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My new reading of Neopyrronism

Today I presented this paper in honor to professor Oswaldo Porchat, in an event in São Paulo celebrating his 80th birthday. The paper was given in Portuguese. In the next post I kind of summarize the argument in English.


O lugar da atitude neopirrônica



Dúvida, determinação e ontologia
Um dos procedimentos mais comuns para exorcizar a dúvida generalizada é a de insistir que toda dúvida tem pressupostos. A insistência é de que qualquer suspenção de juízo requereria que se assumisse algum ônus de prova. A dúvida, essa seria a ideia, tem também que pagar o custo do transporte – e o pagamento é feito em convicções. Este procedimento aparece de diferentes formas – na forma de indicações das condições de possibilidade do pensamento empírico, na forma de análise dos procedimentos subjacentes à atividade de duvidar, na forma de considerações acerca da presunção de verdade de uma parte considerável de uma massa crítica de crenças inteligíveis. Em todos os casos, o procedimento tenta imputar a quem sustenta uma dúvida generalizada um conjunto de convicções subjacentes. A dúvida tem custos: não é possível permanecer na atitude de dúvida sem que haja algum pilar que segure o juízo suspenso. Sem nenhum pilar, o juízo se espatifa no chão.

Uma atitude sem sustentação ou não tem credenciais epistêmcias – como ensinam os ataques céticos à atitude de convicção – e, portanto, estaria vulnerável a ser considerada ilegítima ou se sustenta a si mesma. Há de fato um outro procedimento também comum para exorcizar a dúvida generalizada que é o de encontrar auto-evidências: encontrar convicções que se auto-sustentem. Este é um procedimento que se dirige sobretudo a dúvida generalizada que se instaura a partir do que por vezes se chama de argumento da ilusão: a inferência que vai da premissa de que cada conteúdo de convicção pode ser objeto de dúvida para a conclusão de que todos os conteúdos de convicção podem ser objeto de dúvida. O procedimento tenta mostrar que há pelo menos um conteúdo de convicção que não pode ser duvidado. A auto-evidência é uma convicção que, de alguma forma, se desprende do conteúdo ele mesmo. Quanto a tal conteúdo, não há atitude legítima senão a da convicção. Este procedimento também aparece de diferentes formas – a forma do conteúdo que de alguma forma se impõe por si mesmo, a forma de uma análise da convicção que torna ela mesma refém de algum conteúdo, a forma do apelo a alguma forma de intersubjetividade relevante. Em todos os casos, a estratégia é a de mostrar que há alguma coisa que se sustenta sem sustentação – no caso, alguma convicção que se sustenta sem convicções (ou qualquer outra coisa) que a sustentem. Há um auto-sustentável. Ora, eis aqui um caminho aberto ao cético: usar uma variante do segundo procedimento para neutralizar o primeiro. Se há algum auto-sustentável, alguma atitude que não dependa de sustentação, esta atitude pode ser a de dúvida. Ou seja, o primeiro procedimento insiste que a dúvida depende da convicção para se sustentar (o argumento da ilusão seria portanto uma inferência inválida já que a conclusão – de que o tudo pode ser objeto de dúvida – não poderia ter credenciais já que dúvida depende de convicções) e o segundo procura apresentar convicções auto-sustentáveis. O cético pode tentar então apresentar dúvidas que sejam auto-sustentáveis, que se desprendam diretamente de seus conteúdos. Isto equivaleria a dizer não apenas que a dúvida é a atitude em algum sentido natural a ser tomada com respeito a alguns conteúdos (ou a todos), mas também que ela não precisa se sustentar em coisa alguma.

Um tal caminho parece um tanto impopular nos tempos atuais de ressurgimento da metafísica. Uma das ideias motrizes que embalam este ressurgimento é a de que suposições acerca de como são as coisas são inescapáveis. Esta ideia motriz, claramente, é uma das formas (metafísicas) do primeiro procedimento: insistir que sempre há que haver convicções subjacentes. Heil & Martin (1999), no texto que deu nome à virada ontológica, argumentam que pressupostos ontológicos estão sempre presentes, mesmo nas mais extremas formas de antirrealismo. Ou seja, sempre há adesão a alguma convicção com respeito a como são as coisas. A insinuação é a de que a metafísica – enquanto conjunto de suposições acerca de como são as coisas – é inevitável. Alguma convicção metafísica, ainda que ilegítima do ponto de vista epistêmico, é inescapável. Há que haver alguma convicção sobre as coisas elas mesmas – ainda que seja sobre a substância pensante, sobre os ingredientes da linguagem ou sobre a comunicação humana. A afirmação mesma de uma impossibilidade se assenta sobre algum absoluto. Sobre alguma coisa, a virada ontológica reafirma, deve haver convicção (ainda que ilegítima).

Também a virada especulativa – outro elemento do ressurgimento da metafísica – conclama a filosofia a se engajar em voos para além daquilo que a prudência epistêmica, pelo menos se tomada em sua forma mais simples, recomendaria. É que só a especulação expande horizontes para colocar o pensamento em outras paragens, já que ele está sempre localizado. A especulação permite que aquilo que tenha parecido uma dimensão particular de nós mesmos seja considerada como uma dimensão do mundo mesmo. O mundo não é diferente da res cogitans, diria Whitehead, nem diferente das gambiarras que precisamos fazer para traduzir, diz Latour e nem diferente da facticidade da correlação entre nós e o mundo, diz Meillassoux. A especulação pede que abandonemos os nichos que são sui generis em favor de generalidades mais amplas. Aqui também a metafísica é inevitável e a diferença é entre uma metafísica mínima ou modesta e uma metafísica que resulte do esforço especulativo. Enquanto o esforço cético é muitas vezes o de minimizar compromissos – se precisamos nos comprometer com alguma coisa, tentemos nos comprometer com nada –, o esforço especulativo é o esforço oposto. Já que a metafísica é inevitável, façamo-na com ousadia sem atinar para as demandas da parcimônia a não ser quando ela conduz os conteúdos de nossos trajetos especulativos.

Ontologia da dúvida
Recentemente, no encontro do GT Ceticismo na ANPOF, apresentei uma leitura perversa, realista, especulativa e metafísica de alguns argumentos céticos tradicionais. Tratava-se de formular uma ontologia da dúvida. A ideia inicial era defender que o mundo ele mesmo continha uma diaphonia, uma polêmica, uma ausência de determinação. Na sua primeira formulação, a ontologia da dúvida substitui fatos determinados por dúvidas proliferadas: o mundo ele mesmo contém estados de dúvida. Trata-se de uma resposta negativa à segunda pergunta que Wittgenstein faz no trecho da seção 352 das Investigações , após considerar o tema de se 7777 aparece na expansão de π:
“Deus vê – mas nós não sabemos”. Mas o que isso quer dizer? Nós usamos uma imagem: a imagem de uma série visível em que uma pessoa vê o todo e a outra não. A lei do terceiro excluído diz aqui: deve ser deste jeito ou daquele. Então ela realmente não diz nada […] mas nos dá uma imagem. E o problema deve ser agora: a realidade está de acordo com esta imagem ou não?
A resposta negativa aponta para uma realidade em que não há determinações. Ou seja, não há fatos que sustentem com conteúdos a atitude de asseverá-los (de afirma-los, de suportá-los etc.), mas antes a relação do mundo com os conteúdos é de hesitação, de dúvida, de polêmica. Não há determinação factual no mundo, o mundo é ele mesmo composto de dúvidas. Não há fazedores de verdade para asseverações, mas apenas fazedores de verdade para expressões de dúvida. A manobra é a de realocar os argumentos céticos na ontologia: ao invés de argumentos sobre o nosso acesso ao mundo, apresenta-los como argumentos sobre as determinações no mundo. Ao invés de fatos que servem de tribunal para nossas hesitações, dúvidas que podem torná-las verdadeiras. A ontologia da dúvida apresenta uma imagem do mundo que inclui as aparências enganosas das coisas, a indeterminação (ou plasticidade) dos constituintes do mundo, a polifonia dos relatos, a incerteza acerca de qualquer medida e outros ingredientes que os céticos alojaram nas nossas tentativas de ter acesso ao mundo. A imagem que aparece é a de um mundo que abriga a hesitação, a pluralidade, o dissenso já que faz a verdade de dúvidas e não de afirmações. Nossas dúvidas revelam algo sobre o mundo, mais do que nossas certezas e o ceticismo se torna uma variante de uma realismo: o realismo sobre a articulação das dúvidas.

O primeiro procedimento – aquele de insistir que as dúvidas não se sustentam sozinhas – aparece também como uma crítica a esta primeira formulação da ontologia da dúvida. O mundo não pode ser composto apenas por dúvidas porque as dúvidas precisam de convicções que as sustentem – no mundo também atitudes de dúvida só seriam compatíveis com alguma determinação. Uma segunda formulação da ontologia da dúvida portanto deixaria espaço, no mundo, tanto para dúvidas quanto para determinações. A dinâmica das dúvidas, transformada em ontologia, requereria um conjunto de proposições-dobradiças (hinge propositions); ou, talvez melhor dizendo, estados-de-coisa-dobradiças. Para usar a terminologia do Da Certeza, as dobradiças permitem que o movimento da dúvida tenha lugar. Estas dobradiças não precisariam ser elas mesmas fixas ou determinadas, elas poderiam ser mutáveis servindo apenas de ponto de apoio para o movimento da hesitação. Similarmente, para que uma convicção seja mantida (held fast), algum outro conteúdo deve ser alvo de dúvida – para que um fato seja preservado, alguma indeterminação deve ter lugar. Para que “o mar é salgado” seja mantida como determinação, o sabor de cada um de seus componentes não pode ser determinado. Determinações dependem de anomalias. Em suma, de acordo com esta segunda formulação, o tabuleiro de dúvidas e convicções da parte de nossas atitudes reflete um tabuleiro de indeterminações e dobradiças da parte do mundo. O tabuleiro está no mundo: não é nem que dúvidas e convicções estejam em nossas cabeças nem que fatos estejam no mundo e dúvidas em nosso limitado acesso a eles. O mundo ele mesmo é composto por fazedores de verdade de nossas asseverações e de nossas hesitações. Não é preciso que algo tenha a forma de uma determinação para ter a chancela da realidade.

Uma ontologia da dúvida traz a tona um conjunto de questões sobre a natureza e a epistemologia da atitude de duvidar. É possível duvidar de uma ontologia da dúvida. Trata-se, claro, de um tipo de dogmatismo: as coisas são de tal maneira que há dúvida no mundo – indeterminações e não fatos. A réplica metafísica é a de que a ontologia da dúvida ocupa o mesmo espaço lógico da ontologia do fato – ou das determinações – e, por alguma razão associada à inevitabilidade da metafísica, este espaço tem que estar ocupado. Ou seja, pode-se tentar forçar o cético com respeito a uma ontologia da dúvida a endossar uma ontologia do fato já que trata-se, também aqui, de um tertium non datur. E o cético pode resistir. Pode dizer que não precisa assumir ontologia alguma e que o primeiro procedimento, que forçou o ontólogo da dúvida a admitir determinações em sua ontologia, não o forçaria a nada mais que assumir alguma determinação. O cético então oferece um embate em campo aberto ao ontólogo da dúvida. Nenhum apelo a determinações – inclusive a determinações com respeito à existência de fatos ou de dúvidas (de determinações ou de indeterminações) no mundo – está resguardado do debate (e do combate). E, em campo aberto, nada protege o ontólogo da dúvida em sua suposição de que alguma metafísica tem que ser assumida de uma vez por todas. O cético simplesmente insiste que aceita determinações sempre en passant, sempre de forma transitória – como se apenas procurasse um terreno para pousar seu equipamento de dúvida, suas dobradiças são sempre provisórias. Se o ontólogo da dúvida apresenta o tabuleiro – com dúvidas e dobradiças móveis – e afirma que o tabuleiro está no mundo, o cético apenas atua neste tabuleiro insistindo que é nele que se decide se o tabuleiro está no mundo ou alhures. O cético se recusa a morder a bala da exigência de alguma metafísica e, assim, se move por todos os lados entre dúvidas e determinações – se aceita que dúvidas requerem determinações.

Apesar da possível fragilidade da ontologia da dúvida diante do cético em campo aberto, penso que ela ensina algumas coisas sobre como a atitude cética pode encontrar sua forma mais robusta e, em particular, sobre como entender o lugar da atitude cética em suas variedades. Um elemento interessante introduzido pela ontologia da dúvida é que a dúvida, como elemento do mundo, precisa ser descoberta. Ou seja, ainda que há casos em que a hesitação nos aparece como uma impressão incontornável, a ontologia da dúvida (em ambas as formulações) entende que conhecer o mundo é descobrir suas dúvidas. E assim coincide com uma das obrigações céticas – se para o cético, digamos, os modos de Enesidemo e de Agripa são práticas em direção à recomendável suspensão do juízo (e caminhos para a ataraxia), para o ontólogo da dúvida tais modos são métodos de descoberta. A dúvida precisa ser descoberta. Um ceticismo informado pela ontologia da dúvida pode evitar a postulação de uma determinação acerca de que o mundo é feito de dúvidas e, ao mesmo tempo, endossar a desiderato da descoberta da dúvida. Esta descoberta requer uma atuação no tabuleiro das dúvidas e das dobradiças. Se houver alguma dúvida auto-sustentável, é possível acessá-la sem apelo a determinações, mas se a dúvida precisa de determinações para se sustentar, talvez ela precise, para ser descoberta, de ser vista desde alguma determinação. No tabuleiro, a determinação pode ser uma isca para capturar uma dúvida – é apenas assumindo certos conteúdos como se foram fatos que certas dúvidas se descortinam.

Podemos contemplar um ceticismo informado pela ontologia da dúvida considerando as quatro possibilidades abertas pela proposta de uma tal ontologia:
1. Antirealismo quanto a dúvidas e antirrealismo quanto a fatos (dúvidas e determinações na cabeça): antirrealismo (clássico).
2. Realismo quanto a fatos (determinação no mundo, dúvida na cabeça).
3. Realismo quanto a dúvidas (dúvidas no mundo, determinação na cabeça): ontologia da dúvida da primeira formulação.
4. Realismo quanto a dúvidas e realismo quanto a fatos (dúvidas e determinações no mundo): ontologia da dúvida da segunda formulação.
A atitude cética não pode endossar nenhuma das quatro possibilidades. Em particular, ainda que endosse a ideia de que dúvidas são descobertas, ela não endossa a determinação que envolve realismo ou antirrealismo quanto a dúvidas. A atitude cética suspende o juízo sobre o estatuto ontológico da dúvida – como faz com o estatuto ontológico dos fatos. Nem está fora de discussão (e do escopo da dúvida) que a dúvida está no mundo nem que não está. A atitude cética transborda para o debate entre as quatro posições acima e se estende para a natureza mesma do tabuleiro que agrega determinações e dúvidas. O ceticismo não é nem antirrealismo quanto a fatos e nem realismo quanto a dúvidas – ele é disputa em campo aberto.

Neopirronismo revisitado e a proliferação das dúvidas
Estas observações levam a uma certa maneira de entender a atitude pirrônica e, em particular, da atitude recomendada por Porchat em seu neopirronismo. A atitude neopirrônica é uma atitude de rejeição das convicções – e, portanto, das determinações inclusive daquelas que dizem respeito a existência de dúvidas no mundo. Trata-se de exorcizar convicções de maneira sistemática e deixar com que dúvidas se proliferem. Não há a busca da convicção, a busca pela crença fixa, nem sequer de que as coisas sejam tais que tudo é feito de dúvida. A atitude neopirrônica é crucialmente distinta da atitude de quem procura maximizar convicções – é uma atitude de maximizar dúvidas. Nisso ela coincide com a sanha de conhecimento no cenário de uma ontologia da dúvida: ter acesso ao mundo é ter acesso às suas dúvidas. O neopirrônico toma a dúvida não como ingrediente do mundo, mas tem a mesma atitude – busca a dúvida, tenta encontrá-la por toda parte e não mede esforços para suspender o juízo acerca de qualquer conteúdo de convicção. A atitude neopirrônica não é aquela de quem se conforma em não saber, mas aquela de quem busca a tranquilidade na inquietude das convicções. O não-saber neopirrônico não é um não saber determinado, mas antes é aquele que se arrisca por meio das convicções para descobrir mais dúvidas. É neste sentido que ele se apresenta ao combate em campo aberto: dúvidas podem ser dirimidas a qualquer momento, mas ele atua esperando que elas se propaguem indefinidamente. O neopirrônico não é indiferente a convicções e dúvidas, ele prefere as últimas e combate para prolifera-las.

Eis aqui como o neopirrônico pode justificar uma posição urbana – na tipologia de Michael Frede. Trata-se de exorcizar convicções. Para isso, é preciso eventualmente pousar em determinações se dúvidas requerem dobradiças. Ou seja, se é preciso se apoiar em determinações para o exercício da dúvida, algumas convicções devem ser provisoriamente adotadas. Trata-se, aqui, de convicções transitórias – ou, antes, de conteúdos meramente aceitos ou tomados como fenômenos, como aquilo que aparece naquele momento. Tais conteúdos, objetos de aceitação, estão a serviço da descoberta de dúvidas. Os fenômenos não são aceitos por razões associadas (apenas) a circunstância do neopirrônico – seu ambiente, sua corporeidade etc –, mas são aceitos porque eles propiciam incursões de dúvida. Eles propiciam um espaço de determinação onde pousar a metralhadora giratória da dúvida cética. Não é que ela defende nada, mas a cada momento ela protege uma parte para poder mirar em outra. Aceitar alguns conteúdos é como usar uma escada provisória para atingir alguma altura – depois da altura atingida (das dúvidas descobertas), a escada pode ser deixada de lado ainda que outras escadas sejam necessárias para continuar o percurso. O fenômeno talvez seja nada mais do que aquilo que se necessita para fazer mover a dinâmica da dúvida – nada mais do que uma dobradiça contextual e transitória. Assim, a aceitação neopirrônica da visão comum – e ainda mais de partes da ciência e da filosofia – não é mais do que a aceitação de uma mola propulsora para galgar mais dúvidas. O neopirrônico encontra subsídios nas convicções dos outros para proliferar mais dúvidas – não é que ele precise da visão comum para alguma coisa qualquer que não seja a busca de um apoio para mais suspensão de juízo. A aceitação – temporária – de alguma determinação não é mais do que uma estratégia no esforço de maximizar a suspensão do juízo.

Em minhas discussões com Porchat, muitas vezes apresentei-lhe o argumento de que a adoção, por parte do neopirrônico, de uma visão comum do mundo (em detrimento de outra qualquer), ainda que somente sob a forma de uma aceitação, era arbitrária. Aquelas determinações eram escolhidas para estarem fora do foco da suspensão do juízo sem nenhum bom critério. Tenho a impressão, que pode estar errada, de que ele me respondia por vezes, entre outras coisas, que não importava esta arbitrariedade. Penso que se entendermos aquilo que o neopirrônico aceita como estratégico para seu exercício de maximizar dúvidas, entendemos porque em certo sentido a arbitrariedade de fato não importa. A escolha da visão comum do mundo para a adoção do neopirrônico é contingente. Outra visão poderia ter sido escolhida – e até mesmo nenhuma visão tomada como consistente. É o dogmático – aquele que mantém a atitude proposicional da convicção – que aponta para a necessidade da adoção de um conteúdo. O neopirrônico, em contraste, se movimenta em ambientes de contingências doxásticas. A visão comum do mundo não é, para o neopirrônico, apenas flexível e histórica, ela é adotada contingentemente, nada a baliza, nos a aceitamos de modo fático. Se quisermos apresentar o movimento cético em passos, começamos aceitando que o exercício da dúvida depende, a cada momento, de uma base de determinação. Logo em seguida, precisamos adotar alguma determinação – uma determinação qualquer – para que o exercício da dúvida saia do chão. O neopirrônico pode adotar qualquer crença – podemos aqui incluir a visão comum do mundo, mas também as teorias científicas comumente aceitas já que qualquer pista de decolagem nos permite proliferar dúvidas. Diferentes teorias científicas, portanto, seriam bem-vindas pistas de decolagem já que elas permitem que acessemos (ou descobrimos) outras dúvidas. O juízo acerca de se há mais dúvidas lá fora para serem descortinadas ou se elas são construídas pelo exercício cético (pela aplicação dos modos de Enesidemo, de Agripa etc). O neopirrônico se apoia em determinações para alcançar dúvidas. É o dogmático – acerca da visão comum do mundo – que considera que ela é carrega necessidade epistêmica. O fenômeno que aparece ao cético – fático, flexível, mas associado às circunstâncias do neopirrônico – é um fenômeno qualquer.

O neopirrônico faz, de acordo com a maneira de entender sua posição que proponho, uma espécie de avesso de uma ontologia especulativa. Mesmo de uma ontologia da dúvida. Ao invés de tomar uma visão comum (ou uma ciência compartilhada, ou um conjunto dissonante de filosofias) como um pista de decolagem para uma imagem determinada do mundo, o neopirrônico a utiliza para proliferar a dúvida. Não é a existência da dúvida que é projetada mundo a fora – como faz a ontologia da dúvida – mas, antes, é a própria dúvida que é proliferada pelo neopirrônico. Também a ontologia da dúvida assente a uma determinação como se ela tivesse necessidade epistêmica: a saber, que há dúvidas no mundo. O neopirrônico tal como eu o construo, por outro lado, não se compromete com nada – sua adoção de algumas determinações é contingente, fática. Ele não está interessado em descobrir determinações a partir das dúvidas (nem sequer acerca da existência de dúvidas, como na empreitada de encontrar uma substância duvidante ou de construir uma ontologia da dúvida). Ele quer alcançar dúvidas a partir das determinações. A visão comum surge então não mais do que como uma pista de decolagem para um voo neopirrônico que, como os voos especulativos, procura atingir alturas. Porém são alturas de juízos suspensos.


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