuma dimensão cognitiva. Perry, ao salientar que há muita indexicalidade implícita, aponta na direção de uma imagem do pensamento em que ele não se dá desde fora, pairando no ar, mas em contato com o que está à sua volta.

A indexicalidade pode ser entendida a partir das posições no espaço e no tempo – e, assim, pode ser entendida a partir do que é concreto. Uma atribuição de crença que envolve expressões indexicais diz respeito a uma posição no espaço e no tempo – uma posição concreta que não depende daquilo que o sujeito da crença sabe ou acredita – ou capta através de seus sentidos – acerca do objeto da crença. Assim, S acredita que aquela estrela é a estrela da manhã diz respeito à estrela da manhã e à estrela da tarde, se este é o objeto apontado – e a crença é verdadeira. Dito de outra maneira, há um contato concreto de S com a estrela da tarde (e com a estrela da manhã), um contato que eu chamei de deíctico e que não implica um contato cognitivo. Há uma relação no concreto entre a estrela e o sujeito da crença – uma relação que possibilita um contato deíctico. Quando Russell tentou associar nomes próprios millianos – que denotam de modo independente das descrições definidas – com uma teoria do contato que prescindisse de descrições, fez uso da noção de acquaintance (conhecimento de trato, ou por familiaridade). Mesmo independente de qualquer contato cognitivo com um objeto – saber descrever a estrela como vênus, saber que Sócrates foi um filósofo ou que gatos são animais – um sujeito pode ter uma acquaintance com aquilo sobre o que pensa. A acquaintance seria ainda uma receptividade da mente daquilo que os sentidos oferencem, mas que não implica por si mesma nenhum conhecimento por descrição. Ela requer que se note um contato com alguma coisa – que o contato seja perceptível. Assim, há o contato cognitivo e o contato por acquaintance, que ainda requer sensibilidade – e não apenas operações que envolvem aquilo que é concreto – esteja em exercício. Este segundo contato, no entanto, requer que os sentidos nos apresentem um objeto sem nos informar nada acerca dele; é como se houvesse uma informação acerca de um objeto que pudesse ser captada apenas pelo contato com ele. Podemos desconfiar que ele está nas cercanias daquilo que Sellars chamou de mito do dado já que envolve um exercício de contato sensível desprovido de qualquer envolvimento com conceitos – como um conteúdo desarticulado de qualquer outro. Kripke, e os teóricos da referência direta, procuraram pensar nomes próprios dissociados de descrições definidas sem apelo a um contato sensorial não-cognitivo: aquele que pensa e fala coisas falsas de Sócrates ainda assim está se referindo a Sócrates através de elos externos que conectam o conectam com a pessoa denotada. Há um contato não-cognitivo que está inscrita na semântica de uma linguagem e que aponta para o modo como a referência dos nomes próprios é fixada e mantida. Há, segundo Howard Wettstein em seu esforço por encontrar um motto para a revolução trazida por esses teóricos da referência direta, um contato linguístico que prescinde de contato cognitivo. Analogamente, indexicais podem fazer um contato com o que eles denotam independentemente de qualquer descrição: é com 'aquela estrela' que o sujeito da crença atribuída de re que ocorre o contato. Não porque apontar para uma estrela com o dedo ou por meio de demonstrativos seja uma operação sensorial não-cognitiva, mas porque a denotação é fixada independentemente do sujeito – e a denotação ela mesma promove um contato, que não é um contato cognitivo.

3. A ideia de indexicalidade pensada deste modo pode ajudar a entender o sensível como sendo nada mais do que o concreto. A indexicalidade é um envolvimento do sujeito com sua vizinhança, uma vizinhança que é estendida por meio de contatos linguísticos. O giro externalista que os teóricos da referência direta promoveram poderia assim alcançar a noção mesma de conteúdo da experiência perceptual. O conteúdo seria dado não pelas descrições disponíveis ao sujeito da experiência – descrições que dizem respeito às capacidades perceptivas do sujeito, capacidades sensoriais e demais crenças entretidas em conexão com o objeto da experiência – mas pelos elementos em contato deíctico com o sujeito em sua experiência. A experiência estaria, de alguma forma, associada à proximidade concreta, àquilo no meio do qual está seu sujeito e não primordialmente ao modo como coisas concretas afetam uma sensibilia e suas capacidades de receptividade. Pensar a experiência a partir da indexicalidade e a partir do concreto e não do sensível é estendê-la para além dos órgãos sensoriais, para além de qualquer sensibilia em particular. A experiência passa a ser entendida em termos dos efeitos que um contato com o concreto provoca e esses efeitos não são limitados ao que os sentidos detectam. A experiência, pensada assim, pode se tornar bem mais ampla que a experiência sensorial já que pode abarcar não apenas qualquer sensibilia mas também qualquer item concreto – não importa mais a distinção entre o sentiente e o não-sentiente. Evidentemente, esta noção mais ampla e mais geral de experiência mostrará um ganho teórico se ela conseguir lidar bem com o caso especial que é a experiência sensorial – que também se dá no concreto e envolve aparatos de sensibilidade particulares. Talvez o primeiro passo para lidar com a experiência sensorial como sendo indexical seja o de procurar descrever também o conteúdo da experiência sensorial em termos indexicais. E, para tanto, é importante que se possa descrever o contato cognitivo associado às imagens de experiência sensorial – aquilo que os sentidos de alguma maneira tem acesso reflexivo, ou trazem à consciência – em termos de um contato deíctico. Ou seja, também a experiência sensorial deve poder ser entendida em mesmos termos indexicais, também ela ocorre no concreto e não em uma esfera especial (interna) da sensibilidade.

4. Entender o sensível em termos do que é concreto e o contato concreto como independente de qualquer contato cognitivo pode tomar a forma de uma substituição do sensorial pelo causal. Contato concreto que estabelece uma relação entre um objeto de crença e aquele a que se atribui uma crença – por exemplo na forma de um contato deíctico – parece ser nada mais do que alguma forma de interação causal. De fato, os teóricos da referência direta postularam que a relação entre, por exemplo, um nome próprio e sua referência não se dá através da mediação de uma descrição, mas é uma relação direta que algumas vezes foi tomada como uma relação causal. Ou seja, há uma relação causal entre um termo e sua denotação que não é um contato cognitivo. Por exemplo, a cadeia causal entre a nomeação de Sócrates e cada uso do nome próprio 'Sócrates' é o que baliza a referência do termo, independente de qualquer contato cognitivo. Ao lado de uma teoria causal da referência, podemos considerar também uma teoria causal do conhecimento e uma teoria causal da percepção. A teoria causal do conhecimento foi aventada por Alvin Goldman antes de endossar um confiabilismo acerca do conhecimento; trata-se de uma concepção externalista que tenta exorcizar a sorte epistêmica pela introdução de um requisito de conexão causal entre quem conhece e o objeto conhecido. A teoria causal da percepção, defendida, entre outros, por Paul Grice, argumenta que, pelo menos em certos casos de alucinação, a falta de um elo causal explica a falha perceptiva – e o mesmo se pode dizer em casos de sorte epistêmica em que, apesar de a reportagem produzida ser correta, não há uma genuína percepção. Em ambos os casos, a relação causal balizaria o contato cognitivo – como se o concreto, amalgamado por relações causais, fosse a base onde pode haver experiência sensorial e conhecimento empírico. Se entendemos o concreto como cimentado por relações causais, podemos nos sentir tentados a concluir que o contato perceptivo que não é um contato cognitivo – a experiência associada ao concreto e não a uma subclasse dele, o sensível – é um contato causal. Gostaria de resistir a essa tentação, ou pelo menos de adicionar a ela uma outra tese, a de que as relações causais se aproximam em todos os casos de relações perceptivas.

Alfred Whitehead se baseou no modelo de percepção indireto de Locke para entender diversas relações entre entidades no mundo e, em particular, para entender a estrutura mesma das relações causais. Ao invés de tomar a causalidade como base de tudo o que é concreto, Whitehead a entende em termos de sensível, em termos de relações perceptivas. Em certo sentido, ele é um precursor da ideia de entender a experiência como algo que diz respeito ao concreto em geral; e um defensor da ideia de que relações causais compõem um modo da percepção. Whitehead considera que o elo causal é parte do processo perceptivo e pode ser entendido em seus termos: um objeto com o qual fazemos contato perceptivo – aquilo que ele chama, com Locke, de res vera - uma maneira como este objeto produz efeitos sobre o sujeito da percepção, e não apenas em sua sensibilia – que ele chama de forma subjetiva – e as articulações desta forma com os demais exercícios perceptivos. A eficácia causal é o modo da percepção mais comum e está presente sempre. No mundo inorgânico, e em ocorrências menos complexas da experiência, é a causalidade que produz modificações – e o faz de maneira similar ao modo como atua a percepção no modelo de Locke. À eficácia causal ele contrapõe um outro modo de percepção, a imediação presentânea que é primariamente o escopo do que Locke pretendia abarcar com seu modelo de percepção. Graças à presença ubíqua, no concreto, da eficácia causal como modo da percepção, o conteúdo da experiência não se limita ao que é cognitivamente acessível ou de alguma maneira interno ao sujeito da experiência – não se limita, portanto, a qualquer representação implícita ou explícita que o sujeito faz do que experimenta. O percebido pode passar ao largo de qualquer estado interno que não é mais do que um reflexo do que está presente na experiência. O conteúdo da experiência não precisa ser distinguível pelo seu sujeito e é assim um contato perceptivo pode prescindir de um contato cognitivo. Ele rejeita veementemente a noção não-lockeana de que a percepção, enquanto tal, não envolve res verae e se limita a assimilar dados sensíveis puramente universais – o que chama de princípio da subjetividade.

A vantagem deste pan-perceptualismo de Whitehead sobre um pan-causalismo é que não há uma bifurcação entre aquilo que é causal e aquilo que é capaz de percepção – a experiência perceptual é pensada em termos análogos àqueles pelos quais são pensadas as relações causais. Como consequência, se dissolve também a bifurcação entre o concreto e o sensível; e com ela o vão entre aquilo que é capaz de experiência e aquilo que simplesmente tem um contato (causal) com outros itens concretos. Relações causais não aparecem mais como alienígenas ao contato perceptivo mas, ao contrário, relações perceptivas são entendidas como um caso geral que explica a eficácia causal – nos mesmos termos que explica como a imediação presentânea. A percepção humana é assim entendida desde o início como um caso de percepção em geral – se quisermos, do mesmo tipo de relação que ocorre nos casos de eficácia causal. A imediação presentânea apresenta uma forma subjetiva na forma de percepta e esses são precisamente postos em relação com os efeitos da eficácia causal sobre (todo o corpo) do sujeito da experiência. Com isso, Whitehead rejeita que a percepção consciente e recognoscível pelo sujeito possa ter uma prioridade apenas porque aparece mais claramente à consciência – clareza à consciência pode no máximo nos dar um bom ponto de partida para a investigação, porém não garante nada de metafísico. A prioridade do que nos aparece através do modo presentacional da percepção não é senão uma prioridade do que é claro para nós – e não do que é mais ancestral. Aquilo que é trazido à consciência pela percepção não é senão um fragmento do conteúdo perceptual. Não há um acesso mais direto ou mesmo mais distinto que caracteriza o modo da imediação presentânea. A eficácia causal é parte, por vezes, até da paisagem de percepções trazidas à consciência. Whitehead ilustra isso com um exemplo de uma luz que faz um homem piscar os olhos: a luz cria uma compulsão que é, de fato, sentida pelo homem, que diz: ‘Eu sei que foi a luz que me fez piscar, eu senti a compulsão’. E, no entanto, Hume explicaria que foi o hábito de piscar diante da luz que fez com que o homem piscasse. Mas como pode ser que um hábito, pergunta Whitehead, possa ser um sentimento? Hume teria confundido “o ‘hábito de sentir o pestanejar a seguir aos clarões’ com o ‘sentir do hábito de sentir pestanejar a seguir aos clarões’”.1 Whitehead pensa que isso se deu porque Hume não entendia a causalidade como um modo da percepção, já que limitava a experiência à consciência. No entanto, em Modes of Thought,2 Whitehead reconhece que Hume fez uma grande contribuição para a abordagem da experiência quando descobriu a experiência da expectativa – a experiência de adquirir e manter um hábito - uma descoberta em conflito com suas próprias doutrinas. Como poderia Hume analisar a expectativa (ou o hábito) em termos de dados sensoriais? Como um grande pensador, Whitehead escreve, Hume teve aqui uma inspiração avessa a seu próprio sistema.

A experiência da expectativa e do hábito são aquilo que Whitehead considera ininteligível à luz dos princípios da sensação e da subjetividade. Se percebemos só dados sensoriais que têm uma forma universal estabelecida e não fazemos mais do que recebê-los, nossa experiência é limitada a alguns lampejos da nossa relação com o mundo. O hábito, no entanto, molda nossa experiência de um modo que era inegável mesmo para Hume. E o faz porque contribui para destacar o que importa. A própria importância é uma categoria da experiência que é central para Whitehead. Ele argumenta que o sentido de importância está presente na experiência em geral. A importância dá o sentido de conexão entre os elementos isolados da experiência – sem essa conexão, a experiência é cega. Whitehead analisa essa cegueira em termos do que ele chama de ‘mito do isolamento’ – a ideia errônea de que um fato pode ser apenas ele mesmo, que ele tem impacto ou é inteligível por ele mesmo. Segue-se da rejeição do mito que, “em toda consideração de um fato isolado, há uma pressuposição suprimida da coordenação do ambiente que é um requisito para sua existência”.3 Ou seja, perceber é sempre um exercício de coordenação com o ambiente. Um fato isolado não é captado, não pode ser assimilado a nenhum nexo de experiências, porque não tem identidade; não é, nele mesmo, experiência alguma. Vale uma rápida comparação com o que move o princípio de caridade de Davidson.4 Ali, uma crença não pode ser reconhecida enquanto crença por um intérprete a não ser que essa crença possa ser interpretada, e posta em um contexto em que ela pressuponha crenças compartilhadas por um intérprete. Ou seja, uma crença que não está coordenada entre outras crenças aceitas não pode ser aceita por um intérprete. Não há mesmo crença alguma se ela está descoordenada de um sistema de crenças compartilhado. Para Whitehead, não há mesmo fato algum sem essa coordenação, que é o que aloca o fato em uma matriz de importâncias, a matriz que é o esqueleto da perspectiva que torna possível qualquer experiência.

Pode parecer que, considerando a amplitude da noção whiteheadiana de percepção e sua insistência em analisar a causa como um de seus modos, há um risco de que a percepção seja refém de um Dado – no sentido do mito tornado popular por Sellars. Como fez o próprio Sellars com seu mito de Jones, aqui se pode usar um mito contra outro – o mito do isolamento contra o mito do Dado.5 Este último mito, em um contexto que possa ser reconhecido por Whitehead, é aquele que considera que conteúdos perceptuais são passíveis de serem captados sem o auxílio de nada de adquirido (de nada que foi captado do ambiente); a intuição que capta os conteúdos atuaria em isolamento. Em termos mais próximos dos de Sellars (e de Kant), o mito estaria em supor que faculdades conceptuais não tenham nenhuma atuação na atividade da intuição sensível de formar juízos empíricos; estes não dependeriam, assim, de nenhuma capacidade adquirida. Seriam um produto de uma receptividade sem espontaneidade – sem, portanto, nenhuma sombra de agência. A recusa do mito do isolamento, contudo, afirma que não pode haver a captura de nenhum fato isolado. A recusa do mito do isolamento pode ser formulada assim: a intuição sensível sem matriz de importância é cega. Uma imaginada faculdade que capte elementos isolados do mundo sem o auxílio do senso de importância não seria capaz de revelar nada, uma vez que não há nada a ser revelado. Até mesmo a bola verde requer sua história corporal para poder receber o efeito do movimento da bola branca sobre ela – se ela tivesse sido achatada e se tornado suficientemente plana, o movimento da bola branca na região não teria nenhuma importância. A história corporal da bola verde é, bem-entendido, um elemento adquirido que lhe permite perceber o movimento da outra bola não como um Dado, mas como um fato coordenado. Essa coordenação é exemplificada pela intensificação e pela atenuação de certos efeitos percebidos em função de uma adequação a outros efeitos presentes – como quando o pequeno traço horizontal na borda da letra manuscrita é tida como sem importância se a palavra que está sendo lida requer ali a letra 'A' e de muita importância se a a palavra que está sendo lida requer ali a letra 'B'.

5. Se a confluência entre eficácia causal e percepção – e entre contato concreto e contato sensível – puder ser defendida, então temos elementos para uma concepção da experiência em termos de contato com o indexicalmente associado. O conteúdo da experiência perceptual pode ser pensado como sendo feito dos deícticos formados a partir da situação do sujeito da experiência. A experiência fica associada à proximidade: ao que está ao redor, ao que operações deícticas trazem ao contato. O contato perceptual básico é aquele que promove uma modificação. A experiência é uma modificação de si promovida por um outro experimentado – que Whitehead escolheu chamar de res vera – de um impacto sobre o corpo do sujeito que experimenta que é articulado com outras experiências já adquiridas. Para ter experiência basta estar no concreto, modificado no tempo por meio de outros co-existentes. A bola de bilhar esmagada em um cilindro de altura desprezível em comparação com a mesa e as demais bolas do jogo recorre em sua sequência de modificações ao seus estados anteriores. Esta relação com os estados anteriores é o que permite que possamos encontrar o sujeito da experiência antes e depois da percepção. Quando a percepção envolve reportagem – a produção de algo como um testemunho sobre a experiência ocorrida – a recorrência é mais clara: trata-se de uma viagem de volta do outro percebido para si. Uma bola verde de bilhar que tem sua posição modificada pelo impacto da bola branca não tem uma experiência reportada. A introdução da reportagem torna explícita a recorrência: é precisamente a reportagem que introduz elementos para uma narrativa de si na experiência.

Emmanuel Levinas estuda a experiência do sujeito em termos de uma recorrência. Ele associa a consciência do conteúdo da experiência à reportagem, ao retorno, ao sujeito que volta à si depois de experimentar uma modificação, uma alteração, depois de uma jornada pelo outro. Este elemento de volta à si é talvez a sensibilidade – a subclasse do concreto que garante que o sujeito da experiência recorre, que ele não apenas se modifica mas ele se modifica a partir de si e, assim, modifica a si mesmo. A sensibilidade talvez seja portanto o âmbito da reportagem (para si). E a reportagem (da alteração que é a experiência) não é senão o fator que inaugura um elemento interno da experiência, um elemento em que ela se torna acessível. A produção da reportagem é também ela mesma uma experiência, uma modificação proporcionada por uma res vera. E a reportagem traz a possibilidade da distingüibilidade do objeto da experiência, já que um relato do que foi experimentado requer uma determinação do objeto da experiência. Não basta que a percepção seja, de fato, confiável, é preciso que ela gera um relato que determine seu conteúdo. É certo que para muitos propósitos, a reportagem, e a recorrência, são relevantes para o uso que queremos da experiência; queremos que ela conclua, determine algo. Para isso fazemos uso da sensibilidade, como fazemos uso de medidores que detectam modificações. Os sentidos talvez não sejam então mais do que medidores – e podemos criar quantos medidores quanto precisarmos concluir com nossas experiências. A escolha de um conjunto de medidores, e das medidas, entretanto, não pode ser senão função de uma matriz de importâncias. Se for assim, o sensível não é mais do que um conjunto de operações concretas com vistas a produzir um tipo específico de efeito: a reportagem. Porém a reportagem tem lugar em meio a uma situação e há uma trama de si mesmo – de espontaneidade – e de outro – de receptividade – que subjaze seus resultados. Assim como há uma trama de experiência por trás da sensibilidade, e da medição. Há mais experiência do que sua medição – do que as marcas dos indicadores sensoriais. Whitehead vaticinou que buscar uma imagem da experiência apenas nas sensações equivale a procurar “elucidar a sociologia da civilização moderna como derivada inteiramente dos sinais de trânsito das ruas principais”.6 Pensar a sensibilidade como medida do concreto para uma reportagem é também entender a experiência como situada já que a medida depende de que o medidor é feito – como Wittgenstein observa nos Remarks on the Foundation of Mathematics, uma régua de aço e madeira e uma régua de borracha macia geram medições diferentes em alguns casos, e relações diferentes sempre com o objeto medido.7 A medida, como a sensibilidade, é indexical, e neste sentido, situada. E a experiência sensorial está sempre imiscuída no meio das coisas, em relação com o que há de concreto ao seu redor – e é assim seu conteúdo é de re.

Comments

Popular posts from this blog

Hunky, Gunky and Junky - all Funky Metaphysics

Been reading Bohn's recent papers on the possibility of junky worlds (and therefore of hunky worlds as hunky worlds are those that are gunky and junky - quite funky, as I said in the other post). He cites Whitehead (process philosophy tends to go hunky) but also Leibniz in his company - he wouldn't take up gunk as he believed in monads but would accept junky worlds (where everything that exists is a part of something). Bohn quotes Leibniz in On Nature Itself «For, although there are atoms of substance, namely monads, which lack parts, there are no atoms of bulk, that is, atoms of the least possible extension, nor are there any ultimate elements, since a continuum cannot be composed out of points. In just the same way, there is nothing greatest in bulk nor infinite in extension, even if there is always something bigger than anything else, though there is a being greatest in the intensity of its perfection, that is, a being infinite in power.» And New Essays: ... for there is nev...

Talk on ultrametaphysics

 This is the text of my seminar on ultrametaphysics on Friday here in Albuquerque. An attempt at a history of ultrametaphysics in five chapters Hilan Bensusan I begin with some of the words in the title. First, ‘ultrametaphysics’, then ‘history’ and ‘chapters’. ‘Ultrametaphysics’, which I discovered that in my mouth could sound like ‘ autre metaphysics’, intends to address what comes after metaphysics assuming that metaphysics is an endeavor – or an epoch, or a project, or an activity – that reaches an end, perhaps because it is consolidated, perhaps because it has reached its own limits, perhaps because it is accomplished, perhaps because it is misconceived. In this sense, other names could apply, first of all, ‘meta-metaphysics’ – that alludes to metaphysics coming after physics, the books of Aristotle that came after Physics , or the task that follows the attention to φύσις, or still what can be reached only if the nature of things is considered. ‘Me...

Memory assemblages

My talk here at Burque last winter I want to start by thanking you all and acknowledging the department of philosophy, the University of New Mexico and this land, as a visitor coming from the south of the border and from the land of many Macroje peoples who themselves live in a way that is constantly informed by memory, immortality and their ancestors, I strive to learn more about the Tiwas, the Sandia peoples and other indigenous communities of the area. I keep finding myself trying to find their marks around – and they seem quite well hidden. For reasons to do with this very talk, I welcome the gesture of directing our thoughts to the land where we are; both as an indication of our situated character and as an archive of the past which carries a proliferation of promises for the future. In this talk, I will try to elaborate and recommend the idea of memory assemblage, a central notion in my current project around specters and addition. I begin by saying that I ...