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The sacred family - proximity and desire

This is a text on desire and proximity (and trust) that I just wrote. It connects Levinas' anarchic character of proximity to Deleuze and Guattari's schizo approach on desires.

A Sagrada Família: a apropriação da confiança, do desejo e da proximidade
Hilan Bensusan

Sue Nhamandu, a pornoklasta, me encomenda um texto grelo duro. Meu grelo faz trancinha. Nem tenho anatomia, nem tenho destino. Eu seria desorganizada numa coleção de grelos em riste. Ou então eu seria aquela parte inorgânica, o sal fora da terra, o estanho ao pé do Cerro Rico. Sem órgãos. Uma mina de lata e de dildo ou de ferrolho, um grelo de aço. Leio uma entrevista de Maria Galindo com Pedro Lemebel. Ela quer falar sobre machos, varones y maricones e ele: ¡Yo no soy hombre niña! ¡Hasta quando! ¡He estado hasta ahí com eso…! Pedro desconversa Maria. Ela lhe interpela e ele pode virar a cara – ela lhe pede uma fala de um lugar, ele recusa o lugar e a fala. Ninguém é obrigado a ser fiel a sua anatomia; tudo, até o destino, pode ser presa de uma emboscada. A Galindo escreve que a bandeira do feminismo urgente é despatriarcar, as identidades são só pretextos de inteligibilidade. Tornar mais fácil que as autoridades constituídas entendam meu corpo; se é um corpo multiplicado em centenas, em milhares, ele ressoa. Mas quem sou eu para reportar meu corpo? Meu corpo é posto num batalhão inteligível: o das identidades. É uma sociedade de multiplicações, não é uma sociedade de multiplicidades. Aperto o grelo. E eu nem tenho as desculpas não-anatômicas de Lemebel: no soy tan raro, me cuesta la injusticia y sospecho desta cosa democrática… Ser pobre y maricón es peor que ser proletario. Não tenho sequer desculpa alguma, sou parva.

Olho em volta, não estou em uma sociedade de indivíduos.

As vezes não vejo quase indivíduo nenhum, vejo só ressalvas, pequenos desvios de um padrão bem sovado. O individualismo é metodológico, mas o método funciona sempre apenas para as mesmas coisas: vender bugigangas não se importando nem com o tamanho do lixão, nem com o destino do isopor, nem com o disfarce mal-feito do trabalho escravo, nem com a distribuição de inutilidade. Fora disso, o método não serve para muita coisa, nem é uma ferramenta; é como uma chave que só abre uma porta; enquanto a fechadura não enferrujar.

Ponho a mão no grelo. Dois dedos. Querido inorgânico grelo, estou em uma sociedade de famílias. Para isto servem os batalhões, para a hora da valsa em que os rapazes coletam as moças, para trazer a medalha de volta para casa. Fora da família, o mercado de indivíduos que saem em patrulha para regressar já que as forças são centrípetas, centrípetas. Indivíduos desgarrados, pensando apenas nos seus interesses são raros e rapidamente enjaulados. Aliás o projeto de uma sociedade com indivíduos que tem pele, e olhos, e ferormônios, e senso de proximidade me parece impossível – e desagradável. Guattari e Negri publicaram um libelo em favor do comunismo das personalidades únicas, Nouvelles espaces de liberté. Eles escrevem: o comunismo deve ser bem mais do que o compartilhamento das riquezas – quem quer esta merda? Os comunistas lutam pelas personalidades únicas, pelos estranhos, pelos extravagantes, pelo direito ao desajuste. Uma comunidade que não seja uma máquina de vida comum. Uma comunidade sempre em risco de desmantelar por excesso de arestas. O comunismo dos estranhos – a classe universal dos Lemebel – deve ser uma sociedade das esquizerdas, das tortinhas, das parresías; mas um emaranhado de bandos, de ajuntados, de amancebados, de gangues, de confrarias, de tribos. Mancomunistas.

Nada disso cheira à minha volta. Ao meu redor há um cenário de príncipes e rainhas e reis e princesas – não existe república micropolítica, menos ainda existe democracia sexual.

Em Mais Confiança? escrevi:

A desconfiança–– como o mercado predador do que uma vez foi gratuito ou a disputa que se constrói sobre níveis de cooperação––requer nichos de confiança. (O quebracabeça de nossa maneira de viver não fecha se todas as peças forem feitas de desconfianças.) A desconfiança germina algumas confianças; somos apresentados a algumas gavetas aonde devemos guardar nossa confiança: as gavetas são o repositório da confiança. São as gavetas-família, as gavetas-nação, as gavetas-comunidade-religiosa, as gavetas-partido-político, mas também as gavetas-classe, as gavetas-raça, as gavetas-identidade. Estas gavetas são os lócus compulsórios de confiança moldados por um conjunto de normas a que associamos nossa dignidade, nossa respeitabilidade e nossa confiabilidade. Estas confianças moldadas-em-pedra são apresentadas como confianças [...] Ainda que apresentadas como naturais, elas têm que ser instituídas e reforçadas por nossos esforços direcionados. Para implementar estas confianças, outras desconfianças são implementadas a sua volta. Nossas instituições emocionais se identificam dentro de um mapa de confianças e desconfianças: estamos dentro de países determinados por nossa confiança maior, em continentes desenhados por nossa confiança menor––a linha das divisas é o grau de nossa desconfiança. Desconfiança é desconfiança de alguma coisa: podemos sacudir a matriz das desconfianças. Sacudir a matriz; não confiar com imprudência.
O mapa dos poderes é também o mapa de quem confia e quem merece confiança.

A trama do texto era que a confiança desembestada chacoalharia as gavetas-identidade, as gavetas-família. A confiança inesperada, como um hóspede nem anunciado e nem inteligível; como um liberador que surge no horizonte da casa de Octave em Roberte ce soir, a segunda novela da trilogia de Klossowski As Leis da Hospitalidade: não importa de onde venhas, há um prato e uma cama para quem chega. Em Mais confiança? os lugares onde a confiança inesperada chega são os espaços que rompem com as políticas de identidade e com a monoamorosidade compulsória. Novos espaços de confiança surgem quando a política é transversal e posso mulher cis branca confiar nas mulheres trans negras, nos homens trans índios, nas anônimas. Novos espaços de confiança surgem quando a fidelidade protocolar e pré-estabelecida se dissolve e surgem outros pactos, outras matrizes de abundância que nem insinuam família, nem sequer preparam casamentos. Tecer a confiança é tratá-la com abundância, tratá-la como se ela fosse abundante. Amar com confiança, militar com confiança. Confiar em quem eu amo, confiar em quem milita pela mesma causa. Criar um ambiente de confiança agindo com confiança, e não com o contrário dela. Ao invés de justificar os meios com os fins, absorver nos meios os fins. Desembestar a confiança não significa exorcizar a suspeita, mas chacoalhar o mapa pré-estabelecido que traça as fronteiras do que merece confiança. A desconfiança é o avesso da abundância. (O amor é pouco, o cobertor é curto – não vai sobrar nada se o Ricardão estiver no armário. Meus companheiros são poucos, o cobertor é curto – não vou confiar em ninguém que não tenha o mesmo biotipo ou o mesmo sociotipo ou o mesmo etnotipo.) A desconfiança, junto com sua escudeira, a sua confiança seletiva, produz gargalos, escassez. Lewis Hyde em A dádiva: A imaginação e a vida erótica da propriedade diz que a satisfação não vem apenas de estarmos plenos, mas de estarmos plenos de uma corrente que não para. Ele pensa que a abundância produz abundância. A confiança inesperada tem este cheiro de fluxo de abundância – é o uso da confiança que assegura sua abundância.

Em uma sociedade de famílias, o mais saliente nicho de confiança seletiva é esse simulacro de vida palaciana. É somente os nichos que são ninhos de conexões familiares que prosperam. As nações se desacreditam, as etnias se dissolvem e as comunidades religiosas se propagam porém imperam mantidas e mantendo famílias. E as classes, cada vez mais marcadas, que, como as raças, são herança de família. (E os gêneros, estes são a matéria prima de que são feitas as famílias.)

Sobra a confiança seletiva delas. A operação Édipo que Deleuze e Guattari detectaram em Anti-Édipo é uma das garantias de que precisa o capital já que ele é centrípeto, ele precisa fazer sua odisseia e regressar; ele é cósmico mas tem endereço, ele vai para a sideral em uma jornada intrépida mas volta para constituir a herança dos filhos do investidor. É com sua família que gasta Elon Musk o que ganha com suas naves espaciais e carros elétricos. Há um centro já que o mercado é centrípeta. E Deleuze e Guattari apresentam o desejo como sendo decalcado de centrado pela operação Édipo: o desejo não é o viajante que sai de sua terra, é filho pródigo. Produzir desejo pródigo é o trabalho da operação Édipo. O operação que garante o curso de regresso do desejo – meus sonhos não são com Júpiter, mas com papai – é crucial para o familismo, que se vê como uma sociedade organizada em pequenas tramas palacianas. O desejo é alocado para a o acasalamento, para a herança, para o âmbito familiar ou para a clandestinidade secreta embrenhada de sentimentos de honra e fidelidade. Ele fica arrancado do escopo da aliança demoníaca – minha fissura pelo cipó, minha vontade de trilhos de trem, minha compulsão pela lichia viram todos genitais, humanos, soberanos. E lá no fundo da latrina do banheiro da clínica onde se implementa a operação Édipo, o desejo escapa. Deleuze e Guattari procuraram uma maneira de serem fiéis ao desejo que escapa, ao invés de serem fiéis ao centralismo familiar. Uma fidelidade que talvez já teve Marx pensando no sexo não-humano. Na sua Crítica à Filosofia do Estado de Hegel, ele descreve o sexo humano como sancionado, normatizado e endossado. Tratar de sexo não-humano não é apontar para o sexo dos porcos e seus longos orgasmos, nem para o sexo do pólen, idílico e produtivo, nem para o sexo dos anjos, tão intersexuais quando expõem suas pregas. Libélulas em bambus fazem. Centopéias sem tabus fazem. Os louva-deuses com fé fazem. Dizem que bichos de pé fazem. As taturanas também fazem com um ardor incomum. Grilos, meu bem, fazem. E sem grilo nenhum. Com seus ferrões, os zangões fazem. Pulgas em calcinhas e calções fazem. Tamanduás e tatus fazem. Corajosos cangurus fazem. O sexo não-humano de Marx é a tectônica subcutânea do sexo humano, seus ingredientes e, também, o que há em seus bastidores. Um subterrâneo esquizo, segundo Deleuze e Guattari. Soltar estes microdesejos dos grilhões do familismo é a tarefa de desfazer o Édipo.

Porém não é só de arregimentar desejo que vive o familismo. Ele também se apropria da proximidade. A proximidade é aquilo que constitui uma subjetividade individual – o entorno que move os planos, os desejos, as tormentas – e aquilo que a destitui – aquilo que coloca limites na espontaneidade e, mais que isso, aquilo que dirige as subjetividades individuais, que tomam o leme, que as substituem. Uma sociedade de indivíduos é uma sociedade sem proximidade – ela supõe um decalque de átomos isolados postos em parte alguma, pairando alheios a qualquer situação, a qualquer posição. Ela supõe indivíduos que decidem, planejam, se atormentam desde parte alguma. Já uma sociedade de famílias é uma sociedade de proximidade arregimentada em que já está pronto desde sempre a cada um o seu eixo de proximidades. Levinas em De outro modo que ser descreveu a proximidade como tendo uma vocação inexoravelmente an-árquica. É como o desejo descentrado. Ele entende a proximidade como sendo feita de substituições: meu próximo é aquele que está tanto ao meu lado em um espaço que pode me substituir. Quando um outro me substitui, não é porque eu sanciono esta tomada de leme e nem sequer porque há um governo central que dirige quem vai dirigir minha ação. Ao contrário, nada estabelece o que está próximo, nem as minhas forças e nem as forças das ordens sociais e existenciais da vida. A proximidade é ingovernável. Ela é, para Levinas, aquilo que está aberta em um contato com o outro – um contato que é um apelo, e um apelo que pode me levar para qualquer lado e para qualquer distância e em qualquer velocidade. O apelo – e a resposta ao apelo – é infinito. E esta é o anarquismo do contato. É como a sedução: ela pode vir de qualquer lado e vem com uma compulsão, é um arrastão, cria inevitabilidade. Há apelos por toda parte, e são eles que criam proximidade. Os apelos provocam uma dissolução dos archés porque eles criam alianças que remexem a prescrição. A proximidade não pode ser disciplinada, ela tem a natureza do descontrolado já que é feita de contato, de resposta, de composição. A proximidade é anárquica porque ela é como o contato pessoal, como a pessoalidade… como uma conversa, uma conversa que leva. Uma conversa que pode começar com qualquer uma, de qualquer parte – mas é muitas vezes bloqueadas pelos viéses de todo tipo que põe garras nas palavras. A pessoalidade que fica bloqueada pelas grandes narrativas que começam com quem eu sou e quem o outro que me interpela é; as narrativas que dão chão para a desconfiança e sua fiel escudeira a confiança seletiva. O apelo da proximidade nos arranca de nós para fora; a desconfiança, como uma âncora, finca nossos pés em terra firme.

A proximidade é construída por Levinas a partir da noção de substituição. A substituição é um movimento do outro para mim, não se trata de se por no lugar de um outro. Ao invés do exercício de me colocar na pele de outro, eu hospedo outro em minha pele; assim, é como se eu agisse por outro, como se meu limite como agente autônomo se dissipasse. É precisamente por causa da substituição – por causa da proximidade – que não pode haver uma sociedade de indivíduos: a metodologia do individualismo é incapaz de tatear a subjetividade quando ela é arremessada para fora, quando ela aparece atirada de uma hora a outra, das águas ao penhasco. Trata-se de uma metodologia solipsista tentando capturar sujeitos que não são causa sui, são cais. A proximidade produz uma espécie de Geworfenheit, porém não de uma auto-determinação no indeterminado – no Ungewisse de Hölderlin – mas de uma auto-determinação naquilo que determinam os outros. A proximidade é o estado ao léu, à mercê do que vem de fora – a proximidade é como estar refém. É anárquica – o caos do cais: daqui partimos, mas as viagens não começam com a passagem de volta na mão e nem sequer com o destino certo. Levinas entende a proximidade como uma abertura ao infinito; não pode haver nenhum limite à ela e portanto não há nada que esteja além do limite fazer pelos outros. A proximidade é uma dissolução de limites, é o ilimitado; é uma dissolução da autonomia. (Ainda que por vezes os barcos voltem ao cais.) A proximidade em estado bruto é como o desejo; centrífugo.

A sociedade de famílias que sustenta o caráter centrípeto do capitalismo arregimenta a proximidade em favor das famílias. As subjetividades, que estão imersas na proximidade, são instadas a serem substituídas apenas pelos grupos familiares – como o filho substitui o pai, na análise de Levinas, já que é pelo filho que o pai age. O familismo é como uma lista fixa de hóspedes para todo exercício de hospitalidade de que são feitas as subjetividades: dê seu dinheiro (ou a maior parte dele) para seus filhos e cônjuges, dedique seu tempo ao convívio familiar, compartilhe sua intimidade com quem tem laços de sangue (ou se sangue futuro). A proximidade não é feita de sangue, ela é formatada no sangue. A família é um marco normativo. Assim, aqueles que estão fora da forma cis-hetero compulsória são também capturados pela estrutura familiar – também eles são reconhecidos pela sociedade a partir de sua inscrição em unidades familiares. Por isso o casamento gay, a adoção homossexual, e também as famílias poliamóricas. Ser reconhecido por uma sociedade de famílias é se apresentar como gentil às famílias – e muitas vezes como uma família, ainda que diferente das demais. A proximidade em seu caráter diabólico – o διάβολος que separa o sujeito de si, que é possessão, que é subversão da ordem que eu mesmo me dei para mim já que é rejeição das normas, aquelas que nos identificam à nós mesmas – precisa ser exorcizado pela sociedade de famílias cotidianamente, em uma operação paralela àquela do Édipo. O avesso do diabólico é o que ajunta, o que reúne, o que congrega – o σύμβολον que inaugura os agenciamentos do simbólico, das representações das famílias em toda parte, desde a arca de Noé, o símbolo da sobrevivência, aos pais fundadores das nações que simbolizam um comando de fidelidade. As famílias manejam a proximidade pela operação simbólica que tem que ser repetida todos os dias, uma operação que quero chamar de operação cultura, este fascismo de famílias que toca nos sinos das telenovelas, dos noticiários, das políticas públicas, da arquitetura do cotidiano, dos mantras recauchutados dos rádios. O exorcismo do diabólico é uma atividade diária; domesticar a proximidade – como se domestica a faísca sexual em casamentos, sexualidades, cisnomatividades, heteronormatividades, reprodução humana – requer constante vigilância.

A sociedade das famílias tem uma mnemotécnica da confiança que se aplica ao desejo e à proximidade. É preciso desconfiar do desejo que não é sancionado – desviado, perverso, degenerado, desvairado, excessivo, desmesurado, viado, veleiro colado, assexuado – e da proximidade que não é família unida – é transversal, clandestina, imprevista, excessiva, desmesurada, traidora, sub-reptícia, mancomunista. Lembre-se de quem você pode confiar e não confie ao léu. A família é sancionada a cada dia como núcleo da confiança, do desejo e da proximidade; ainda que ela te encha de suspeita, não seja o que você quer, não desperte intimidade. O desejo e a proximidade são anárquicos. Já o capital, com os olhos na multiplicação de bolsos, faz valer uma abolição gradual da proximidade. As famílias são nucleadas, palacianas e nelas se distribui da forma prevista o trabalho emocional e existencial. Talvez famílias sejam unidades em miniatura para enjaular a proximidade e o desejo – parte de uma marcha em direção a indivíduos auto-focados. Precisamente porque é impossível a an-arché entre indivíduos voltados para si; a proximidade e o desejo arrancam os sujeitos de seu âmago, extraem seus ímpetos dos foros íntimos. Porém a família é um adestramento seguro: fecha o circuito, armazena proximidade e desejo em um ambiente doméstico; toda a intensidade dos desejos, toda a força anárquica da proximidade trancafiados no castelinho em torno de papai-mamãe. E pronto, já não fazem os desejos cosmogonias, já não faz a proximidade etnogenias – nenhuma outra configuração aparece, apenas as famílias com seus bolsos e o capital sem cheiro nem beira que é um enorme artefato que emperra a novidade: um aparato feito da preocupação com o leite das crianças, das decisões apropriadas para o consumo das famílias, da suspeita com respeito ao que não é familiar, da domesticação da intimidade.

Olho para as famílias disfarçadas de indivíduos, que acreditam na autonomia deles próprios: como criar para mim corpos com outros órgãos. Ou um grelo sem órgãos. Sem a ordem que coloca os corpos na parada militar do familismo; com uniformes hetero, com metralhadoras patriarcais, com distintivos cis. Os indivíduos são o esconderijo improvável e certeiro do poder arrebatador das famílias. Meu grelo atômico, meu destino anatômico. Ele tão pouco próximo da ponta dos meus dedos que dedilham minhas genitálias… genitálias que são incontroláveis por uma maldição do Éden segundo Santo Agostinho: não serão mais controláveis, estarão à mercê das maresias (anárquicas) da proximidade e do desejo. Heidegger em suas conferências de Bremen – Einblick in das was ist – contrapõe a Nähe, a proximidade que é avessa a ter uma posição em um espaço cartografado, ao que chama de Ge-Stell que é a posicionalidade, o dispositivo, o por-em-disponibilidade-como-um-recurso que é a essência da técnica. Ele relata a trama de uma gradativa substituição do mundo das coisas que aparecem e se escondem por seu próprio acordo por Ge-Stell, um aparato onde tudo é recurso à disposição. Das Ge-Stell bestellt den Bestand. Vivemos em uma época em que aquilo que existe está em perigo já que está sendo perseguido para se tornar um recurso à disposição e não mais algo que, sob o signo da proximidade, pode ser aproximar ou se afastar. Ge-Stell doma Nähe: assim com as redes sociais domando as conversas, assim com os perfumes domando os cheiros, assim com os remédios para dormir domando Morfeu, os remédios para excitar regendo à distância as genitálias. Eis a trama: capturar o ser, retirá-lo da proximidade. Eis o drama: é possível interromper o processo, e se não é possível interrompê-lo, como será quando ele for levado à cabo? Genitálias controladas por controle remoto, intimidades programadas no painel de opções ou no algoritmo subjacente das redes sociais. A demora na confiança, no desejo e na proximidade apontam para a pergunta de se é possível aboli-las. Se é possível levar a cabo a retirada do mundo das coisas em função do avanço de Ge-Stell.

Eis aqui um ângulo em que se vê também a disputa de muitas caras e bocas e garras e unhas acerca do aceleracionismo. Ultrapassar o capitalismo – ou simplesmente desmontá-lo já que as palavras são elas mesmas comprometidas com algum lado da disputa – requer que passemos por ele, que aprendamos com ele, que não tentemos dar um passo atrás? O capital preda a proximidade (assim como infecta os desejos). Uma parte de seus dispositivos procura tornar cartografado o que é próximo. Acelerar o capital implicaria então procurar dissolver também a família e rumar para uma sociedade agora sim de indivíduos sem a anarquia da proximidade (e nem a desordem dos desejos)? Talvez uma sociedade de indivíduos seja afinal anátema do capitalismo, como parecem insinuar Guattari e Negri. De um ponto de vista ainda aceleracionista, a alternativa à aceleração é o freio, o retrocesso à proximidade – assegurar a qualquer custo que a proximidade não será abolida mas expandida e seu escopo será recuperado do domínio de Ge-Stell. É preciso que se controle menos, que se deixe outra vez as coisas se aproximarem por conta própria – é essa a virada que Heidegger propõe. Ele sugere que cultivemos o esquecimento e assim estejamos mais próximos da physis que ama esconder-se do que de thesis que expõe o que há como em um armazém, como em um catálogo. Assim faríamos a virada, ele sugere. Resistir ao controle da proximidade pondo insistindo nela, insistindo em fazer valer seus mecanismos de aproximação e distanciamento, de apresentação e esquecimento, de florescimento e retirada.

Mas não me parece que é essa virada que sugere a anarquia da proximidade como eu a entendo e nem sequer a atenção esquizo à produção e ao desejo – acho que tanto Levinas em De outro modo que ser quanto Deleuze e Guattari no Anti-Édipo não endossam mas rejeitam à virada de Heidegger. Não se trata de diagnosticar apenas o combate entre proximidade e capital, mas de entender que há uma arregimentação da proximidade (e dos desejos) na forma de familismo. Ou seja, esse combate não é o único cenário da conflagração. Silvia Federici, em Calibã e a bruxa, argumenta que o capitalismo foi um gesto reacionário em relação aos embates que os camponeses travavam no tempo que chamamos de fim do feudalismo. O capitalismo foi uma maneira de manter privilégios expropriando aqueles que se conectavam com a terra, expropriação na forma de cercamento das terras comuns, de queimas de bruxas, de genocídio de nativos – o capitalismo é o produto de muitos esforços explícitos em conter a força crescente dos servos no regime feudal. Se pensamos no familismo, o capitalismo criou a família nuclear, a divisão sexual do trabalho como a conhecemos, o ambiente doméstico fechado como um castelo rodeado de crocodilos. O capitalismo não é parte de uma trama para exorcizar a proximidade, mas é antes um regime de proximidade – assim como é um regime de desejo. E o familismo é seu braço político: concentrem suas proximidades no seio doméstico, concentrem seus desejos em tramas palacianas. Não se trata de uma virada por mais proximidade, se trata de sacudir a ordem em que ela foi colocada. E Federici nos permite pensar que ela foi colocada nesta ordem como quem coloca uma ameaça em uma jaula – para que não fique solta a força que perturba.

A proximidade afeta. A maldição da genitália é que ela é um órgão de detecção de proximidade. É um dos meios, com o rosto e com a pele, pelos quais é o que está próximo apela. A proximidade então aparece como um avesso do controle: an-árquica. Ela é da ordem do contato, do contágio, da fricção, do encontro. Há o ímpeto do capital em enjaular a proximidade, ela subverte – é mesmo a força de qualquer subversão. Mas ela também é a força que torna possível a geometria concêntrica de que precisa o capital – é a família que impele, como o clã que motiva. A rejeição à virada de Heidegger é a seguinte: não se trata nem de exorcizar e nem de preservar a proximidade, se trata de torná-la solta. A análise de Levinas da subjetividade como recorrência, como termo da substituição e não da identidade, assevera que a proximidade não pode ser varrida do mapa enquanto houverem subjetividades. E talvez haja subjetividades enquanto houverem corpos. E enquanto houverem posições ocupadas não em um mapa que pode ser visto de fora, mas em uma paisagem é sentida desde dentro. A luta não é pela proximidade, é através da proximidade. E, no entanto, a sombra de Heidegger não desaparece completamente: e se a proximidade estiver na linha de fogo em uma deflagração de avatares? Desatar a subjetividade é uma força sem telos, um redemoinho aceleracionista em que o capital se destitui, se engole a si mesmo, implode – vocês não viram nada ainda.

Não esfrego o grelo. A força da proximidade fica evidente.

O Comitê Invisível diagnostica: há todas as razões para fazer uma revolução; não falta nenhuma e nem sequer deixamos de saber delas – mas não são as razões que fazem as revoluções, são os corpos e os corpos estão diante da tela. Os corpos diante das telas são os corpos que contemplam desde parte alguma; tudo de parte alguma. Uma revolução se faz com proximidade, com ruas, com companheiros – e não com causas universais. O único modo de agir globalmente é pensar localmente. Mas o local está trancafiado no palácio; apenas interrompe quem está dentro de casa – e se se aproximar da forma certa. Era preciso mudar a face das proximidades no mundo, nenhuma outra transformação é revolução. Nenhuma grande causa, nenhuma boa razão, nenhum projeto para tudo. A revolução é feita do que é feito o contato do grelo com o dedo, deste contato mesmo que faz o dedo se esquivar.

E o grelo duro. Ele é afeto, proximidade. Age na vizinhança; mesmo que esta vizinhança seja do outro lado do barranco. Não fica duro por todas as boas razões, fica duro pelas razões próximas. Ele é situado.

Nem sei nada disso. Penso nos pandas de zoológicos que, enjaulados, tem que ser instados a se excitarem para poderem cruzar e se reproduzir. Não é que terminaremos tendo que ser instados a sermos afetados. É que o tiro sai pela culatra já que a força que dispara é errática: a confiança, como a proximidade e o desejo, pode fazer um laço em qualquer parte e, como uma baqueta diabólica, separa qualquer plano de vida do seu quinhão de pó. (Todo pó, do grelo, da faca, da casa ou do príncipe, tem uma vizinhança por perto.)


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